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Olhos reclusos, imaginação que voa.

Vale a pena nunca esquecer que a capacidade de enxergar o encanto independe do movimento do corpo

No filme de Cortina de fumaça (1995), escrito e co-dirigido por Paul Auster, há um personagem, representado por Harvey Keitel, que é o dono de uma pequena tabacaria de bairro. Ele tem por hábito fotografar diariamente sua própria esquina, sempre na mesma hora e desde a mesma perspectiva, sem jamais falhar, ao longo de mais de 10 anos. Guarda essas imagens em álbuns, que registram as variações da constância.
Os lugares são como um rio, que nunca seria o mesmo pois as águas que contemplamos já estão de passagem. A paisagem também flui. Nas fotos desses álbuns revelam-se os detalhes sutis, somente perceptíveis aos conhecedores do cenário. Na contramão do olhar habituado, que no mesmo enxerga somente isso, neste caso a curiosidade se preserva.
Quando viajamos, contemplamos muito mais enigmas do que o cérebro tem condições de catalogar. Tampouco adianta fotografar, tive uma paciente que ao voltar de uma viagem, dessas excursões estilo sobe e desce de ônibus, trouxe para a sessão seu álbum de fotos (na época usava-se isso); indaguei sobre uma daquelas imagens e ela ignorava o que era. A explicação soava engraçada: “fotografei para olhar depois”. Quantas vezes fotografamos tentando reter algo do que nos escapa naquele excesso? Vã ilusão. O olhar do viajante é como o das crianças que em geral não decodifica a situação e não raro entende tudo errado.
História oposta é a da minha avó com sua janela que se abria para uma escola secundária. Já muito idosa, teve seus movimentos restritos, o que era bem difícil para uma senhora rueira. Pelo menos ela nunca perdia o espetáculo da hora da saída do colégio, pois já conhecia os jovens, os agrupamentos, os namoros. Para vários deles já tinha uma história em sua cabeça e inclusive algum apelido. Quando a visitava ela me chamava para partilhar seu hábito, me apresentava suas versões para aquelas vidas desconhecidas que faziam sua literatura visual.
A vantagem é que não há lugar imune à diversão dos olhos. Que o digam os antigos, os quais raramente se distanciavam do lugar onde haviam nascido. Conheciam seu território com uma intimidade que hoje ignoramos, o que é uma perda para nós. Todos gostam de exibir-se contando viagens incríveis, de preferência a territórios exóticos, gabando-se de ter ido onde os interlocutores não foram. Dependendo da prosa do viajante, uma simples passagem pela mais parte mais descarnada e periférica de uma cidade, se bem contada, pode render uma história bem mais interessante do que uma excursão à selva africana. Esta última pode ser até, acredite, soporífera.
Vale a pena nunca esquecer que a capacidade de enxergar o encanto independe do movimento do corpo, transcende a paisagem propriamente dita. Sempre teremos um ponto de vista, como o dono da tabacaria de Auster, desde onde o que poderia parecer igual tem chance de nos surpreender. A vida é uma história, nosso cérebro é um cineasta, os olhos a câmera, mas o pensamento tem que ser um diretor sensível. Da minha janela vê-se a cúpula de uma igreja visitada por pombas e gaviões.

A terra estrangeira dos bebês

Na maternidade real, sabedorias e preparos têm imites: cada bebê é um novo mundo a descobrir.

