13 razões para morrer em vez de crescer
Por que as fracas razões do suicídio de Hannah soariam convincentes para outros adolescentes?
E se a vida adulta fosse um lugar para onde ninguém quer migrar? E se nosso presente fosse um futuro que ninguém quer ter para si, nem nós? Há um rumor de que muitos dos que são hoje adolescentes correm o risco de desistir da vida antes de virar adultos. O medo de que esteja ocorrendo uma espécie de epidemia suicídio de jovens, similar ao mito do suicídio de lêmingues, diz muito dos adultos que os trouxeram ao mundo e dos que ocupam-se deles enquanto terminam de crescer. Talvez, para os mais velhos, seguir adiante, deixando a adolescência para trás, esteja equivalendo a morrer.
Essa preocupação diz respeito, evidentemente, aos bem nascidos, os que “têm tudo”. Os outros são dizimados na guerra do tráfico ou na carnificina da prostituição, assim como ocorre com os que vivem em nações em guerra. Para estes, o futuro não é uma opção, a realidade incumbe-se de tirar-lhes a vida na flor da idade. Onde foi que falhamos para temer a desistência de tantos entre os que poderiam dar-se ao luxo de realizar os melhores sonhos que idealizamos para eles? Por que eles se negariam a receber essas dádivas que nossa sociedade injusta oferece a tão poucos? Precisamos vê-los aproveitar o maravilhoso pacote de diversões adolescentes que lhes vendemos para alicerçar a crença no ideal da eterna juventude. Pais e adultos em geral têm investido fortunas em produtos, elixires, comportamentos e promessas que lhes forneçam a ilusão de ter devolvida e preservada uma adolescência de plástico, de filme publicitário, provavelmente em nada parecida àquela que viveram.
Um encontro bem sucedido entre a indústria de entretenimento e seu público acendeu esse rastilho de pólvora: o pânico dos adultos de que seus adolescentes se suicidassem. 13 Reasons Why, o seriado, chegou às telas caseiras dez anos depois do livro que lhe deu origem, Os 13 porquês, de Jay Ascher, lançado em 2007. Trata-se da história do suicídio de Hannah Baker, uma garota norte-americana de classe média. Rapidamente os jovens jogaram-se em maratonas para assisti-lo, enquanto seus mais velhos passaram a alarmar-se com ele, temendo uma onda de suicídio coletivo. Um seriado não tem o poder de ser uma espécie de Flautista de Hamelin, cuja melodia levaria nossos jovens a jogar-se de um precipício como os ratos. Nossos temores dizem mais da relação que nós adultos temos com a juventude do que da vontade concreta dos adolescentes de tirar a própria vida.
Ao longo de 13 episódios, ou capítulos, somos convidados a escutar as gravações deixadas após a morte de Hannah, nas quais ela vai arrolando os acontecimentos que a motivaram a cortar os pulsos. Em cada uma das fitas cassetes, que ela deixa para serem ouvidas por aqueles a quem culpa pela sua morte, ela vai tecendo seus sofrimentos e responsabilizando uns e outros por isso. Ha situações graves, como por exemplo ter sofrido um estupro, assim como ter sido obrigada a presenciar situação similar ocorrida com uma amiga. Porém, encontramos também motivos mais pueris, como o desentendimento com uma amiga e o fato de uma poesia da protagonista ter sido publicada, anonimamente, à sua revelia, por um colega que admirava seu trabalho, e ter chamado a atenção na comunidade escolar.
A série foi considerada um alerta sobre os efeitos letais do bullying na adolescência. Na tela, a comunidade escolar e as famílias entram em uma espécie de histeria coletiva, como se todos os alunos estivessem em risco de suicídio, vitimados pelos maus tratos sofridos por parte de seus contemporâneos. Fora da tela, passou a considerar-se a série como um potencial gatilho que levaria seu público a imitar o ato da protagonista.
Quem consegue lembrar-se, sabe que os anos adolescentes não são fáceis de transpor, porém, se tantos se sobrepujaram a essas dificuldades, por que os jovens atuais não o fariam? A forma explícita em que o ato suicida é apresentado na série parece ter o potencial de funcionar como uma espécie de tutorial para ensinar aos jovens a matar-se, assim como muitos supõe que a violência nas telas ou games os levaria a empunhar uma arma e sair dizimando seus colegas. Embora o entorno social exerça fortes influências, tanto mais potencialmente negativas quanto mais frágeis sejam os indivíduos, o suicídio não funciona por simples contágio, assim como tampouco ocorre com a violência. Descartado isso, faltaria indagar por que as treze razões de Hannah soariam convincentes para sua audiência.
O que teria algum potencial para despertar identificação é a certeza da protagonista de ser vítima de maus tratos ou de descaso por parte, principalmente, dos outros jovens. Ela é branca, de classe média, inteligente, bonita e nasceu em uma família amorosa, com pais que tentam comunicar-se com ela, respeitar seus desejos e propiciar-lhe todas as condições possíveis para realiza-los. Mas Hannah sofre constantemente.
Ela enfrenta a selvageria própria da cultura fútil de aparências em que vivemos, ambientada naquele habitat, tão popular nos seriados norte americanos, em que o Ensino Médio equivale a uma espécie de ilha onde são confinados exemplares dos piores tipos de espécime humano. Nenhum de nós, após ter passado os anos adolescentes, discordará de que é um trecho da vida que pode adquirir tintas bem dramáticas, no qual somos destinados a viver em um lugar bem pouco arejado. Para piorar, somos uma péssima companhia para nós mesmos: a autocrítica feroz, tanto mais quanto espera-se tanto dessa etapa da vida, é a musa que canta durante todo o percurso adolescente.
Os outros são considerados um inferno quando os imaginamos fazendo eco ao autodesprezo que sentimos. Nossos contemporâneos, cada um às voltas com os mesmos dramas, são incapazes de olhar para fora, também imersos em suas próprias ruminações narcisistas e autodepreciativas. Paradoxalmente, os adolescentes precisam de amigos e amores como de oxigênio, como contraponto ao vazio deixado pelo enfraquecimento dos laços familiares. A tendência natural é, então, que amores sejam trágicos ou arrebatadores, enquanto as amizades envolverão pactos se sangue ou traições imperdoáveis. Se esse olhar amoroso dos pares não for capaz de curar as feridas do desamparo, os adolescentes sentem-se frágeis, inconsistentes, à morte, mas raramente morrem disso.
Na vida de Hannah, seus colegas, tão autocentrados como ela são acusados da mesma incapacidade de empatia que ela própria demonstra amplamente ter. Ela não liga para as dificuldades alheias: a timidez paralisante, o medo de assumir-se gay, as durezas de uma família devastada pelas drogas, a rigidez militar dos pais de seus amigos, a dor de ter presenciado o suicídio da própria mãe, a fragilidade dos que cercam lideranças perversas. Nenhuma das histórias dos outros parece ter a mínima relevância para a jovem suicida. No palco, os holofotes focam apenas seu único e precioso sofrimento.
