A outra história de Noé

Crescer é suportar a humanidade dos pais.

Noé salva o mundo outra vez, agora nas telas do cinema, no filme de Darren Aronofsky com Russell Crowe. Gosto desse herói, mas menos pela história do dilúvio e sim por uma trama secundária após a catástrofe.

Assim que as águas baixaram, Noé começou o esforço para reconstruir o mundo, as plantações inclusive e as videiras em particular. Ele não só plantava uva como produzia e bebia vinho. Certo dia, não sabemos se para comemorar ou para esquecer, tomou todas. Com sempre que se abusa, deu vexame. Tirou a roupa, fez discurso, essas coisas de bêbado.

Lembrem que Noé foi escolhido por Deus para salvar a humanidade por ser uma figura exemplar e incorruptível. E é aqui que começa a parte que nos interessa: apesar de herói era humano. As reações dos filhos frente à fraqueza do pai foram distintas. Enquanto Cam zombou de Noé e chamou os irmãos para verem o espetáculo de sua vergonha –ele estava nu – Sem e Jafé o cobriram, protegendo-o.

Os  mitos duram porque contam histórias atemporais, dramas que afligiram nossos antepassados e seguem nos fazendo questão. Nesse caso, o tema é como posicionar-se frente aos erros e fraquezas de nossos pais. Afinal, isso mais dia menos dia aparece e é uma grande provação para todos. Inevitavelmente nos defrontaremos com um momento em que nosso pai estará de alguma forma nu. Ele parecerá frágil ou vexado, errando ou administrando uma má decisão, sem força para os desafios que a vida não cessa de nos colocar.

Esse é o capítulo decisivo do fim da infância: como agir frente ao pai decaído. É um momento feito um dilúvio, quando as águas do tempo levam nossas ilusões, entre elas a de que nossos pais são mais sábios e mais retos que a maioria. Crescer é descobrir que eles são como todos, uma soma ímpar de virtudes e defeitos. Mesmo quando são grandes heróis não são deuses, e portanto, são falíveis.

Como no mito, existem duas reações possíveis. Podemos ser como Sem e Jafé que cobrem o pai, sendo naquele momento, o pai do pai. Estendendo a mão na hora certa, de forma que ele não se sinta humilhado pela ajuda. Mas também é possível agir como Cam, reclamar que ele não é mais grandioso como os pais são só na cabeça das crianças.

Insistir em apontar os erros dos pais é de certa forma seguir sendo filho, recusando-se a crescer e deparar-se com o pouco que somos. Crescer é entender a limitação que atinge a todos, é saber que a condição humana é falha, que um dia nós é que tropeçaremos. Crescer é sair da sombra cômoda e ilusória de um pai que seria sábio e protetor ontem, hoje e sempre. Crescer é prescindir dos pais, vê-los e aceitá-los como são, nem heróis nem anjos: humanos apenas.

23/04/14 |
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2 Comentários
  1. Silvia Queirolo permalink

    Não sei há quantos anos recortei um jornal para poder mostrar um texto a outras pessoas…
    Excelente.

  2. Cy Garcia permalink

    Lindo, lindo, lindo. Cada letra, cada ponto, cada vírgula me encheu de lirismo, alegria e poesia. Obrigada mais uma vez por nos brindar com tão belos, e necessários textos, nesta vida que precisa deseperadamente voltar a lindeza das palavras infindas de bálsamo.

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