Mesmo depois de meses de preparo, chegamos estrangeiras ao território da maternidade. Sem mapa, muito menos GPS, olhamos nossos recém nascidos assustadas, mas também embevecidas Um bebê nasce no parto, mas sua mãe não. Por sorte, a intuição dá a largada, pois amor não é instantâneo, mas o apaixonamento sim. A paixão, que é o cordão umbilical do lado de fora, é intensa, irracional.
A maternidade real é muito diferente da que fantasiamos. Uma mãe não precisaria ser suave, altiva, dadivosa, adulta, ponderada, adequada? Onde está essa mãe? Certamente não sou eu, pensa qualquer puérpera novata.
As paixões servem como faísca, mas são fugazes, não garantem a fogueira que aquece, cozinha e salva. Só o amor perdura. Ele arde lentamente, pena que é demorado, chega montado numa tartaruga. Amor é filigrana, é decifrar, descobrir, acalmar-se, perder o medo do outro, respirar fundo. É acampar no desconhecido, desmanchar as malas e aprender uma nova língua. É assim com os amores duradouros, com a intimidade do erotismo, com as amizades e, principalmente, com os filhos. Cada maternidade é uma nova aventura e ter mais de um filho é habitar terras diversas ao mesmo tempo, como um poliglota, e diplomata. Foi assim com minhas duas meninas.
Uma era do outono, mas parecia ser de inverno; a outra, era da primavera, mas parecia ser de verão. Extremistas, elas. Uma sentia muito frio, adorava roupa, aconchego, ronronava. A outra fervia, só o calor a tirava do sério, nudista precoce, bastava a liberdade da pele para deixá-la de bom humor. Eram assim, minhas duas bebês.
Na nossa intimidade, uma disciplinava meu corpo junto ao seu, era ela que nos coreografava com graça e delicadeza. A outra fabricava encaixes perfeitos, sem roteiro. Ela jogava-se em meus braços, trapezista, voava além quando queria.
É como se elas fossem ao contrário, a que sentia muito frio pedia distâncias. Queria proteção garantida, mas regrada, queria calor, mas lento, sem labaredas. A que era fogosa colava, usava minha pele de sua, vestia e desvestia nossos encontros, como quem se liga na tomada, bateria cheia e segue adiante.
A primeira me ensinou que a previsibilidade é o que mais protege, saber com o que se conta, são as rotinas que mantêm a vitalidade do corpo. Frente ao frio da alma, o antídoto dos nossos ritos, que ela ia cuidadosamente criando em mim. Mamava lentamente, com pausas de descanso, digeria o alimento do nosso amor sem pressa. Ensinou-me a paciência de contemplá-la longamente, logo eu que sou tão agitada.
Fomos nos tornando calmamente previsíveis uma para a outra. Ela tem razão: já dizia Winnicott, em uma referência bibliográfica que jamais reencontrei, que a rotina é a herdeira dos cuidados maternos primários. Ela sempre prezou a independência e queria desde cedo tomar para si a autonomia dos consolos. Minha sorte é que são muitos os abismos da vida, requerem infinitos ferrolhos. Faço questão que ela os encontre também em mim. Por isso continuo tendo chance de acolhê-la, e pretendo manter isso até o fim.
A segunda, a que emanava calor, preferia os encaixes, nos quais rapidamente se abastecia, podia até adormecer neles, mas suava excessos. Parecia suportar melhor o descontrole, mamava rápido e intensamente, logo, cabelinhos molhados de suor, partia para a conversa. Dava discursos completos antes de que pudesse anotar na minha memória seus primeiros balbucios. Ela não tinha paciência de esperar que os lentos adultos não a entendessem. Caminhou sem engatinhar, antes que tivéssemos tempo de organizar seu primeiro aniversário, tinha pressa de ver e tocar sem esperar que a levássemos. Quando cansava de tanta aventura, era capaz de aninhar-se como ninguém, nos abandonávamos uma na outra. Hoje ainda fazemos isso, falando atropeladamente, juntas e diversas, fabricamos sínteses muito maiores do que cada uma por si.
Uma desabrochava de dia, recolhia-se com o sol, aproveitava a jornada do sol, seus passeios iam de flor em flor, de amoras a pitangas, conhecia os roteiros botânicos da vizinhança e os donos de cada jardim. A outra foi notívaga desde que nasceu, seus roteiros diurnos a levavam a conversar com os animais do bairro, encantava-os sem medo, as feras sucumbiam a seus pés.
A bebê suave tinha pesadelos intensos, gostava da sua cama, mas nos convocava constantemente. Ela era como aqueles guardas noturnos, que percorrem os corredores e espaços desérticos de que cuidam, tendo que marcar um cartão ponto em lugares, para garantir que estão vigilantes, em movimento. Nos chamava, seguido, requeria consolo, canções de ninar, carícias suaves, calmamente adormecia novamente. Até o próximo monstro. Havia muitos em seu quarto.
A bebê intensa tinha noites tranquilas, a seu modo. Gostava de vivenciar suas noites, brincava sozinha, antes das primeiras letras contava-se histórias com livrinhos no colo, lia do seu jeito. Ela não sentia muito medo. Mas, ioiô que era, essa autonomia também tinha prazo. Acabada sua farra noturna, seu destino era aninhar-se conosco. Como aqueles gatos, que após as noites pelos telhados assumem a cama dos seus humanos como própria. Depois de um tempo desistimos de leva-la de volta.
Se mais filhos tivesse, teria mais diversas histórias para contar. Cada mãe, cada bebê, um encontro peculiar. Conselhos de como cuidar e criar os filhos ajudam, muito. Mas as regras são tão ímpares que praticamente considero cada maternidade como o encontro com uma cultura diferente, cuja linguagem temos que aprender a falar.
Das minhas experiências como mãe, a única lição que posso transmitir é que cada filho tem que ser descoberto. Mulheres cobram-se muito em todos os campos, mas é na maternidade que somos mais inclementes. Com as outras e com nós mesmas. Carregamos o fardo histórico da sacralização da maternidade, da culpabilização das mães por qualquer percalço na vida dos filhos. Queria contar que nunca estamos preparadas, nunca seremos especialistas genéricas. Carregamos alguns dons no corpo, outros herdamos de centenas de anos de devoção exclusiva. Porém, essas facilidades não ajudam se transformadas em perfeccionismo, se movidas a cobranças.
Lembro de uma jovem amiga que já havia iniciado uma jornada de culpabilização materna maior do que o volume do seu ventre. Maternidade e culpa nascem juntas. O motivo das auto recriminações que se fazia era que estava despreparada. Seu envolvimento com a gestação foi considerado, por algumas mulheres que lhe eram próximas, como tardio. Ela demorou para apaixonar-se pela filha mais do que o prescrito nos blogs, sites e portais de maternidade. Até a metade da gravidez pensava mais no trabalho do que na bebê, o futuro quarto dela permanecia escritório, estava atrasada com o enxoval e não buscava muita informação na internet.
Apesar disso, sentia que ia acabar entendendo-se com sua filha. Era uma mulher muito corajosa, estudou e trabalhou por muitos anos em diversos lugares e línguas, movia-se pelo mundo sem grandes planejamentos e certezas. Amadurecida e calejada, voltou ao país de origem para assentar-se, trazendo na bagagem a confiança em sua capacidade de adaptação. Já que sempre acabou sentindo-se em casa nos tantos lugares que vivenciou, por que a viagem da maternidade teria que ser tão diferente?
Acreditava no encontro que ambas teriam, justamente por ser uma mãe poliglota e porque cada bebê chega falando sua língua. A diferença entre os marinheiros de primeira viagem e os mais experientes não está nas certezas, mas sim na capacidade de suportar o desconhecimento, a desorientação inicial.
Ler e escutar cada bebê como se fosse uma língua que se quer muito aprender, tocá-lo como se fosse uma cidade nova cujo mapa quer se conhecer, requer entrega. Prever e planejar tudo, sem deixar lugar para o improviso e para a surpresa, vai na direção contrária.
Esperar que no estrangeiro não se padeça com as estranhezas, é coisa de quem só viaja em excursão e olha o que lhe mandam ver. Uma mãe capaz de lidar com as surpresas nunca será uma novata. A capacidade de entregar-se ao que é novo e diferente é o único item essencial na mala que levamos para a maternidade. Aliás, não é por acaso que vai-se para o parto levando uma mala.