Por que solidarizar-se com tanto egoísmo? Certamente isso é uma tentação para aqueles que ficaram presos a uma posição infantil ou são eternamente saudosos dela, pois acreditam ter nascido para ser cuidados e admirados incondicional e eternamente. Tal atitude majestosa só cabe às crianças bem pequenas, que iludem-se na condição de bibelô da casa. Os adolescentes e adultos que recusam-se a admitir qualquer protagonismo nos revezes sofridos querem ser como esses bebês, iludidos no amor supostamente onipresente dos seus pais. Ao longo da infância vamos percebendo que não é bem assim, que eles são mais fracos e desatentos do que gostaríamos. Graças a isso vamos desligando-nos deles, interessando-nos por outras pessoas, por assuntos fora do lar, por brincar e falar, por crescer. A adolescência é o trecho mais decisivo dessa separação, quando começamos a partir de vez. Por isso mesmo é uma fase tão difícil, na qual duvidamos fortemente ter forças, ou mesmo desejo, de fazê-lo. Nesse sentido, o que mais preocupa na popularidade desse seriado não é que ele pudesse desencadear uma epidemia de suicídios juvenis, é sim tanta empatia como uma personagem cheia de autocomiseração e tão pouco disposta a incumbir-se de suas amarguras e de sua própria vida.
Tal identificação de fato pode ocorrer, não no sentido do suicídio, mas dos sofrimentos daqueles que acreditam estar sempre no centro dos olhares, tal como Hannah. Trata-se de um expediente bastante simples para lidar com a perda do lugar central que as crianças supõe ocupar no amor dos pais: projetá-lo fora de casa, supondo-se igual importância, mesmo que às avessas.
A tarefa da sedução amorosa, a que se entregam os adolescentes apaixonados, é um antídoto contra esse narcisismo infantil. Tomar medidas para despertar o interesse daqueles a quem desejamos depende de uma sabedoria oriunda da experiência de desencontros com o afeto e interesse dos pais. O apaixonado supõe que é preciso fazer algo para chamar a atenção e fazer-se amar. Se a queda do trono de criança majestosa não tiver ocorrido, todo tipo de dificuldade será sentida como uma rejeição insuportável, uma estocada a mais na dor da separação com os pais. Se acrescentarmos a isso o ingrediente de famílias que colocam seus descendentes, até avançada idade, como príncipes e princesas cujos desejos são uma ordem, teremos muitos jovens como Hannah. Serão incapazes de enfrentar qualquer revés com outra reação diferente de uma chantagem: se não for como espero, não brinco mais, vou morrer e a culpa será sua. Para estes, se sua presença não puder ser majestosa, quem sabe sua ausência seria?
Mas estes são tipos raros, pois a maior parte dos adolescentes tende a não cair no canto de sereia dos mais velhos, que lhes oferece a comodidade hipnótica de ser mimado para sempre. Desse modo, seus pais nunca envelheceriam, jamais se tornariam superados e obsoletos e nunca criticariam os pais. Até os mais “malcriados” dos filhos acabam por revelar insatisfações com o ninho e apontam para fora dos limites do lar. Fora de casa, quer para os melhor preparados, quer para os mais imaturos, os desafios são assustadores e o convívio com os outros de sua geração a prioridade. Se pudéssemos dizer a um verdadeiro adolescente uma única frase, na tentativa de dar-lhe força para transpor os revezes dessa época seria: “acredita, isso acaba!”.
A ideia de passar vários anos em um convívio cotidiano com outros jovens igualmente destemperados, por horas imóveis em um único recinto, parece ter se tornado um pesadelo para boa parte das pessoas. Esse lugar é a escola. Se pelo menos tivéssemos clareza de que isso é temporário, ajudaria. Mas quando estamos lá parece que não haverá amanhã. O presente é opressivo, tem-se a sensação de estar preso em um filme infinito, sem cortes nem edição, em um único plano sequência. Do futuro, nada se espera, pelo simples fato de que um jovem custa a acreditar em sua capacidade de fazer algo com sua vida.
O futuro é tanto mais incerto quanto tem sido vendido como indesejável. Para muitos, ser adulto passou a equivaler a uma gincana de tarefas sem sentido, desprovidas de glamour. Pelo menos é assim que os desmemoriados dos pesadelos da juventude vendem o sonho de ser bonito, forte e sensual, como um estado que deveria ser ininterrupto. Mas são raros os adolescentes que realmente enxergam-se assim, mesmo os poucos que o olhar alheio coloca no pódio da existência. Isso sem contar o fato de que a maior parte considera-se carta fora do baralho das perfeições estéticas.
Hannah é linda, desejada por muitos e admirada por alguns, que lhe dedicam a amizade e lhe propõe alianças naquele ambiente hostil. O outro protagonista da série, uma espécie de narrador do seriado, é tão tímido quanto apaixonado por ela. O garoto custa a declarar-se devido à sua insegurança, essa teria sido sua falha, a razão que lhe coube. Portanto, o ambiente para nossa heroína não é mais hostil do que para seus contemporâneos, mas ela queixa-se, acusa, arma verdadeiras ciladas para os que convivem com ela de modo a provar a si mesma e à posteridade que não foi escutada, amada e respeitada o suficiente. Suas reclamações fazem eco em jovens e adultos porque gostamos de crer que alguém é mais responsável do que nós mesmos pelo destino que escolhemos.
Por outro lado, entre as motivações para seu ato, encontram-se, principalmente, as várias formas de opressão às mulheres, muito mais ameaçadoras quando elas encontram-se no auge de seus atrativos físicos. Constrangimentos verbais, postagem de fotos comprometedoras na rede, maledicência e, por fim, o abuso sexual propriamente dito, são práticas, infelizmente, correntes e tradicionais.
As adolescentes sempre lidaram com isso como se fosse inevitável, até que o movimento feminista começou a viabilizar-lhes a coragem para reagir e organizou uma pressão social para que suas denúncias fossem recebidas de forma respeitosa. Nossa personagem e suas amigas não partilham desses avanços, inclusive têm parca solidariedade entre si, mas a série revela sofrimentos que garotas e mulheres contemporâneas não têm deixado serem varridas para baixo do tapete. Portanto, poderíamos dizer que estamos frente a um seriado interessante, no sentido da denúncia feminista dos perigos do bullying contra as adolescentes. Curiosamente, não tem sido essa a razão de sua popularidade.
“Suicídio é para fracos”, diz uma personagem secundária, uma garota estranha, sofrida e forte que vai ganhando visibilidade ao longo dos capítulos. Ela é a única que realmente ousa criticar a protagonista principal, cujas reivindicações tantos, dentro e fora do seriado, parecem validar. Para a maior parte do público, estamos em permanente dívida com os adolescentes. É imprescindível provê-los de mais, sempre mais recursos e cuidados, ignorando que é justamente assim que se constrói uma gaiola dourada onde eles ficam presos em nossos sonhos e fadados a uma fragilidade poli-queixosa.
Se nossos verdadeiros sonhos forem os da juventude eterna, que gostaríamos de ter tido, crescer lhes seria proibido e tornar-se adultos uma derrota. “Viva rápido, morra jovem, seja um cadáver bonito”, é uma frase popularizada por James Dean, um dos primeiros ícones da adolescência tornada um ideal estético. A juventude tem deixado de ser um lugar de passagem para tornar-se uma espécie de Terra do Nunca, onde todos gostariam de ser congelados. Mas, assim como a ilha de Peter Pan, a tal adolescência eterna, associada a alguma forma de plenitude de prazeres e potencialidades, só existe no mundo da fantasia.
