Anatomia de Harry Potter

Interpretação psicanalítica dos livros de J. K. Rowling

Harry Potter revelou uma massa de crianças leitoras, cujos números não cansam de ser citados (quantas páginas, traduções, exemplares), porém as razões para tamanho apreço de seu público não foram suficientemente explicadas. Podemos dizer o óbvio: é bem escrito e a autora não cai na cilada comum de considerar as crianças como menos exigentes para com a literatura. As histórias são complicadas, com personagens complexos, viradas surpreendentes e todo um universo de fantasias criado para uso exclusivo do livro. Bem, outros autores já fizeram isso e nem sempre com os mesmos resultados, afinal, criar dimensões mágicas é  lugar comum na literatura para esta idade. Então, o que faz a diferença?

Escola da vida na vida da escola

O principal mérito de Rowling foi situar este universo mágico dentro da primeira e principal experiência social da vida das crianças de hoje: a escola. Nossa realidade familiar está diferente da formação tradicional. As gerações estão mais separadas, a família diminuiu, temos menos irmãos e primos, crescemos longe de avós ou tios, ou então mais distantes física e afetivamente do que antes. A vizinhança já foi mais presente, este espaço de convívio perdeu a vez para a mobilidade geográfica das famílias, a vida em apartamentos e a reclusão em casa justificada pela violência da rua. Enfim, o individualismo reina como ideologia e as condições práticas não favorecem sua diluição. A vida confina-se num núcleo familiar reduzido dentro de casamentos passageiros. Premida por estas circunstâncias, a escola garante certa estabilidade e abriga o cerne da vida social das crianças, tanto que os primeiros anos são considerados “de socialização”.

É importante ressaltar esta diferença, pois o projeto inicial da escola era apenas destinado à transmissão dos conhecimentos formais. Hoje suas funções se ampliaram no sentido de comportar todo o mundo fora de casa para as crianças. Ali aprenderá a dividir, respeitar, esperar a vez e conquistar seu espaço. Excetuando o caso daqueles que vivem em condições de miséria, em nossa sociedade todos os privilégios que uma família puder ter, por menores que sejam, serão das crianças. Mas na escola ela descobrirá ser mais uma, com a professora da escola infantil viverá a experiência das famílias numerosas, onde não havia praticamente uma mãe para cada filho. As instituições escolares têm sofrido os efeitos destas expectativas que passaram  absorver, professores e diretores se cansam de ter que colocar limites em crianças mimadas e sem preparo para o convívio social.

Boa parte da saga de Harry e seus amigos centra-se na escola. Há uma duplicação do mundo entre o dentro e o fora da escola, entre o mundo dos bruxos e o dos “trouxas” ( denominação dos não-bruxos). O mundo dos bruxos possui outros cenários além da escola, mas são secundários. Embora não tenhamos mais o hábito dos colégios internos, hoje as escolas formam um universo que transcende o horário de aulas. Na escola farão suas primeiras amizades, ali compartilharão hábitos, modas, leituras e músicas, que os trouxas dos seus pais, por mais que se esforcem, pouco poderão partilhar. O pai que tentar se mostrar um iniciado no mundo dos filhos, sendo mais adolescente ou crianção que os próprios, passará por ridículo, além de privá-los desta separação de mundos que é preciosa para a construção da sua personalidade.

Quanto aos conteúdos ministrados em Hogwarts, são uma réplica do ensino das nossas escolas, onde se privilegia um saber instrumental. A orientação é pragmática, aprende-se tal feitiço, que serve para realizar tal coisa e é isso. Não há pesquisa nem reflexão filosófica e o acréscimo de saber não se dá por um aperfeiçoamento subjetivo do aluno. Em outras palavras não há produção de novos conhecimentos nem questionamentos éticos, contando apenas com algumas regras que funcionam como limites. 

 

Conselho de Anciões

Hogwarts é também uma resposta a outra questão que muito tem pesado sobre os ombros dos mais jovens: a inversão do lugar da sabedoria. Numa sociedade tradicional o passado é a fonte do saber, a vida se organiza a partir da manutenção e do respeito ao previamente estabelecido. Desde que “invenção” e “revolução” passaram a ser palavras de ordem isto se inverteu. O presente nos parece sempre encolhido frente às maravilhas que seremos capazes de criar em termos de tecnologia, ciência e comportamento 

No mundo de Rowling se acredita na tradição, os jovens podem ter a ousadia própria da sua idade, o que é bem vindo, mas eles demonstram respeito a uma sabedoria ancestral, representada por professores velhos, que estão muito longe de ser vistos como gagás ou obsoletos. Esta valorização do passado não se encontra somente na organização tradicional da escola, mas também no caldo de cultura imaginária em que se banha o ambiente. Tal como em Tolkien, convoca-se uma enorme coleção de figuras da mitologia e da ficção da tradição ocidentais, para um extraordinário meeting (e uma grande salada) nos corredores e arredores da escola. Você já pensou em ter o refeitório invadido por um Troll, encontrar um unicórnio no bosque, ter um gigante por amigo e lutar contra cães de três cabeças, serpentes e aranhas gigantes, ser ajudado por Fênix e criar dragões de estimação?