Por que tantos peregrinaram ao ônibus da história “Na natureza selvagem”?

Qual o fascínio para os adolescentes da jornada de Chris ao Alaska?

O ônibus de “Na natureza selvagem” não está mais na natureza selvagem.
Recentemente, um helicóptero da Guarda Nacional do Exército do Alasca removeu o lendário ônibus onde Christopher McCandless encontrou o triste fim da sua jornada de filosofias e aventuras. O local tornara-se meca de perigosas peregrinações, de pessoas identificadas com sua história. Foram tantos os extraviados, resgatados com dificuldade, tendo havido inclusive casos de óbito, que as autoridades tiveram que remover esse “monumento”. O que foram tantos procurar em meio à inóspita paisagem alasquiana? Em nosso livro, “Adolescência em cartaz” dedicamos um capítulo a esse personagem, que existiu na realidade e tornou-se uma das grandes fantasias sobre a juventude. Abaixo, alguns excertos:

“Os alasquianos habitam um território no extremo dos Estados Unidos que, pela sua beleza e natureza hostil, desperta a imaginação de pessoas de outras regiões. Eles estão habituados à aparição de peregrinos e Christopher McCandless, um rapaz de 24 anos, oriundo de uma família classe média alta de Annandale, Virginia, foi mais um deles. Eles os vêm com certo desprezo, como assombrações que insistem em passar por ali, impulsionados por fantasias a respeito de si e do lugar e assim os descrevem: ‘jovens idealistas, cheios de energia, que se superestimaram, subestimaram a região e acabaram em dificuldade (…) há um bocado desses tipos perambulando pelo estado, tão parecidos que são quase um clichê coletivo.’”(…)

A região atrai todo tipo de aventureiro, em geral jovens, submetendo-se à rudeza da experiência como rito de passagem. A fibra necessária para enfrentar tal provação, os sofrimentos físicos e a superação dos medos, a solidão em que em geral essas viagens são feitas, se justificam na expectativa de consolidar uma identidade e de corroborar um valor que eles próprios possam acreditar que têm. (…)