A casa do gigante
Vendo o mundo desde diversos pontos de vista nos tornamos mais sábios, ou menos truculentos…
Gosto de imaginar uma espécie de instalação chamada “A casa do gigante”, um lugar para ser visitado pelos adultos. Seria como uma casa normal, ou mesmo só um cômodo dela, onde todas as superfícies estivessem acima da altura dos nossos olhos. O único modo espiar em cima delas seria subindo em uma cadeira muito alta, que tenha que ser escalada. Ali nos sentiríamos tão pequenos em relação ao ambiente que em nosso horizonte apareceriam somente pernas, sapatos, barras de saias e os sons das vozes viriam de cima, entrecortados, confusos. Se pudéssemos viver isso, nem que seja em uma experiência sensorial, lúdica, talvez nos tornássemos mais capazes de compreender as crianças.
Isso foi antes de conhecer o incrível trabalho do escultor australiano Ron Mueck e seus gigantes hiperrealistas. Ele cria figuras humanas enormes, representando gente normal, fazendo coisas corriqueiras, ao lado das quais uma pessoa crescida sente-se do tamanho de uma criança de dois anos, no máximo. As exposições de sua obra atraem multidões, acredito que em busca da sinistra sensação de viverem algo que um dia já nos foi familiar.
O mundo ao qual as crianças são apresentadas não é do seu número, o que as leva a um modo peculiar de cognição. Elas constroem suas teorias a partir do que literalmente lhes cai de cima. Recolhem migalhas de cenas, de frases, observam o sapateado, o movimento das mãos e a sonoridade das vozes sem entender com exatidão o que se passa. Tentam decifrar a mímica facial, a linguagem dos gestos, prestam atenção em tudo, embora estejam brincando e parecendo alheias. Vão montando suas hipóteses, fazendo suas colagens, entendendo a seu modo quem são seus adultos, quais vínculos eles têm entre si e em relação a ela.
Como os bichinhos, seus personagens prediletos, elas também ficam de fora e estão mais próximas do chão. Por isso, quando era pequena gostava de “morar” numa casinha feita com um pano jogado em cima de uma mesa, um lugar que me acolhia por ser na minha medida.
Falar com uma criança exige do adulto uma atitude que será decisiva para o tipo de relação que estabeleceremos com ela. Se falarmos do alto, olhando para baixo, estamos optando pela distância, pela hierarquia. Ao levantá-la, podemos içá-la, como se fossemos um guindaste e ela se entregará passivamente como um saco de batatas. Por outro lado, é possível oferecer nosso corpo e braços de forma a que ela suba, embarque ativamente, e possa em nossa companhia contemplar a paisagem do alto. Por último, se nos sentarmos ou acocorarmos, encontraremos seus olhos e partilharemos seu ponto de vista.
Na relação entre gigantes e pequeninos, há uma dança de corpos, um jogo de olhares, um esforço de encontro que precisa vencer o desajuste de tamanhos, de visões. Frequentemente nos surpreendemos com as coisas incríveis que as crianças dizem e ficamos abismados com sua esperteza. É que desde sua perspectiva acabam percebendo sutilezas, enxergando o que nossa percepção viciada deixa escapar. Quando as diferenças são respeitadas, todos os envolvidos aprendem.
(publicado na revista Vida Simples do mês de julho)
A juventude não dormirá!
Seria mais fácil entender o que está acontecendo, se a inveja que os adultos têm dos jovens não atrapalhasse tanto.
Em 1964, num pequeno texto com esse título, escrito para a revista New Society, o psicanalista Winnicott tentava dialogar com aqueles que se horrorizavam diante de manifestações juvenis: “é dada publicidade a cada ato de baderna juvenil porque o público não quer ouvir ou ler a respeito dessas façanhas adolescentes que estão isentas de qualquer desvio anti-social. Além disso, quando acontece um milagre, como os Beatles, existem aqueles adultos que franzem o cenho quando podiam soltar um suspiro de alívio – quer dizer, se estivessem livres da inveja que sentem do adolescente desta fase”. Veja bem, ele retrata a obsessão do público por uma minoria de vândalos, cego à verdadeira relevância dos acontecimentos. O título refere a uma personagem de Shakespeare, que odiava a juventude e desejava que se dormisse dos dezesseis aos vinte e três anos.
É interessante a menção aos vovôs do Rock, justamente para lembrar de que o tempo passa e crescemos como civilização assimilando e aprendendo com o que parecia dissonante e impossível de catalogar. O que mais alarma aos intérpretes de plantão, nos quais me incluo, é a ignorância do rumo que as insatisfações expressadas vão tomar. Não se sabe do resultado das próximas eleições, nem como as cidades receberão a copa, e principalmente está para se descobrir como funcionam a política e a informação na era da internet. Como tampouco se sabia da comunicação após o telégrafo e o telefone, do rumo da música depois do Rock, do destino da família após a revolução dos costumes, das mulheres após a pílula, do livro após o computador. Os adultos de diferentes épocas são reincidentes no medo do desconhecido, lembram seus tempos de interrogações e temem não ter feito as melhores escolhas. Os jovens representam esse processo, estão fadados a atravessá-lo, e acabam suportando melhor o que não controlam.
Nesse, e noutros textos, Winnicott lembra que a juventude passa nos indivíduos, que ficam velhos como os Beatles, mas nas sociedades a expressão juvenil chegou para ficar. Ele a chamou elogiosamente de “imaturidade adolescente”, que seria a fonte das dúvidas que movem revoluções e permitem invenções. Tudo o que nos tornamos como civilização tem uma dívida com aqueles que enxergaram as coisas de modo diferente.
Mudam os atores, mas a peça da juventude segue em cartaz. A vantagem da visão de mundo adolescente, ou juvenil, é justamente sua relação com o tempo, a capacidade de reconhecer, com tristeza, mas sem pânico, que o futuro é incerto. Ser jovem é conviver com as próprias indefinições: duvidar sobre a quem e como amar, no que acreditar, como trabalhar, a quem admirar e o que se quer aprender. Ficar velho é satisfazer-se com o senso comum, é alardear o fim do mundo a cada vez que alguém faz um barulho que nosso cérebro não consegue decodificar. Encerro com Winnicott, pedindo que sejamos capazes de interpretar e conter nossa “indignação moral causada por ciúme da juventude”. Corrompendo Quintana: a meninada passará, a juventude passarinho.
A terra estrangeira dos bebês
Na maternidade real, sabedorias e preparos têm imites: cada bebê é um novo mundo a descobrir.
Mesmo depois de meses de preparo, chegamos estrangeiras ao território da maternidade. Sem mapa, muito menos GPS, olhamos nossos recém nascidos assustadas, mas também embevecidas Um bebê nasce no parto, mas sua mãe não. Por sorte, a intuição dá a largada, pois amor não é instantâneo, mas o apaixonamento sim. A paixão, que é o cordão umbilical do lado de fora, é intensa, irracional.
A maternidade real é muito diferente da que fantasiamos. Uma mãe não precisaria ser suave, altiva, dadivosa, adulta, ponderada, adequada? Onde está essa mãe? Certamente não sou eu, pensa qualquer puérpera novata.
As paixões servem como faísca, mas são fugazes, não garantem a fogueira que aquece, cozinha e salva. Só o amor perdura. Ele arde lentamente, pena que é demorado, chega montado numa tartaruga. Amor é filigrana, é decifrar, descobrir, acalmar-se, perder o medo do outro, respirar fundo. É acampar no desconhecido, desmanchar as malas e aprender uma nova língua. É assim com os amores duradouros, com a intimidade do erotismo, com as amizades e, principalmente, com os filhos. Cada maternidade é uma nova aventura e ter mais de um filho é habitar terras diversas ao mesmo tempo, como um poliglota, e diplomata. Foi assim com minhas duas meninas.