Confiar no passado como fonte de sabedoria é um alívio, pois para os mais jovens é assustador perceber que seus adultos esperam deles o conhecimento que deveriam lhes oferecer. O adultos de hoje produziram uma espécie de combinação, composta de recalque da própria origem com expectativa de uma felicidade que o futuro possa oferecer, que tem deixado seus filhos desamparados. Os pais não se conformam a viver o tempo que lhes foi reservado, com as limitações que este tem. Esperam de seus herdeiros não a sucessão, mas a fonte da juventude, parasitam sua adolescência, negam que a tendência natural é ser transcendido por eles. Como mal admitem ser de uma geração anterior, tampouco suportam o próprio passado, pois encarar seus velhos e admitir-lhes alguma sabedoria lembra que um dia serão como eles.

Resumindo, é um alívio começar uma adolescência sem que esta esteja carregada do peso de ser o período auge da vida em termos de gozo ou ainda de apontar as tendências para onde vamos todos. A idealização da adolescência enquanto fase áurea é um fardo para os jovens.

Órfão de nobre estirpe

Na escola de bruxaria Hogwarts a origem está dentro de cada aluno, ele será proveniente de uma família de bruxos, trouxas ou mista, pois o dom para a bruxaria pode se revelar mesmo naqueles que não o carregam no sangue. Uma vez chegado lá, o aluno será destinado para uma das quatro “casas”, sendo que cada uma o insere numa linhagem. Para cada uma corresponde um tipo de bruxo e os novatos tendem a ocupar a mesma casa que seus antepassados.

Harry é órfão, seus pais foram assassinados por Lorde Voldemort, o mais poderoso dos bruxos do mal. Extraordinariamente, ele não só se salvou como, mesmo sendo um bebê, “derrotou” o vilão, motivo pelo qual tornou-se uma verdadeira lenda em seu mundo. A marca desse episódio é uma cicatriz em forma de raio na sua testa, traço que o torna identificável. Porém, os bruxos mais velhos decidiram que ele deveria crescer longe dessa fama, no mundo dos “trouxas” com sua tia materna, até o momento em que tivesse condições de compreender as características e fatos da sua origem.

Por isso foi deixado junto à soleira da porta de seus tios, em um cestinho com uma carta que o identificava. Nesta família Harry teve uma vida de enjeitado, com sofrimentos dignos de um David Copperfield. O tratamento que recebia contrastava com o do primo, uma criatura mimada e enfastiada, que o maltratava sem cessar. Com o fim da infância, no aniversário de onze anos, chega a revelação: é chamado a Hogwarts e assim começa o resgate e assimilação de sua história.

A história de Potter tem extremo potencial de empatia, pois cada um de nós desenvolve alguma modalidade do que Freud chamou o “Romance Familiar do Neurótico”. Este consiste numa fantasia, pela qual imaginamos ser adotivos, já que em verdade pertenceríamos a uma família melhor daquela em que crescemos. Os pais são acusados de não estar a altura do que sonhamos, de amar pouco ou mal e em seu lugar é convocada em devaneios outra família idealizada.

Harry acreditava que seus pais morreram num acidente e provavelmente não seriam diferentes daquela família de trouxas em que fora criado. Uma gente consumista, interesseira e materialista, portanto incapaz de nenhum tipo de altruísmo ou imaginação, gente pobre de espírito. Em Hogwarts descobriu que seus pais foram bruxos importantes, que morreram lutando por ele e que já nascera bem dotado de poderes. Ninguém desejaria coisa melhor. 

 Freud considerava que isto não é uma deslealdade do filho, ao contrário, esta fantasia estaria ao serviço da preservação daqueles pais magníficos da primeira infância, desta imagem que será perdida quando a puberdade desfizer o efeito do filtro mágico amoroso que enfeitiça os pequenos. Na puberdade inevitavelmente se enxerga, como num despertar, a condição humana frágil e defeituosa dos pais, num processo que só será elaborado na adolescência, mas que se inicia neste momento.

