Carta a M. sobre Carta a D.

Sobre o livro de André Gorz

 Mário, acabei de ler o livro que teu amigo te deu de aniversário: Carta a D.: História de um Amor. O livro é uma carta aberta, um manifesto de amor duradouro, mas também o balanço final da relação de 58 anos de André Gorz com Dorine Keir. O escritor André era um judeu austríaco que viveu o intenso século XX, navegou pelas águas do existencialismo, do marxismo, foi uma das figuras inspiradoras das idéias de maio de 68, precursor do pensamento ecológico. Dorine era uma inglesa, que iniciava uma carreira teatral quando se conheceram, mas que dedicou a vida à parceria com o companheiro.

Ela suportou seus intermináveis períodos de escrita silenciosa, acreditou em sua obra na época em que ele era um desconhecido, mas também estabeleceu relações, organizou arquivos, colocou questões. Foram dois estrangeiros que se estabeleceram na França, mas nunca se acomodaram, foram pensadores inquietos pelo resto da vida.

Dorine adoeceu por causa de um contraste que lhe havia sido injetado num exame, sofreu dores intensas e incuráveis durante décadas. Ele mudou sua vida para adequar-se à fragilidade dela. A carta é escrita em março de 2006, marcada por um amor urgente, imprescindível, nela está dito: nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro. E assim foi feito, em setembro de 2007, André e Dorine, já octogenários, decidiram que seria a hora do ponto final.

Indaguei sobre tua leitura: dissestes que o livro deixou-te um pouco inquieto com as palavras de André, ele te pareceu demasiado auto-centrado, pouco atento a Dorine. De fato, ele escreve que pensava assim: que quando mais jovem seu amor por ela não lhe parecia motivo de orgulho, por isso, a carta tenta fazer justiça à companheira, afinal reconhece-lhe os créditos, dedica a ela sua vida e sua última obra. Dissestes que tua antipatia talvez se devesse à identificação com ele. Nada mais injusto meu querido, pois quando li ocorreu-me o mesmo, também me identifiquei com ele!

Escrevemos juntos há tanto tempo que já nem sei como é pensar sem tua escuta. Cada um de nós possui focos, acervos e estilos diferentes, mas aprendemos a sintetizar, desenvolvemos a arte da intersecção. Quando Dorine queria casar-se, André questionou-a assim: o que nos prova que em dez ou vinte anos nosso pacto para a vida inteira corresponderá ao desejo do que teremos nos tornado? A resposta dela foi de que o que eles iriam tornar-se seria o resultado dessa convivência: nós seremos o que fizermos juntos.

Como eles, somos um casal de estrangeiros, talvez todos o sejam. Um amor é um lugar no mundo, funda-se um país particular, uma linguagem, um modo de habitar determinado espaço e tempo. Já faz quase três décadas que nos dedicamos a isso. Talvez nunca consigamos ser tão atentos um ao outro como gostaríamos, mas tampouco consigo pensar em viver sem ti.

01/07/08 |
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3 Comentários
  1. Denise Bruno permalink

    Talvez a maior atenção que possamos dar ao parceiro seja cada qual desejar não sobreviver a morte do outro. Foi o que meu pai disse para minha mãe ao se despedir dela: que durante toda vida ao lado dela, tinha esperado partir antes.

    • Diana permalink

      isso quando não há filhos, pois ali a vida deixa de ser uma assunto só dos dois…
      bjos

  2. Thais pena permalink

    Ai que coisa mais linda Diana, declaração de amor na rede e demais. Que felicidade, vou comprar o livro hoje sem falta!!

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