Uma era do outono, mas parecia ser de inverno; a outra, era da primavera, mas parecia ser de verão. Extremistas, elas. Uma sentia muito frio, adorava roupa, aconchego, ronronava. A outra fervia, só o calor a tirava do sério, nudista precoce, bastava a liberdade da pele para deixá-la de bom humor. Eram assim, minhas duas bebês.
Na nossa intimidade, uma disciplinava meu corpo junto ao seu, era ela que nos coreografava com graça e delicadeza. A outra fabricava encaixes perfeitos, sem roteiro. Ela jogava-se em meus braços, trapezista, voava além quando queria.
É como se elas fossem ao contrário, a que sentia muito frio pedia distâncias. Queria proteção garantida, mas regrada, queria calor, mas lento, sem labaredas. A que era fogosa colava, usava minha pele de sua, vestia e desvestia nossos encontros, como quem se liga na tomada, bateria cheia e segue adiante.
A primeira me ensinou que a previsibilidade é o que mais protege, saber com o que se conta, são as rotinas que mantêm a vitalidade do corpo. Frente ao frio da alma, o antídoto dos nossos ritos, que ela ia cuidadosamente criando em mim. Mamava lentamente, com pausas de descanso, digeria o alimento do nosso amor sem pressa. Ensinou-me a paciência de contemplá-la longamente, logo eu que sou tão agitada.
Fomos nos tornando calmamente previsíveis uma para a outra. Ela tem razão: já dizia Winnicott, em uma referência bibliográfica que jamais reencontrei, que a rotina é a herdeira dos cuidados maternos primários. Ela sempre prezou a independência e queria desde cedo tomar para si a autonomia dos consolos. Minha sorte é que são muitos os abismos da vida, requerem infinitos ferrolhos. Faço questão que ela os encontre também em mim. Por isso continuo tendo chance de acolhê-la, e pretendo manter isso até o fim.
A segunda, a que emanava calor, preferia os encaixes, nos quais rapidamente se abastecia, podia até adormecer neles, mas suava excessos. Parecia suportar melhor o descontrole, mamava rápido e intensamente, logo, cabelinhos molhados de suor, partia para a conversa. Dava discursos completos antes de que pudesse anotar na minha memória seus primeiros balbucios. Ela não tinha paciência de esperar que os lentos adultos não a entendessem. Caminhou sem engatinhar, antes que tivéssemos tempo de organizar seu primeiro aniversário, tinha pressa de ver e tocar sem esperar que a levássemos. Quando cansava de tanta aventura, era capaz de aninhar-se como ninguém, nos abandonávamos uma na outra. Hoje ainda fazemos isso, falando atropeladamente, juntas e diversas, fabricamos sínteses muito maiores do que cada uma por si.
Uma desabrochava de dia, recolhia-se com o sol, aproveitava a jornada do sol, seus passeios iam de flor em flor, de amoras a pitangas, conhecia os roteiros botânicos da vizinhança e os donos de cada jardim. A outra foi notívaga desde que nasceu, seus roteiros diurnos a levavam a conversar com os animais do bairro, encantava-os sem medo, as feras sucumbiam a seus pés.
A bebê suave tinha pesadelos intensos, gostava da sua cama, mas nos convocava constantemente. Ela era como aqueles guardas noturnos, que percorrem os corredores e espaços desérticos de que cuidam, tendo que marcar um cartão ponto em lugares, para garantir que estão vigilantes, em movimento. Nos chamava, seguido, requeria consolo, canções de ninar, carícias suaves, calmamente adormecia novamente. Até o próximo monstro. Havia muitos em seu quarto.
A bebê intensa tinha noites tranquilas, a seu modo. Gostava de vivenciar suas noites, brincava sozinha, antes das primeiras letras contava-se histórias com livrinhos no colo, lia do seu jeito. Ela não sentia muito medo. Mas, ioiô que era, essa autonomia também tinha prazo. Acabada sua farra noturna, seu destino era aninhar-se conosco. Como aqueles gatos, que após as noites pelos telhados assumem a cama dos seus humanos como própria. Depois de um tempo desistimos de leva-la de volta.
Se mais filhos tivesse, teria mais diversas histórias para contar. Cada mãe, cada bebê, um encontro peculiar. Conselhos de como cuidar e criar os filhos ajudam, muito. Mas as regras são tão ímpares que praticamente considero cada maternidade como o encontro com uma cultura diferente, cuja linguagem temos que aprender a falar.
Das minhas experiências como mãe, a única lição que posso transmitir é que cada filho tem que ser descoberto. Mulheres cobram-se muito em todos os campos, mas é na maternidade que somos mais inclementes. Com as outras e com nós mesmas. Carregamos o fardo histórico da sacralização da maternidade, da culpabilização das mães por qualquer percalço na vida dos filhos. Queria contar que nunca estamos preparadas, nunca seremos especialistas genéricas. Carregamos alguns dons no corpo, outros herdamos de centenas de anos de devoção exclusiva. Porém, essas facilidades não ajudam se transformadas em perfeccionismo, se movidas a cobranças.
Lembro de uma jovem amiga que já havia iniciado uma jornada de culpabilização materna maior do que o volume do seu ventre. Maternidade e culpa nascem juntas. O motivo das auto recriminações que se fazia era que estava despreparada. Seu envolvimento com a gestação foi considerado, por algumas mulheres que lhe eram próximas, como tardio. Ela demorou para apaixonar-se pela filha mais do que o prescrito nos blogs, sites e portais de maternidade. Até a metade da gravidez pensava mais no trabalho do que na bebê, o futuro quarto dela permanecia escritório, estava atrasada com o enxoval e não buscava muita informação na internet.
Apesar disso, sentia que ia acabar entendendo-se com sua filha. Era uma mulher muito corajosa, estudou e trabalhou por muitos anos em diversos lugares e línguas, movia-se pelo mundo sem grandes planejamentos e certezas. Amadurecida e calejada, voltou ao país de origem para assentar-se, trazendo na bagagem a confiança em sua capacidade de adaptação. Já que sempre acabou sentindo-se em casa nos tantos lugares que vivenciou, por que a viagem da maternidade teria que ser tão diferente?
Acreditava no encontro que ambas teriam, justamente por ser uma mãe poliglota e porque cada bebê chega falando sua língua. A diferença entre os marinheiros de primeira viagem e os mais experientes não está nas certezas, mas sim na capacidade de suportar o desconhecimento, a desorientação inicial.
Ler e escutar cada bebê como se fosse uma língua que se quer muito aprender, tocá-lo como se fosse uma cidade nova cujo mapa quer se conhecer, requer entrega. Prever e planejar tudo, sem deixar lugar para o improviso e para a surpresa, vai na direção contrária.
Esperar que no estrangeiro não se padeça com as estranhezas, é coisa de quem só viaja em excursão e olha o que lhe mandam ver. Uma mãe capaz de lidar com as surpresas nunca será uma novata. A capacidade de entregar-se ao que é novo e diferente é o único item essencial na mala que levamos para a maternidade. Aliás, não é por acaso que vai-se para o parto levando uma mala.
A volta dos rebeldes sem causa
As liberdades conquistadas na Revolução de Costumes do século passado deixaram uma bela herança. Espero que igrejas e governos não se unam, para fabricar alunos robóticos e desperdiçar esse legado de criatividade e capacidade crítica.