Acerto de contas com o Pai

O fato de Harry ser órfão não o livra que dar conta da origem e esta é uma questão para todos nós: quem é nosso pai e o que ele nos legou? Uma novela com este núcleo tem sempre sucesso garantido. A saga não terminou, anda pelo quinto volume e seguirá, mas várias pistas nos indicam um caminho que lembra referências à mitologia britânica e talvez seja uma reedição destes mitos nas peculiaridades da filiação. A origem de Harry (por enquanto uma especulação) seria como a do Rei Arthur, que teve de certa forma dois pais. Arthur foi engendrado a partir de uma figura de pai fendida. Seu pai, o rei Uther, com a ajuda de Merlin, assumiu a forma do duque de Cornualha. Com esta imagem falsa  enganou a duquesa Igraine, que acreditava estar se encontrando com seu marido, e desta união resultou Arthur. Afinal de quem ele é filho? Para a mãe a imagem era de seu legitimo e desejado marido, mas mediante o feitiço a alma era de outro. De quem é este corpo que gerou Arthur? De certa forma ele é filho do inimigo, do rival que veio a ser o responsável pela morte do marido da mãe.  

Harry tem um pai certo, Tiago Potter, mas está sempre as voltas com o assassino de seus pais de tal forma que este inimigo exerce uma presença constante, como uma sombra que o envolve. Várias indícios nos fazem pensar que Harry tem tantas coisas do inimigo quanto de seu pai. Ele usa o mesmo tipo de varinha de Voldemort e é ofidioglota (fala a linguagem das cobras) como os desta estirpe. O feitiço destinado a matá-lo quando ainda era bebê o impregnou com as características de quem o lançou e assim nosso herói fica marcado com algumas qualidades de seu perseguidor. A cicatriz na testa, que o identifica tanto como seu nome, é o resto desta operação de batismo de fogo. Afinal, um dos aspectos da filiação não é lidar com identificações que não escolhemos?

De sangue ou não, os dois são pais, afinal os dois legam marcas indeléveis em sua história e assim Harry pode amar ao pai sem reservas, pois todo ódio fica canalizado a Voldemort. Odiar faz parte do conjunto confuso de emoções que dedicamos ao nosso pai, afinal ele é o rival pelo amor da mãe e se queremos eliminá-lo nada mais natural que pensemos que ele quer o mesmo: livrar-se do filho na primeira oportunidade.

Mundos Mágicos

Crescemos sem contato com as gerações que nos precederam e sem notar a continuidade que existe entre o que somos e a história dos nossos antepassados. Isto não é exclusivo desta geração, outras já não se reconheceram na religião dos pais e escolheram crenças alternativas. Os universos mágicos para uso dos adolescentes representam um escape possível para uma nostalgia mítica, algo que nos permitisse acesso a uma sabedoria ancestral e uma suposta conexão com nossas raízes.

A religião não vive grandes dias, os fundamentalistas sim, e isto é mais um indício da crise das religiões do que de um avanço das crenças. Só pela força do fanatismo e obscurantismo é possível atualmente uma religião ganhar adeptos. Já a magia sempre foi um conhecimento subterrâneo recusado pelo establishment, a adversária eterna das religiões.  Como hoje fica cada vez mais difícil acreditar em qualquer coisa, a magia pode entrar no imaginário infantil no lugar desta religião perdida, afinal é uma magia pela outra. A magia tem vantagens, é um substituto que aproxima as culturas por ser universalista, qualquer criança, das mais variadas origens culturais pode ver nela a nostalgia de sua religião que já não serve mais. A outra vantagem é que a magia nunca foi um pensamento dominante, sempre esteve à margem, não é responsabilizada por nos legar uma herança difícil. Como nunca foi um sistema de pensamento totalizado e coerente, pode ser moldado hoje ao nosso bel prazer.

Na verdade quando falamos magia estamos colocando junto conhecimentos antigos estruturados, como a astrologia ou a alquimia e todo um conjunto disperso de mitologias e superstições medievais, enfim, tudo que é pré-científico. Mas este é o saber de Hogwarts, um renascimento do mundo antes da ciência moderna. Entre a ciência e a religião a autora encontra uma terceira via, o medievo, quando entre ciência e mitologia havia pouca diferença.

Podemos arriscar ainda uma outra hipótese, que seria a generalização dum fenômeno verificável clinicamente em certos jovens: existe uma grande dificuldade em estudar a história humana, por ferir tanto nossa sensibilidade quanto nosso narcisismo. Algo do tipo: eu não tenho nada a ver com isso e não quero saber mais. A história humana é um rio de sangue, traz mais motivos de vergonha do que de orgulho, e cada um é pego por particularidades próprias onde seus antepassados estão engajados. Os temas mais comuns são escravidão, genocídios diversos (como culpados ou vítimas), ou mesmo enfrentar que seus avós migraram porque eram uns mortos de fome em outro lugar. Mas não podemos ficar sem história, então usamos estas ficções para preencher a real história da qual, queiramos ou não, somos o resultado.