“Vale questionar-se sobre as razões de por que a trajetória desse rapaz tenha se tornado livro, filme, motivo de debates acalorados, assim como inspirador de identificação entre aqueles que sequer gostam de aventuras na natureza radicais na natureza. Apesar de seus desejos eremitas, o autonomeado Alex era um entusiasta contador de sua própria história e de seus ideais, deixou suas andanças documentadas, além de comentários sobre as fontes literárias em que fundamentava suas crenças. A última aventura, por ser desastrada e dramática, tomou o centro da narrativa e o ângulo pelo qual o enxergamos, mas ele foi muito mais do que isso. Sua morte trágica, por inanição no Alasca, nos legou uma coleção de enigmas. Enigmais e pistas a respeito de como teria sido o encontro do jovem com a natureza e a morte. Sua tragédia real, fortemente inspirada na literatura avizinhou-se da poesia. Por isso os escritor Krakauer, o cineasta Sean Pen e neste momento nós também, assim como tantos outros, seguimos ocupando-nos dessa história, que se tornou mítica.
São poucos os que têm coragem de fazer a experiência radical de largar a vida comum e sair ao encontro da aventura, principalmente hoje, em que há uma enorme adesão a uma vida reclusa onde pode-se viver experiências meramente virtuais. Muitos desses jovens acomodados sonham com os verdadeiros riscos e as genuínas vivências de quem abriu mão de todas as comodidades e da segurança por opção, e não em nome de uma causa ou missão, ou ainda por ter sido convocado.
O sucesso do livro não é outra coisa que combustível para essa fantasia – e isso nos revela o desejo de fuga como uma das dimensões da adolescência. Na prática pode ser a migração para outra geografia, para outra cultura, mas, em muitos casos, como neste, para fora da cultura propriamente dita, como se a natureza o fosse purificar da sua história, como se ela fosse a única alteridade respeitável. Esta é a dramática história de um jovem buscando refundar-se com o mínimo apoio possível, longe de tudo e de todos.” (…)
“O interessante em estar na estrada é viver sem rumo, o que importa é o meio não o fim, não se vai a lugar algum, apenas se vai. Talvez possa ser lido como uma colocação em ato de uma das grandes questões dessa fase: como não sabem para onde ir, o caminho se faz ao andar. Assim vivem um eterno presente, esquivando-se da pergunta que ronda: o que vais fazer da tua vida? A pergunta é simples, singela, mas para muitos ela abre uma porta de pavor, sentem-se incapazes de responder e, imaturos demais para as exigências do mundo. Fogem da questão e de quem eles supõe que a fariam.
A tarefa de tornar-se alguém começa com uma incontornável alienação à história familiar, mesmo que os pais tentem ser democráticos. Subjetivação e sujeição se confundem, parecem o mesmo movimento. Tomar nas próprias mãos o resultado do que fizeram conosco e fazer algo peculiar, é a tarefa que cabe à adolescência desde que o individualismo tornou-se dominante. A revolta contra essa marca primeira de dependência, que tinge-se de uma espécie de mágoa por ter sido submetido a eles, volta com toda força nessa idade. Na verdade, eis a fonte daquilo que os adultos estão sempre denunciando como uma ingratidão dos mais jovens: deveriam reconhecer que quando eram desamparados seus cuidadores lhes dispensaram tudo o que precisaram para crescer. Porém, infelizmente, a gratidão nesse caso viria com o preço de continuar preso dentro de casa, agora pagando a conta. É por isso que os adolescentes não sentem como legítimos os pilares em que se sustentam, precisam relativizá-los, questioná-los e fantasiar uma espécie de auto-fundação.
Sua questão é como trocar os próprios fundamentos sem que a casa venha abaixo. É uma operação complexa, que exige livrar-se dos pais da infância, na tentativa de abafar suas reais ou supostas exigências. É preciso matá-los simbolicamente e sair vivo da empreitada. Fugir de casa ou partir e deixar de dar e receber notícias é uma das tantas maneiras de desfazer-se dos pais. Essa é a escolha de Alex. Por isso, no caso dele, como no de tantas outras fugas de casa, o sofrimento dos pais não é considerado. É quase como se eles nunca tivessem existido, o propósito é exatamente esse. Com a maior parte das pessoas que Alex interage durante suas andanças repete o ciclo, encontra, faz um vínculo forte e parte sem dar adeus, sem que o outro possa proferir sequer uma palavra de despedida. Mais que ir embora, ele sumia, essa era sua marca.”(…)
“Antes de pensar o que o pôs a correr de seu habitat de origem, convém entendermos melhor em que direção apontava seu desejo. O andarilho Alex foi admirado não somente pela ousadia do seu desprendimento, mas sim pelo fato de que durante aqueles dois anos construiu uma existência coerente com seu pensamento romântico radical e morreu em consequência disso. Ele é visto como se fosse o herói de uma guerra pessoal, capaz de sacrificar-se pela sua crença.
Mas examinemos seu pensamento, de modo em que ele revele o que haveria de admirável para aqueles que leram sobre sua história: afinal o que um jovem buscaria na natureza? Percebemos que ela representa para ele uma alteridade radical, algo a ser conquistado, vencido. Mas por que a experiência frente a seus rigores seria capaz de funcionar como uma prova convincente? E de que valor? E para quem?
Os pais podem até ser muito generosos, mas querem ser recompensados pelos seus investimentos amorosos. Ser filho de alguém é carregar o peso da aposta que se fez em nosso nome. De alguma forma sempre vem a mensagem de que devemos pagar pelo lugar simbólico que ocupamos em uma linhagem. A força das marcas familiares que fundaram o sujeito é sentida particularmente na adolescência, é o fim do jantar e o momento de receber a conta. A cultura dos pais, seus sonhos e projetos, seus erros e acertos vão impor-se ao ser que eles criaram, querem que ele se realize nos termos dos seus valores. Muitas vezes o desejo parental pode não ser de continuidade, não é nada incomum que seja até de rompimento: vá além, faça o que não consegui, enfrente o que me derrotou, escolha melhor do que eu fiz. Outras, é de mera continuidade, mas não importa o tom, sempre soará opressivo e, quanto maiores os recursos psíquicos do jovem, menos pesada será a consciência e a desilusão de concluir que o amor dos pais nunca foi incondicional.
Já a natureza, embora na prática suas exigências possam ser cruéis, parece ser equânime e desinteressada. Estar sozinho em lugares extremos pode produzir momentos de euforia, numa comunhão íntima com a beleza da paisagem, muitos dos quais foram relatados por Alex. Isso se você estiver disposto às agruras necessárias para chegar e permanecer ali. Os que conseguem sentem-se vitoriosos, mas trata-se de uma conquista em que não se cedeu ao desejo de ninguém, não exigiu troca de favores, não se negociaram crenças nem houve medições de prestígio. As exigências de uma montanha, um deserto, uma grande onda, a imensidão do oceano, de uma floresta cheia de ciladas, serão iguais para todos os que ingressarem nelas. O que muda são os recursos com os quais cada um entra na cena. Por isso era fundamental para Alex não possuir nada que diminuísse os riscos, que amenizasse as exigências do lugar, era uma forma de aumentar a magnitude de uma experiência que ele considerava pura e essencial.
Acreditamos que, pela semelhança das experiências a que se lançaram o “personagem” McCandless e o escritor Krakauer (autor do livro responsável pelo resgate do personagem), podemos tomá-los, para efeito de reflexão, como duas vozes de pensamentos similares. A pesquisa do jornalista o levou a citar trechos dos autores preferidos do seu personagem e, entre eles, temos a seguinte passagem de Caninos Brancos, publicado em 1906 por Jack London:
“A própria terra era uma desolação sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que seu espírito não era nem mesmo o da tristeza. (…) Era a imperiosa e incomunicável sabedoria da eternidade rindo da futilidade da vida e do esforço de viver. Era a Natureza, a selvagem, a de coração gélido, a Natureza das Terras do Norte.”
O livro de London contrasta o heroísmo natural das criaturas selvagens, assim como do valor intrínseco da beleza da paisagem do Alasca, com a mesquinhez, a incompreensão dos homens corrompidos em nome do ouro. Estes últimos, segundo as críticas que Chris dirigia a seus pais e seu modo de vida, são representantes do sistema de valores erguido em torno do dinheiro. Seus pais se sacrificaram muito para subir na vida e, como acontece em todas as famílias, não deixavam de adular o valor de suas conquistas, no caso em termos de poder aquisitivo. O filho negou-se a ganhar dinheiro, insistia em que o ouro não media nem provava o valor de ninguém. Já a natureza, esta sim pareceria uma juíza legítima e a ela ele se entregou.”