Não sei você, mas eu sou grata aos cabeludos da década de sessenta. Eles podem parecer meio desalinhados e confusos, com demasiada simpatia por substâncias ilícitas, mas para mim foram como irmãos mais velhos que deixaram como legado a revolução dos costumes. Essa herança, que facilitou a vida de muita gente nascida depois deles, está, infelizmente, ameaçada de extinção.
Os hippies marcaram posição, enquanto filhos, ao exercer a liberdade de escolher no que acreditar, de que modo viver, mesmo que isso desagradasse seus familiares. Depois desse confronto, as famílias tornaram-se mais democráticas e o abismo entre gerações suavizou-se. Não há mais tantos rompimentos, expurgos e diminuiu o esfacelamento de famílias devido às intolerâncias mútuas. Ainda há choros, críticas, inconformidades com os rumos tomados pelos filhos, isso é inevitável, só não é mais concebível ser ditatorial com eles. Pode ser que, como pais, ainda estejamos buscando o tom, a dosagem da autoridade necessária, lidando com a eterna indecisão a respeito do que permitir e proibir, mas com certeza as famílias tornaram-se menos dramáticas do que eram.
Depois deles, tudo se reacomodou: ninguém mais precisa casar virgem, porém a monogamia e o casamento seguem sendo um valor. Enfim, você conquistou a liberdade até de ser mais conservador do que seus pais se assim quiser. Independente dessa ou daquela conduta, o aspecto mais importante da herança da revolução de costumes dos anos sessenta é certeza de que cada nova geração pensa a vida de modo peculiar, provavelmente diferente dos mais velhos.
Continuam havendo discordâncias entre as gerações, por isso debatemos, discutimos, mas certamente não rumamos para uma dissolução de valores, como querem supor alguns moralistas. Pelo contrário, considero os jovens contemporâneos admiráveis. Muitos deles combatem cotidianamente os fantasmas da intolerância, do machismo e da falta de cidadania. Há entre as novas gerações uma atitude de preocupação ecológica, de responsabilidade relativa ao futuro do planeta antes impensáveis.
Vejo o pensamento por trás do “Escola sem partido” como uma tentativa de neutralizar essas conquistas familiares. São pais que policiam os enunciados dos professores, punindo os que colocarem posições discordantes das deles Ora, a tarefa adolescente é justamente o exercício de pensar diferente dos pais, ver-se diferenciado deles, até para depois resgatar o que nossa herança tem de bom. Se cortarmos as arestas de tudo que é diferente teremos filhos que nunca crescem.
Cada filho escolhe, a partir do que os pais lhe oferecem, no que vai acreditar. Queiram ou não esses defensores do pensamento único, o mundo externo existe e expõe os mais jovens a uma gama de ideias que nenhuma censura consegue suprimir. Se quiserem perpetuar na família suas convicções religiosas, sua própria versão da história ou da ciência, sejam convincentes esmerem-se nos argumentos, discutam com os mais jovens!
Suprimir diferenças de pensamento é desejável somente para quem sente-se inseguro ao ser questionado. Porém, não se espere de um filho que seja mero repetidor dos pais nada além do eco. Sem liberdade de pensamento não acontecem invenções, quer sejam científicas, artísticas ou de comportamento.
Ao repetir velhos clichês sentimo-nos alinhados com a tradição, com nossos antepassados. É uma pena que isso seja falso: se você olhar a vida de seus pais e avós, principalmente daqueles de quem sente orgulho, verá que eles ousaram, romperam, batalharam e defenderam suas convicções.
Quanto aos descendentes, mesmo que seja sem causa, por falta de formação para construir argumentos, muitos alunos da “Escola sem partido” ainda serão rebeldes. Os aguçados conflitos de geração da década de cinquenta estão prestes a ressurgir e com eles as rupturas. O espaço democrático das famílias tem seus problemas, mas certamente acabou com a guerra entre pais e filhos. Agora, se você só souber gritar, impor e cercear, pode esperar pela jaqueta vermelha de James Dean em sua cozinha. Ela vai ressuscitar.
Caminhantes noturnos
Quando ficamos grandes os monstros de debaixo da cama mudam-se para dentro de nossas cabeças e ainda dão medo.É bom lembrar dos antigos medos pra acolher com empatia os pequenos caminhantes noturnos apavorados.
Por que as crianças vão para a cama dos pais e eles não conseguem tirá-las de lá? Essa pergunta é repetida à exaustão, inclusive por casais envergonhados desse pecado. Entre as explicações, há uma que pode lhes aliviar a culpa: à noite todos sentimos medo e os pais se identificam com a ansiedade demonstrada pelos seus pequenos.
Nunca esqueci dos terrores noturnos que vivi na infância, das artimanhas tentado acordar meus pais, desde choros propositalmente audíveis, percussões na parede, até visitas noturnas à sua porta, onde nem sempre tinha coragem de bater. Houve uma fase em que tinha pânico de um calendário que ficava no corredor visível do meu quarto. Brinde de uma loja de tintas, sua imagem abstrata mostrava somente cores misturadas formando belos (de dia) conjuntos. Naquela mancha colorida, mal iluminada pela luz da rua, eu projetava faces, olhos, narizes. Meus monstros tinham caras humanas. Paralisada pelo que enxergava naquele borrão, eu mal ousava colocar um dedinho para fora das cobertas. Além do mais havia o terrível e enigmático espaço embaixo da cama. Imagine a coragem necessária para descer e mover-se até o quarto dos pais pedindo socorro.
A cama de uma criança apavorada é como um barquinho rodeado de tubarões. Alguns desses pequenos marujos ainda dão-se ao trabalho de lançar-se às trevas levando consigo seu brinquedo preferido. Partir e deixar para trás seu urso de estimação seria uma covardia, além do que ele é um companheiro imprescindível na travessia. Levei um bocado de tempo até conseguir dizer à minha mãe que tinha medo do calendário, que foi imediatamente removido. Obviamente para ser substituído por outro abrigo de monstros: como um cabideiro, ou a porta entreaberta de um armário.
Os pais acodem aos filhos aterrorizados em seus quartos ou acolhem os visitantes noturnos em suas camas porque lembram disso. É duro ser rigoroso com quem está em pânico. Some-se a isso que para os pequenos, assim como ocorre até para os adultos quando estão assustados, é difícil diferenciar entre o que se sonhou ou pensou e a realidade
A noite não é fácil para ninguém, em época alguma da vida. É claro que dormir pode e deve ser repousante. Só que por vezes, frequentes para alguns, raras para outros, mas conhecidas por todos, os olhos insistem em encontrar seus monstros na escuridão. Essas criaturas vivem de tocaia, se convidadas pela imaginação, se lançarão sobre nós.
Depois que crescemos já deu para entender que essas coisas são imaginação e a noite uma tela em que se projetam nossos fantasmas. É como no cinema e no teatro: a luz se apaga para que a fantasia se acenda. Há noites que são uma batalha contra aquelas ideias que gritam em silêncio, do tipo que se mastiga sem conseguir engolir. Elas são os monstros favoritos dos crescidos.
Acredito que as tantas vezes em que não me acudiram forjaram a pouca coragem que tenho. Por outro lado, os aconchegos que recebi ensinaram-me a confiar, a continuar procurando-o nos braços de quem aprendi a amar.