A sociedade de Hogwarts

O primo trouxa de Harry é um menino obeso, mimado e desleal, junto com sua família, permite a Rowling uma ácida crítica ao individualismo e à sociedade de consumo. Seu lugar em casa é a caricatura do majestoso e ilimitado espaço que as famílias contemporâneas tem reservado aos filhos dos mais favorecidos. Outra crítica da qual o bruxinho é porta-voz encontra-se no conteúdo voltado para a questão da tolerância. As várias procedências dos bruxos se prestam para colocar questões raciais e nisso Harry é definitivo: o herói é intolerante para com os intolerantes. Defende que todos os bruxos são iguais independente de seus nascimentos, se seus pais são bruxos puro-sangue ou não pouco importa. Sua opinião sobre os não bruxos, é benévola, são uns otários, mas não devemos odiá-los ou destruí-los. Os X-men, heróis mutantes dos quadrinhos, debatem-se com as mesmas questões, devem devolver a hostilidade da qual são alvo por serem diferentes?  Nestas histórias o elitismo é mais descarado, eles são de fato superiores aos outros, pois enquanto mutantes desenvolveram capacidades que os tornam mais dotados que os homens comuns.

Como em toda a ficção que se apóia em nossa história passada, Harry Potter carrega traços duma nostalgia do mundo do ancién regime. Uma sociedade mais fácil de decodificar, onde quem é bom é bom, quem é nobre é desde sempre. Na saga a “Guerra nas Estrelas”, de George Lucas,  para pegarmos outro exemplo contemporâneo, reúnem-se as duas pontas, o passado e o futuro. Para tanto projeta-se uma tecnologia avançada num cosmo de relações sociais praticamente feudais. Quase não há conto de fadas sem reis, rainhas, príncipes e princesas, mas nos contos de fada o aspecto social não é tão relevante quanto nestas construções pseudo-míticas. Afinal a sociedade é apenas pano de fundo, os reis estão hoje ao serviço de projetar os pais engrandecidos da primeira infância.

Nestas histórias de mitos artificiais utiliza-se um universo de fácil compreensão, sem nuances. De qualquer forma é digno de interesse que sociedades democráticas, onde a mobilidade social é a tônica, forjem histórias onde o que vale é o nascimento. Parece que as sociedades aristocráticas não perderam seu fascínio.

O próprio herói nasceu bom, não precisa procurar um aperfeiçoamento espiritual, ele já está pré-pronto, basta a escola e umas aventuras nas quais os dons já herdados possam se desenvolver. Este é o aspecto mais fraco e conservador desta saga, mas é bom levarmos em conta que é uma obra para quem mal saiu da infância e o alcance político delas talvez não vá mais longe do que isto. 

Publicado no jornal Zero Hora, caderno Cultura, 22 de novembro de 2003

Este texto ampliado tornou-se capítulo do livro “Fadas no Divã”

5 Comentários
  1. Paulo Rossi permalink

    Ola, muito bom, gostei bastante.
    Vou fazer meu TCC na faculdade sobre esse tema e o texto foi de grande ajuda, parabens pelo trabalho, muito bom mesmo.

  2. Rossana permalink

    Parabéns, vou fazer um trabalho sobre esse assunto e esse texto veio a calhar perfeitmente!
    Obrigado por disponibilizá-lo.

  3. Lucas permalink

    Olá. Vosso site é um tesouro, os textos são primorosos e de uma argúcia tremenda, obrigado por disponibilizá-lo! Peço que, se possível, os senhores comentem o último livro da saga, As Relíquias da Morte. Sou fã da série, mas esse volume em especial mexeu muito comigo e com minha melhor amiga. Conversando, a gente viu que há nele algo sobre a finitude que a gente não conseguiu elaborar em palavras. Eu fiquei muito intrigado e até tocado com as passagens sobre a “mestiçagem”, o “sangue puro” e a perseguição sofrida pelos que não se encaixam.

    • Diana permalink

      oi lucas! não somos versados nas minúcias da saga (o que é e foi o caso das nossas filhas), mas só posso te dizer que rowling cresceu junto com seu público e soube enfrentar os difícieis assuntos da morte e dos absurdos que os humanos sabemos fazer!
      super obrigado pela tua leitura!
      abraços
      diana

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