A delicada arte de ajudar

Empatia: a arte de ajudar sem soberba

A delicada arte de ajudar

Aeroporto lotado, um bebê desses que recém aprenderam a caminhar, grita, chora e se desespera por um tempo que parece infinito. Está no colo da mãe exausta, que já não o acolhe, ele corcoveia e acaba atirando-se no chão. Também lacrimosa, ela só suplica que pare. Bebês entram em inércia, assustam-se com os próprios gritos, estão exaustos mas não conseguem estancar o pânico.
Entre os adultos presentes, trocávamos olhares cúmplices de enfado, incômodo e irritação. O tempo foi dando lugar à preocupação: o estado da mãe não dava pistas de que a situação seria contornada, ela precisava de ajuda. Havia outras mães, famílias, crianças de várias idades, mas na prática estávamos todos paralisados.
Para alívio geral, outra mãe e seu bebê de idade similar aproximaram-se da dupla. Ela iria tentar acalmá-lo, pensei. Mas ela era mais esperta e melhor pessoa do que eu. Tomar o pequeno desestruturado em braços dar-lhe o consolo necessário iria colocar a mãe dele numa posição inferiorizada, de incompetência. É claro que a colapsada mulher teria ficado grata igual, afinal ela tinha perdido o controle.
Nossa samaritana teve uma ideia ainda melhor: entregou ao seu bebê um biscoito e pediu que ele fosse levar para o amiguinho que estava muito triste. O menino fez de bom grado e ainda lhe ofereceu seu próprio bico. O pequeno berrador conseguiu aceitar a oferta generosa, vinda de alguém do seu mesmo tamanho. É como se ele visse um espelho de si mesmo, mas em um momento de calmaria. Se a mãe daquele simpático bebê tivesse tentado pegar o sofredor no colo, ou mesmo dizer à outra o que fazer, teria tido muito mais dificuldade em desfazer a cena.
O bebê foi generoso porque sua mãe também o era, deixou o assunto ser tratado entre gente pequena, evitando a usual competição entre mães. Foi uma lição de empatia: só tem reais condições de entender uma dor aquele que passou por uma experiência similar, e qual mãe não passou? Sem dispor dessa conexão também podemos ajudar, e muito, mas sem a soberba de achar que estamos sabendo o que o outro está sentindo. Convém ser humilde, admitir respeitosamente que nossa inexperiência atrapalha e deixar-se guiar por aquele que sofre.
Fui mãe de bebês e trabalhei com eles. Tem horas em que a gente só pensa em morrer ou livrar-se da criatura, em que as mães sentem-se tão desamparadas quanto seus filhos. Acho que todos nós adultos, irritados e paralisados, estávamos impactados, tendo evocações dos pais e filhos que fomos e somos. Por sorte existem no mundo aqueles que são capazes de entender que pessoas crescidas às vezes também precisam de biscoito e bico.

27/07/19 |
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Frankenstein: o filho queixoso

2018 encerrou, ano estranho, não por acaso ano do centenário da publicação da primeira versão de Frankenstein, escrito por uma das primeiras crias do feminismo, a jovem escritora Mary Shelley. Essa história ainda nos diz muito. Neste momento em que tantos exigem de uma figura paterna o que ela nunca pôde dar, em que tantos tomam decisões em nome dos mesmos ressentimentos que moveram o monstro, talvez seja hora de reler esse mito literário. Aqui, trechos do nosso livro “Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia”, publicado em 2010.

“Lembra-te de que fui criado por ti;
eu devia ser teu Adão,
porém sou mais o anjo caído. ”