Aliás, por que quando somos pequenos e assustados temos que dormir sozinhos e depois de grandes e fortes podemos partilhar o leito com alguém? Pensando bem essa é uma das maiores injustiças da humanidade.
Com os filhos nas costas
Lembranças de viagem e algumas reflexões sobre crianças peruanas.
Tenho uma espécie de brincadeira comigo mesma, um desafio pessoal, que consiste em adivinhar a idade dos bebês. Deixei a prática com crianças com certa tristeza e, assim, fico testando se esqueci o que sabia a respeito delas. Recentemente errei feio: em viajem ao Peru, encontrei um garotinho simpático e participativo, ao qual atribui cinco meses, quando tinha apenas dois.
Até os três meses, um bebê luta para controlar o movimento da cabeça, de forma que possa focar seus olhos no ponto desejado. A direção do olhar, que lhe permite fundamentais trocas e aquisições, é uma longa conquista. Àqueles olhos negros não havia detalhe que escapasse. Essa precoce destreza motora, que me confundiu, provavelmente deve-se ao fato de que muitos bebês daquele país costumam acompanhar as atividades da mãe enrolados num pano amarrado às suas costas. Como marsupiais, eles precisam esforço para brotar das entranhas de tecido que os aconchegam, mas também exigem muito de sua musculatura.
Esse foi apenas um dos vários encontros que tive com crianças, principalmente em idade pré escolar, em Cuzco. Elas estavam com os pais nas lojas, banquinhas de rua, restaurantes, e não se resignavam a ficar mudas, fingindo de mobília. Em geral, contribuíam com sua alegria para o sucesso das vendas. Conversavam, se apresentavam aos turistas, brincavam de esconde esconde, gargalhavam muito. Quando se agitavam um pouco mais, um olhar severo, uma palavra da mãe ou do pai, bastavam para limitar a exuberância, que sinceramente não incomodava.
Para nós, país de curta memória, o contato com a história pré-colombiana é transformadora, descobri quanto o velho mundo também é deste lado do oceano, meu senso de passado se alargou. Voltei maravilhada, mas a lembrança desses pequenos descendentes de Incas, Mochicas, Nazcas e Paracas disputa espaço entre a beleza das imponentes ruínas e da natureza da região.
Aprendi que para os Incas, os antepassados mais recentes dessas crianças, o ócio, a preguiça, figura entre os pecados capitais. É, aliás, o pior deles. Não me pareceu estranha essa informação, pois trata-se de um povo que surpreende pelo bom humor com que executa suas tarefas. Trabalhar os orgulha, não é sinônimo de servidão ou alienação.
Por isso, a presença de famílias que se harmonizavam com o ambiente de trabalho, deixou-me pensativa. Revela uma forma peculiar de encarar a questão da transmissão de valores e do espaço das crianças em uma cultura. Esses pais incutem respeito em seus filhos pelo que fazem. A educação das crianças espelha o sistema de valores dos pais: o que pensam, diferente do que dizem. Os filhos sempre sabem a verdade.
Em nossa cultura, diferenciamos muito bem o território dos adultos e crianças. Para nós, o local de trabalho é impróprio para os filhos, onde atrapalhariam e ficariam descuidados. Essas crianças peruanas que conheci, vivem seu começo longe da nossa dita sabedoria psicológica e pedagógica. O espaço é partilhado, mas os limites e exigências são bem claros. Precisam desenvolver a envergadura física e moral, modos e músculos, para viabilizar o convívio. O que provam ter, por vezes bem mais do que as nossas. Isso dá o que pensar em termos de clichês e invenções educativas, para as quais vivemos em busca de fórmulas, critérios, conselhos. Como os valores e as balizas são internos, refletem as convicções de uma família, de uma cultura, nossos esforços práticos nem sempre são recompensados. A infância espelha a ética de um povo, o que fazem, diferente do que dizem. As crianças revelam nossas verdades.
Desgarrados do guarda-sol
Desgarrados do guarda-sol
Os Meninos Perdidos da história de Peter Pan são originalmente crianças que as babás deixaram cair do carrinho sem dar-se conta. Se após sete dias ninguém os reivindica, as fadas os recolhem para a Terra do Nunca. Não há meninas lá, pois, conforme Peter, elas seriam muito espertas e não cairiam do [...]
Desgarrados do guarda-sol
Os Meninos Perdidos da história de Peter Pan são originalmente crianças que as babás deixaram cair do carrinho sem dar-se conta. Se após sete dias ninguém os reivindica, as fadas os recolhem para a Terra do Nunca. Não há meninas lá, pois, conforme Peter, elas seriam muito espertas e não cairiam do carrinho, no que devo concordar que ele tem razão.
Outro tipo comum de meninos perdidos são os desgarrados do guarda-sol: os pequenos que aproveitam que a vigilância familiar relaxa para explorar o mundo sem bússola nem mapa. Quando percebem a ausência dos seus adultos, apesar de que foram eles mesmos que se afastaram, sentem-se abandonados e abrem o berreiro. Neste veraneio, até inventaram umas pulseirinhas eletrônicas, que permitem a localização da família quando a sirene do mini aventureiro começa a tocar.
Paradoxalmente, é mais fácil ser curioso e correr o risco de perder-se quando nos sentimos cuidados. Geralmente acontece com pequenos que desenvolveram a “capacidade de estar só”. Ela pressupõe o seguinte: uma criança vive em conexão direta com uma figura materna, fonte máxima de segurança; como ninguém pode estar presente o tempo todo, a duras penas ela acaba descobrindo que a mãe não some, nem ele, e que é bom que isso aconteça. Mas também há uma forma menos dramática de aprender a autonomia, que é distrair-se, tornar-se capaz de ficar só. Acontece quando o bebê fica absorto em seus assuntos, cantarolando e brincando, esquecido de chamar a atenção da mãe ou de controlar seus movimentos. Eis uma pequena pessoa crescida, que tem em si mesma uma boa companhia. O fugitivo das areias é alguém que sai consigo mesmo a passear. Carrega dentro de si, por um tempo, seus adultos.
Os pais, nem que seja por instantes, também se permitem desligar na presença do pequeno. Distraem-se porque precisam tirar um pouco do pensamento essa obsessão de fraldas. Mas há os pesadelos, como os bebês que morrem esquecidos em carros, afogados ou são seqüestrados. São ameaças que dificultam esse jogo benéfico de mútua desatenção, já que um vacilo pode ser fatal. Somos todos ousados sobreviventes dessas incursões perigosas nos momentos de desatenção que em alguma ocasião vivemos. Não nos foi necessário o resgate mágico, mas alguma fada madrinha olhou por nós. Tristemente, isso não ocorreu com os pais e filhos que a fatalidade castigou. É bom lembrar que eles não são monstros. Pais e filhos precisam desligar-se mutuamente, nestes casos extremos algo falhou.
Até hoje me emociono nas praias em que há o hábito de colocar a criança perdida nos ombros e sair batendo palmas, com o coro dos banhistas, até encontrar a família da criança apavorada. A cena me leva às lágrimas, porque sinto que fora do guarda-sol familiar, há um mundo de gente disposta a zelar por nós. Quando dá certo, é bom perder-se do território conhecido para descobrir que há incursões seguras por terras estranhas. Faz parte da aventura interminável de crescer e, com sorte, baterão palmas por nós quando o medo chegar.
É isto um jovem?
