Alma animal

Além de um vínculo amoroso terapêutico, um animal de estimação costuma ser um duplo do dono.

Donos de animais de estimação costumam ser acusados de dedicar-lhes um amor excessivo, por tratá-los como filhos. Isso é considerado um obsceno deslocamento de afetos. Tendo a discordar, quem quer filhos tem filhos, cães e gatos geralmente ocupam outro lugar.

Talvez a melhor representação disso esteja na concepção de Dimons que encontramos em “Fronteiras do Universo”, uma trilogia de que se inicia com “A Bússola de Ouro”, do britânico Philip Pullman. Estes são uma duplicação das personagens, sua “alma de estimação”. Na história, cada humano tem um Dimon (ou Daemon), sua extensão animal, como se a alma caminhasse a seu lado e ainda fosse possível dialogar com ela. O de Lyra, a personagem principal, chama-se Pantalaimon e pode assumir várias formas, mariposa, gato do mato, arminho, morcego, mudará conforme a necessidade. Quando ela crescer, sua personalidade tendo atingido uma forma mais definida, o mesmo ocorrerá com ele que assumirá uma identidade estável, sua melhor tradução.

Oriundo da mágica Oxford, Pullman lecionou lá como seus mestres Carroll, Tolkien e Lewis, mas encontrou um nicho de fantasia próprio. Conseguiu dar corpo novo a um recorrente aspecto do mundo mítico: as nossas metamorfoses como animal. Em muitas sociedades antigas os animais eram pensados como seres de outra cultura, não como natureza, tais como nós os concebemos. Imputam-lhes linguagem e credos, assim como atributos mágicos específicos a cada espécie. Conservamos algo dessa visão mágica, por isso o animal se presta para metaforizar o caráter e predicados que supomos ter.

É dessa ordem a relação que estabelecemos com nossos animais de estimação, cujo maior mérito é estimar o dono. Se são tratados como filhos, o são somente num aspecto da parentalidade, aquele no qual o filho é uma extensão do narcisismo dos pais: “‘Sua Majestade o Bebê’, como outrora nós mesmos nos imaginávamos.” , já dizia Freud.

O excessos de zelo com os animais de estimação parece ridículo aos que estão fora da cena. Mas quando problemas de saúde os afetam, seus donos apresentam um genuíno sofrimento, que aprendi a jamais subestimar. Da mesma forma, a morte de um animal de estimação arrasta consigo uma parte de nós, afinal, não dizem que os animais se parecem aos donos?

Por essa função de duplo que o animal ocupa, comemoro quando um paciente passa a estimar um para chamar de seu. Dialogar com essa criatura, adivinhar seus desejos e necessidades, é uma experiência amorosa que funciona melhor que muitos anti-depressivos. Se necessário use, não tem contra-indicações, além de que sempre é bom descobrir a cara de nosso Dimon. O meu é um Bulldog Francês ancião, cujos olhos enormes e dóceis mascaram uma natureza insubordinada. Meu número.

Um Comentário
  1. Enaldo Souzza permalink

    Aplausos às suas palavras e complemento dizendo que além de tudo isso, são almas puras, que não conhecem erros ou arrependimentos, vivem puramente sempre demonstrando a intensidade de suas emoções e sensações.

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