O nascimento de Frankenstein

Tão popular como um monstro do folclore, Frankenstein nasceu na literatura, no livro Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de autoria de Mary Shelley, uma jovem inglesa de 18 anos. O fato é que decorridos quase dois séculos, todos ainda sabem quem ele é. Podem não saber exatamente detalhes da história original, pois esse personagem ultrapassou muito as páginas do romance de Shelley, mas algo de sua essência continua reverberando em uma época tão distinta daquela que o viu surgir. Isso faz dele um dos mitos literários da era individualista, ao lado de Fausto, Robinson Crusoe, Dom Juan e Dom Quixote; ou seja, são personagens que nasceram em livros, mas já habitam a imaginação popular.
Essa novela nasceu de um desafio literário realizado por um grupo de amigos: isolados pelo mau tempo durante umas férias, Mary Godwin Shelley, seu marido Percy Shelley, junto com os amigos Lord Byron e John William Polidori, lançaram-se a escrever histórias de horror para divertir uns aos outros. Dos convivas, foi a jovem Mary a que mais seriamente cumpriu a tarefa. O primeiro livro saiu em 1818, mas em na sua terceira revisão, em 1831, é que se estabelece o texto clássico tal qual foi traduzido em várias línguas.
Como era comum na literatura da época, principalmente entre aqueles romances que caíram em gosto popular, a história lança mão do recurso das cartas, misturadas ao relato em primeira pessoa do protagonista: Dr. Victor Frankenstein, estudioso de ciências naturais, o homem que descobriu como dar vida à matéria morta.
A novela começa pelas cartas do capitão de um navio que rumava para o Polo Norte para sua irmã, contando uma estranha aventura que lhe acontecera. Nessa paisagem inóspita ele se deparou com o Dr. Frankenstein, e o recolheu em seu navio mais morto do que vivo. Ele lhe contou a triste história da fabricação de um monstro e sua missão de persegui-lo e destruí-lo. Como o trajeto do navio lhe convinha e estava fraco para continuar a caçada sozinho, o doutor segue a bordo e morre após terminar seu relato. A maior parte do livro consiste nessa história, transcrita pelo capitão, do nascimento do monstro, o destino trágico de criador e criatura, finalizando com um pedido de Frankenstein de que, em caso de sua morte, alguém se incumbisse de eliminá-lo. Na cena derradeira, Walton ainda tem um encontro com a criatura que subiu ao navio para o último adeus ao seu criador. O monstro parte, prometendo dar fim à sua própria existência.
Frankenstein teria decidido revelar sua triste sina para que o navegante não se deixasse destruir pela sua ambição de atingir o Polo, como ocorrera com ele anteriormente. No derradeiro fim, aquele que, como veremos, não conseguiu ser pai para ninguém, que perdeu tudo e todos, restando só o maior dos seus erros, entra em nossa história em uma posição paterna: a do sábio que aconselha o aventureiro, tentando ensinar-lhe a viver. Enfim, como nunca antes, ele consegue fazer um derradeiro gesto de cunho paterno. A história do monstro e do seu criador, ambos conhecidos pelo mesmo nome de Frankenstein é a história do quanto esse homem sofreu para que esse simples diálogo pudesse ocorrer, nem que fosse apenas à porta da morte.
Depois de escutar Frankenstein, o capitão desiste de sua obsessão por atingir o Polo Norte. A conquista do polo, feita quase um século depois desse livro, em 1909, já era meta de aventureiros que queriam marcar seu nome na história, indo até onde nenhum homem ainda chegara. O Polo Norte tem uma mística própria, serve de símbolo do fim do mundo, de ponto de orientação, pois é para lá que a bússola aponta. Talvez seja essa mesma lógica que faz do Polo a moradia de Papai Noel, um lugar extremo e ao mesmo tempo central, orientador. Se boa parte da queixa que perpassa o livro é a de que vivemos desorientados, que não existem referências paternas sólidas, de que o pai nunca fornece um norte, não deixa de ser irônico que seja justamente próximo desse eixo do mundo que ocorra o encontro entre Frankenstein, seu monstro e o viajante que se tornará o porta-voz de sua história.
Conforme seu relato, Victor Frankenstein foi primogênito de uma importante família genebrina e aos 17 anos, quando se preparava para sair de casa e frequentar a universidade, perdeu sua mãe. Junto da família vivia Elisabeth, adotada pela família quando ambos tinham cinco anos e eles se tratavam como primos. Porém, apesar do vínculo familiar que o ligava à moça, a mãe pede em seu leito de morte que eles se casem, e é a essa noiva que o coração do rapaz estava entregue. A perda da mãe, embora já não fosse uma criança, o deixa desconsolado, com muitas questões sobre a morte e pouco disposto a aceitá-la. Victor já possuia curiosidades científicas, e uma vez na universidade em Ingolstadt, volta-se para as ciências naturais, mas com uma ênfase muito particular: seus estudos são norteados pela obsessão à qual vai dedicar a vida, que é vencer a morte. Essa sua inclinação particular o afasta dos seus pares, por isso acaba conduzindo sozinho as pesquisas mórbidas a que se entrega. Ele estuda os mecanismos da morte, a putrefação e norteia-se pela sua crença de que poderia revertê-la ou impedi-la.