Após a era nuclear, há uma vacância na posição dos adultos, que se abstém como referência. Aos jovens, resta o preconceito, a inveja, são objeto de pensamentos apocalípticos. O livro de Rose Gurski questiona essas posições.
(Este texto é o prefácio do livro: “Três Ensaios sobre Juventude e Violência”, de Rose Gurski, Ed. Escuta)
Depois de ter visto e vivido o inominável, o escritor Primo Levi estruturou sua mais famosa narrativa da vivência como prisioneiro nos campos de concentração a partir da pergunta: “é isto um homem?”. Inconformado com a banalidade do mal, ele buscou os restos de humanidade dos envolvidos nessa experiência limítrofe: eles restavam nos pequenos gestos de solidariedade e cumplicidade. Foi também na própria capacidade de narrar sua jornada pelo horror que esse escritor, um judeu italiano, reencontrou-se, tentando recuperar os danos da sua dignidade usurpada.
Não surpreende que Rose Gurski faça eco a essa pergunta, ao interrogar qual é a humanidade que resta em certos jovens contemporâneos, capazes de matar e agredir friamente. Ela arrola vários desses casos que constituem uma realidade assustadoramente próxima da alegoria de Laranja Mecânica, de Kubrick, que estuda junto a filmes, muitos deles num território limítrofe entre a ficção e o documentário. Os casos e obras analisados pela autora não a conduzem a uma visão apocalíptica, ela não se une à vozes que caracteriza como tomadas de “pânico moral”, identificando a juventude com problema social.
A demonização dos jovens, tantas vezes considerados sem qualidades e portadores de todas as leviandades que seus críticos conseguirem arrolar, caminha junto com a incapacidade dos adultos de nosso tempo para se compreender e questionar. A tradição acabou sendo associada com um peso que os adultos não estão em condições de carregar, o passado dos contemporâneos parece estar povoado de vergonhas e fracassos. Curioso, pois estamos aterrizando do século XX, e nunca aconteceu tanto em tão pouco tempo. Mas nem só de maravilhas da ciência e comportamentos liberados, que são ganhos indiscutíveis, vive nosso passado recente. Temos muita vergonha a carregar, principalmente a guerra e os massacres. Além do holocausto, já mencionado, a bomba atômica liquidou com chave de ouro a segunda grande guerra, onde provamos a enorme extensão da nossa capacidade destrutiva. E ainda assombra tanto que adolescentes sejam cruéis? Além disso, as maravilhas científicas, a saúde e o bem estar que elas proporcionam, continuam convivendo sem aparentes contradições com a extrema miséria. Seria, então, tão dissonante que jovens desmiolados agridam um mendigo?
Entre os filmes mencionados neste livro, gostaria de focar nossa atenção sobre Rebel without a cause, no qual há uma cena que muito pode nos ensinar. O clássico de 1955, traduzido entre nós por Juventude transviada, faz parte da iconografia fundadora do mito do adolescente contemporâneo. James Dean, faz o papel de um jovem inquieto que busca valores e interlocutores até na polícia. Ele quer revelar a virilidade oculta sob o manto da covardia do próprio pai e alguma qualidade no vínculo entre seus pares, entregues à mediocridade das disputas de reconhecimento. Em suas caras de escárnio, melancolia e desamparo, na sua jaqueta vermelha e topete inspirou-se uma era de futuros adultos, que hoje são pais e avós.
A cena em questão, é um diálogo baseado num equívoco em torno da palavra inglesa “age”, que é cheio de pistas para esta nossa reflexão. “Age” serve tanto para uma época da vida, uma idade, quanto para uma era, um tempo da humanidade. Nele, a moça vivida pela atriz Natalie Wood, futura namorada do herói, aproxima-se de seu pai durante uma refeição familiar e tenta beijá-lo na bochecha, como fazia quando criança. Este a rejeita, resmungando que aos dezesseis anos ela já não deve ter esse comportamento (ele diz: “girls your age don’t do things like that!”). A filha protesta a perda do amor paterno, como se este tivesse que ser abandonado com a infância. Depois que ela sai batendo a porta, dizendo que essa não é mais sua casa, a mãe consola o pai atônito com a frase: “she’ll outgrow it, dear, is just de age!”, ou seja, que ele fique tranqüilo, a filha vai superar essa crise, trata-se apenas de uma idade, uma etapa, uma loucura temporária. O irmão menor da personagem estava por ali, brincando com uma arma espacial de plástico e arremeda, enquanto atira para cima: “yeah, it’s the atomic age!” (“sim, é a era atômica!). Na seqüência, a mãe segue o diálogo com o marido e acrescenta: “It’s just the age where nothing fits” (“é bem a época em que nada serve”).
O pequeno, tal qual uma voz de coro de teatro grego, informou o que os adultos estavam falando sem saber: a juventude da irmã transcorria nos escombros psíquicos de um trauma recente. Os pais dos Estados Unidos pós-guerra, mesmo na condição de membros da nação vitoriosa, não sabiam o que fazer com os filhos quando estes atingiam a idade dos antigos combatentes. A família da personagem de Dean, optava por manter o filho protegido, tratando-o como criança, enquanto a da moça tentava ignorar a fase em que a que a filha deixara de ser criança e não era ainda uma adulta, como se fosse um mal passageiro.
Embora os jovens pareçam bastante perdidos e principalmente tristes, a adolescência é neste filme um notório incômodo para os adultos. Os jovens ainda tão respeitosos e cerimoniosos dessa história já antiga, mesmo assim eram caso de polícia para essa sociedade de baby-boomers, tanto que um deles acaba morrendo. Trata-se de um crime estúpido, cometido por um policial estabanado, que extermina a vida de um garoto solitário e desajustado que só queria um pouco de atenção. Bem nos lembra Rose que os estudantes rebeldes do maio de 68 francês reivindicavam: “não nos mandem polícia, eduquem-nos!”.
Essa “era atômica” de que falava o garotinho, transcorrida nos anos da Guerra Fria, encontrou pulverizados todos os valores pelos quais seus protagonistas lutaram. Os heróis desse tempo eram mais traumatizados que orgulhosos, a reconstrução da Europa bombardeada desenterrava cadáveres de traição e indignidade. Quando os jovens de um mundo pacificado, voltado para o bem estar, começam a questionar o sentido da vida, esses pais encaram a melancolia juvenil como ingratidão: eles deveriam apenas aceitar a boa sorte e aproveitar as oportunidades de segurança que seus antepassados não tiveram. Ao contrário disso, os garotos do filme travam duelos letais com carros e canivetes, reproduzem em pequena escala a passagem do jovem pela guerra, e a experiência da proximidade da morte para fazer-se homens.
Jim Stark, personagem de Dean, reclama constantemente da covardia do pai, um marido submetido pela autoridade da mulher e da sogra, e lança-se num duelo em defesa da honra, após ser chamado de “chicken”. Mais uma vez, os jovens encenam em pequena escala os esqueletos no armário de seu tempo: a paz em que eles viviam era uma fina casquinha sobre a constante ameaça de um confronto terminal, a guerra atômica. Como queriam que aqueles garotos seguissem adiante, como gado, ignorando o conflito silencioso e totalizante, sobre o qual se estruturava a falsa calmaria? A quem queriam enganar aqueles adultos, exigindo que os jovens não se colocassem as questões terminais que seus pais, graças à guerra, puderam formular? Para que viver? Em nome de que lutar? Quais são os verdadeiros amores, os vínculos autênticos, capazes de sobreviver à adversidade?
Num instigante percurso teórico por autores como Hannah Arendt, Walter Benjamin, Giorgio Agamben, Maria Rita Kehl, Eric Hobsbawn, Jacques Lacan, Ana Costa, Contardo Calligaris, entre tantos outros, costurado pela análise de filmes como Aos treze (2003), Cama de gato (2002), Alpha dog (2006) e Os sonhadores (2003), este livro nos conduz a interrogações profundas. Simplesmente horrorizar-se com os jovens cruéis e transgressores, ou mesmo ignorá-los, esperando que seja um desajuste temporário, seria reproduzir as condutas dos adultos do filme. Pais, educadores e policiais em torno de Jim, fizeram de tudo para abafar a atitude adolescente enquanto uma forma, direta ou velada, de questionar.
A juventude está intrinsecamente associada ao tema do novo, onde aqueles que estão se tornando grandes de tamanho, embora ainda pequenos de experiências, inventariam seu legado, decidem o que levarão adiante e o que deixarão pelo caminho. Mas, lembra-nos a autora: “não é o jovem que ainda é pobre em experiência, é a sociedade que é pobre na capacidade de transmiti-la”. É sobre a diferença traçada pro Benjamin entre “vivência” e “experiência” que ela baseia suas reflexões, sendo a primeira apenas a memória de uma série de atos e acontecimentos que só podem ser assumidos e incorporados pelo sujeito mediante a transformação na segunda, Benjamin, ensina Rose, coloca a narrativa enquanto catalisador, instrumento de elaboração, tal como fez Primo Levi. Mas não se conte com os mais velhos para conduzir ou propiciar esse discurso, essa reflexão! Os jovens contemporâneos são filhos de gente que cresceu e envelheceu incapaz de tornar-se um adulto, determinados a jamais deixarem-se superar pelos mais jovens.
Não importando a idade, os que se sentem privados da própria juventude são incapazes de assumir a posição dos que, em vários aspectos, já tiveram sua vez. Já gastaram algumas fichas, mas mantêm os olhos postos apenas no que ainda gulosamente querem viver, sempre mais e muito. Como se a era atômica tivesse nos legado uma vida imediatista, sem passado nem futuro, numa eterna véspera de fim de mundo que o desarmamento nuclear não desbaratou.
Numa cultura onde a vaga de adolescente é disputada por gente de todas as idades, ficando essa época da vida associada a um imaginário (dos adultos) de oportunidades e prazeres (nada mais distante da realidade), resta pouco lugar para questionar. Alem disso, questionar a quem?
No filme Aos treze (também estudado por Rose) por exemplo, todos os personagens estão em busca de alguma razão de ser, mas enquanto os mais velhos se anestesiam com drogas e álcool, os mais jovens lançam mão à aparência, aos objetos, etiquetas e marcas. Não há nenhum adulto no filme, já que os mais velhos são visivelmente fascinados pelas promessas de gozo que atribuem à juventude. A mãe assiste a mutação da menina com alguma preocupação, mas ao mesmo tempo mostra-se paralisada, hipnotizada pelo personagem que surge daí: seu patinho feio tornando-se cisne, a mulher bela e sem limites. Mas quem não ficaria seduzida pela invocação destes poderes? Não é apenas um filme sobre uma adolescência difícil, é sobre os revezes de crescer num tempo em que poucos têm coragem de ser adultos.
Trata-se do fenômeno, caracterizado pela autora deste livro como de “erosão da adultez”, onde para os mais velhos que hoje trajam a fantasia da juventude eterna a reflexão é impossível. Como estes não permitem que o verdadeiro jovem os olhe como diferentes, nunca se estabelece a distância necessária para ver melhor, enxergar de fora.
Exatamente como nos afastamos de um objeto para lhe conhecer melhor as formas, os jovens precisam distanciar-se dos adultos para compreende-los melhor, decifrá-los e com isso conhecer-se. Analisando seus familiares, governantes, educadores, artistas, enfim, todos aqueles que teriam que ter algo a dizer ou mostrar a partir das escolhas que fizeram na vida, os novatos poderiam conhecer melhor suas possibilidades, ponderar sobre os erros que não querem repetir e os sucessos que gostariam de imitar. Dessa forma, seria possível aprender algo com a experiência dos mais velhos, que teriam transformado suas vivências em experiências, caso isso tenha ocorrido. Para tanto, é preciso dar uns passos para trás, estabelecer um espaço, uma diferença entre maduros e jovens, a qual não vem sendo permitida. Nesse sentido, a autora teoriza com Lacan que a agressividade, contida nessa violência juvenil que tanto assusta, é diretamente proporcional à necessidade do sujeito de demarcar seus limites, estabelecer seu território nem que seja a dentadas, como os animais.
A juventude é época agoniada, de impotência, de covardia, onde nada nos prova que seremos capazes de fazer alguma coisa, quanto mais algo que seja melhor do que já está. No entanto, esse é o desafio, pois se não tivéssemos a expectativa de superar, transcender o estabelecido, fazer algo novo, nem valeria a pena começar. Talvez por isso vê-se tanta gente moça desanimada, já que não há um ponto de onde começar, uma referência. É como se os adultos fizessem eco àquela frase jocosa de para-choque de caminhão: “não me siga, também estou perdido”.
A partir da modernidade uma existência tem se fazer valer, deixar sua marca na vida, pois o céu deixou de ser uma meta atraente e a manutenção da tradição não é um objetivo plausível. Arendt já questionava o que se lega aos descendentes, quando os ideais são engajados na esteira da ruptura, da revolução, nunca na manutenção do estabelecido. Rose Gurski aposta na narrativa, que ocorre nos momentos em que o adolescente é escutado, por exemplo. Nessa experiência discursiva torna-se possível equacionar uma relação com a herança recebida, sobre a qual eles possam então criar o novo, fazer suas revoluções, sempre bem vindas. Ela acredita no poder de um verdadeiro olhar adulto que não se negue a enxergar o sofrimento do adolescente. Estes são, enfim, três ensaios sobre a cegueira dos adultos e um chamado a abrir os olhos. O que temos a ver é doloroso mas belo, pois ao mesmo tempo em que nos sabemos passageiros, descobrimo-nos fonte de inúmeros tesouros, nossa herança para ser deixada tem que ter seu valor reconhecido. Afinal, o holocausto nuclear acabou (ainda?) não acontecendo. Há esperança.
Entrevista sobre literatura infantil
Concedida à Confraria Reinações em 05.03.2010
Palavra de confrade
1.Em que aspectos, na sua opinião, a literatura infanto-juvenil reina?
Ela reina, porque é a mãe não somente do leitor que um dia nos tornaremos, mas também de todo o universo onírico que carregamos vida afora. Fabricamos nossos próprios sonhos e fantasias; nosso artista interior não cessa de trabalhar, mas suas criações são formatadas pelas histórias que se escutou, leu ou assistiu. Neste caso, não restrinjo a literatura aos livros, já que toda história, mesmo que vire filme, peça, desenho animado ou série de televisão, em primeiro lugar, foi escrita. A criatividade é sedenta de fontes e quanto mais criativos formos menos precisaremos de pensamentos e soluções imediatos e prontos. Estas últimas podem tomar a forma do simples consumismo medíocre ou mesmo da imbecilidade fascista. A literatura infanto-juvenil reina tanto quanto conseguirmos seres humanos mais interessantes, e sua falta é origem da pobreza de espírito.