Na história escrita por Mary Shelley não há detalhes sobre a fabricação da criatura, a maior parte deles foi acrescentada pelas versões posteriores, principalmente as cinematográficas, que relançaram a história em novas inflexões. Shelley apenas cerca a gênese de mistérios e de discursos filosóficos, nos faz crer que o Dr. Frankenstein domina a ciência moderna, mas não dispensa a tradição alquimista antiga. Após o frenesi que domina sua vida através de anos de pesquisas, ocorre o esperado “nascimento” de um corpo de mais de dois metros, composto a partir de restos de cadáveres. Mas o ser por ele criado, desde o momento em que abre os olhos, desafia seu criador como algo bem maior do que um experimento científico.
Paradoxalmente, ao invés de comemorar a vitória da ciência sobre a morte que ali se consagrava, a conquista do objetivo que consumira suas forças até ali, o cientista ficou tomado pelo horror. Ele considera que a origem do pavor que sentiu emana dos olhos mortiços do espantalho que acabara de animar. Após realizar os procedimentos necessarios para a animação do corpo que construira, viu “abrir-se o baço olho amarelo da criatura (…) seus olhos desmaiados, quase da mesma cor acinzentada das órbitas onde se cravavam”, descreve ele. A partir daí, o cientista caiu imediatamente em uma mistura de sono e desmaio, na qual sonhou que estava beijando Elisabeth, mas ela se transformava no cadáver decomposto de sua mãe.
Após esse sonho, acorda apenas para ver a criatura que já estava em pé, ao lado de sua cama, contemplando-o: “seus olhos, se é que assim podiam ser chamados, estavam fixados em mim”. Em uma inversão de papéis, desta vez é o criador que desperta e encontra sobre si o olhar do “cadáver demoníaco ao qual tão desgraçadamente eu havia dado a vida. Nenhum mortal seria capaz de suportar o horror daquele rosto. Uma múmia revivida não seria tão horrorosa quanto aquele destroço. Eu o contemplara antes de terminar meu trabalho; ele era feio, porém, quando aqueles músculos e articulações passaram a se mover, ele se tornou uma coisa que nem Dante poderia ter concebido”. O horror do cientista parece ser um fato naturalmente inspirado pela sinistra imagem de sua criação, cabe a nós compreender a fonte desses desencontros de olhares.
Assim que pôde, Frankenstein fugiu do local, abandonando o monstro à própria sorte, e nos dias em que se seguiram caiu enfermo, em estado de inconsciência, sendo amparado pelo seu melhor amigo que justo chegou para encontrá-lo. Por isso, a formação da criatura que vai progressivamente aprendendo a compreender o mundo, a pensar, a falar e até a ler se dará em total isolamento, de forma indireta, isenta de qualquer tipo de olhar que lhe dê suporte e reconhecimento. O monstro tudo vê, mas nunca pousaram sobre ele quaisquer olhos que não o quisessem matar. Para ele, que era um corpo inerte, abrir os olhos equivale ao nascimento, significou estar vivo. Porém, no princípio de sua existência ele provocou o desejo de que ela não tivesse acontecido. Isso é ainda pior do que ser rejeitado ao nascer, a criatura invoca no criador o horror, o impulso de negar esse fato. Victor Frankenstein renega o que fez, arrepende-se.
Desde a primeira centelha da vida de sua criatura, o cientista não lhe desejou mais que a morte. Pior, pois matá-lo talvez não fosse tão difícil, desejou que seu experimento não tivesse dado certo. Mais do que matar o monstro,Victor gostaria de eliminar sua obra, mas isso era impossível. Mesmo que a criatura tivesse sido destruida ao despertar, o cientista continuaria perseguido pelo seu feito. O rastro de violência que segue o monstro é somente a encarnação dessa culpa pela descoberta da reversão da morte. Após este ato de negação da morte, o Dr. Frankenstein não faz mais do que reencontrá-la. Aliás, a morte o persegue, encarnada no monstro, que elimina todos seus seres queridos. Enquanto isso progride, Victor não consegue matar seu monstro, em uma mistura de impotência com vacilações, como se a destruição só pudesse se alastrar após semelhante experiência.
Mas de onde vem essa mudança de rumo tão brusca? Uma pista pode ser o pesadelo que Dr. Frankenstein teve depois do “nascimento” do monstro: “… tive a impressão que segurava em meus braços o cadáver da minha mãe; um sudário envolvia-lhe o corpo, e eu via os vermes rastejando pelas dobras do pano”. Esse sonho não seria tão revelador se não estivesse ligado ao que acontece imediatamente, ele desperta e o monstro o está contemplando, tentando falar e tocá-lo. Ele se desespera e foge. Na sequência do texto há uma continuidade entre a monstruosidade do corpo da mãe, por estar morta, e a do monstro, passando de um horror a outro, e é o horror da morte que está no fundo. Em outros momentos da história já intuíamos que obsessão do cientista por vencer a morte era fruto do luto malsucedido da perda de sua mãe, e aqui é a visão da mãe morta que retorna em sonhos quando ele finalmente “vence” a morte.

A educação do monstro

Depois de ser abandonado por Frankenstein, o monstro deixa o laboratório e aprende a alimentar-se, abrigar-se e a decodificar suas percepções. Solitário e sorrateiro, sobrevive às intempéries isolado dos seres humanos, que sempre que lhe pousam os olhos gritam, fogem ou o apedrejam. Em uma ocasião, ocupa um esconderijo ligado à casa de uma família constituída por um ancião cego, seu filho e filha. Eles acolhem uma estrangeira, noiva do rapaz, e lhe dispensam uma série de ensinamentos, desde a língua e as letras, até literatura, ciência, política, filosofia. Em segredo, escondido e espiando por uma fresta, o monstro apropria-se das lições e torna-se letrado e pensante. Grato pelo que indiretamente aprendia, ele lhes dispensava pequenos favores sempre oculto pelas sombras.
Quando se sente suficientemente forte, sai de seu esconderijo e apresenta-se ao cego, seu professor involuntário, para demonstrar-lhe sua gratidão, esperando ser aceito pelo grupo. A conversação com o velho vai bem, mas se interrompe quando o filho entra no recinto, o vê, e o costumeiro comportamento de agressões e fuga se repete. Só que desta vez a criatura, que se sentia muito ligada aos seus benfeitores indiretos, sofre e se vinga, colocando fogo na casa que eles haviam deixado para trás em sua fuga.
Entre as roupas que saíra vestindo do laboratório de Frankenstein, o monstro descobre em um bolso o diário do cientista, onde se encontra narrada em detalhes a aventura de sua origem. Lê com horror: “neles está relatado tudo o que se refere à minha origem maldita. […] Encontrei minuciosa descrição de minha odiosa figura. […] Maldito o dia em que recebi a vida! Exclamei cheio de agonia. Maldito criador! Por que você me fez um monstro tão horroroso que até mesmo você foge de mim repugnado?” Mary Shelley criou nesse monstro um ser filosófico que em sua reclusão havia feito várias leituras, entre elas O Paraíso Perdido, de Milton. Portanto, ele já se comparara com Adão, ao qual invejava a proteção recebida pelo seu criador. A epígrafe do livro contém uma citação de Milton: “Pedi eu, ó meu criador, que do barro me fizesses homem? Pedi para que me arrancasses das trevas?”.
A revolta contra o criador principia-se aí, quando reflete sobre os motivos de seu desamparo e solidão. Para o monstro, ele não estava à altura do gesto de originar a uma vida e no decorrer da história o fará pagar caro por isso. A intenção de dar-lhe origem, como fica claro nessa epígrafe, partiu do criador, portanto ele precisa responsabilizar-se por ela, pois o monstro, como um filho qualquer, não pediu para nascer. Inicialmente a mágoa não mostra o potencial destrutivo que assume quando ele tem a desilusão com essa família do pai cego, pois mais uma vez é rejeitado por aqueles de quem esperava alguma filiação. Trata-se de uma renovada experiência de frustração, na qual novamente aquele de quem espera uma adoção não pode olhar para ele.
Parte então em busca do criador, a quem culpa pela sua desgraça. Tendo localizado, através do diário, a cidade onde residia a família Frankenstein, ele se dirige para lá em busca de vingança. Assim que teve oportunidade, estrangulou o irmão menor de Victor e colocou a correntinha do falecido no bolso de uma criada da família, que foi enforcada injustamente, considerada culpada pelo assassinato.
Após esse crime, ocorre um encontro entre Frankenstein e o monstro no qual este lhe conta sua história e reclama do abandono. Em troca de deixá-lo em paz, exige que lhe seja fabricada uma companheira, sua Eva. No início, o cientista chantageado, aceita, mas quando a está concluindo e se vê frente a mais uma obra sinistra, se apavora e a desmancha em pedaços, o que deixa o monstro ainda mais furioso. Mais adiante, ele também matará o melhor amigo e a amada do criador, em plena noite de núpcias. O monstro não se contenta em destruir Frankenstein, quer secar-lhe a linhagem, salgar sua terra, fazer dele alguém tão solitário e ímpar como ele próprio. No final, voltamos ao ponto de partida do romance, onde criador e criatura vão aos extremos do mundo um no encalço do outro, sem conseguir eliminar-se mutuamente. “Tu, meu criador, me detestas e me abominas, a mim que sou criatura tua, a quem te achas ligado por laços só dissolúveis pelo aniquilamento de um de nós. Pretendes matar-me. Como ousas brincar assim com a vida? Cumpre teu dever para comigo, e eu cumprirei o meu para contigo e o resto da humanidade.”
A demanda não poderia ser mais clara, é uma mágoa contra seu pai, exigindo-o a assumir a responsabilidade sobre sua presença no mundo. São centenas de páginas de exortação para que o cientista se responsabilize, de alguma forma pague pelo abandono e rejeição da sua criatura. O monstro é um filho que acredita ter direito à acolhida e orientação por parte daquele que considera seu pai: “eu aprendera pelos seus papéis que você era meu pai, meu criador. A que outra pessoa poderia eu recorrer senão a você, que me dera a vida?”
A condição irreversível da paternidade é um dos pesadelos da função. Para a mãe, o uso de seu corpo por parte do feto já se incumbiu desse trabalho de convencimento de que o filho passará a ocupar espaço para sempre na sua vida. Já o pai, irá descobrindo isso aos poucos, convencendo-se, muitas vezes de forma dolorosa, de que seu destino passou a ser inseparável daquele que gerou. Observamos que quanto mais paranoide o homem for em relação a isso, mais seu filho tenderá a tornar-se um pesadelo, um perseguidor, exatamente como ocorreu com a criatura de Frankenstein. A paternidade dita biológica, não assumida espontaneamente, comprovada por exame genético, é a versão jurídica desse pesadelo. Nesse caso, um homem se descobre eternamente ligado a um filho que ignorava, renegou ou nunca desejou.
Nas inúmeras adaptações da obra que se seguiram, inicialmente no teatro e depois nas telas, a criatura de Shelley perdeu o direito à palavra. Os longos discursos de ressentimento e cobrança deram lugar a um monstro tosco, abrutalhado e balbuciante. Mas em quase todas perdurou esse impasse inicial, no qual o cientista se horroriza frente à sua obra, desfalece e abandona-o. O monstro vaga solitário, incompreendido e acaba reagindo a tanto desamparo com raiva e sede de vingança. O cerne do mito, portanto, pode ser entendido a partir da criação e abandono de um filho, que por isso torna-se monstruoso; mas também o pânico causado pelo ato de originar um ser é uma das fontes do horror contidas nesse mito literário que atravessa os tempos.

As mutações do monstro

Mary Shelley teve um encontro feliz com uma ideia que sintetizou um feixe de fantasias muito úteis a seus contemporâneos e a muitos que ainda estavam por nascer. Assim que ela publicou seu livro, ele foi transposto para o teatro, com imenso sucesso de público. A partir dessas adaptações teatrais algumas novidades somam-se e modificam a história original. A história dessas versões demonstra, conforme Hitchcock, que “certos elementos permaneciam constantes: um ser criado horroroso e de estatura desmedida, a presença de raios e eletricidade nos acontecimentos da história e a relação psicológica íntima entre criador e criatura. Ao mesmo tempo a história já começara a agregar novos elementos, estranhos à versão de Mary Shelley, muitos dos quais vinculados tão fortemente que sempre aparecem desde essa época: um monstro incapaz de articular palavras, um assistente de laboratório desastrado, uma multidão irada em busca do monstro e um final cataclísmico no qual a criatura e o criador perecem juntos. O público devorava avidamente essa história de monstro, contada e recontada, remodelando-a muitas vezes”. Essa descaracterização tanto da solidão e isolamento do cientista, quanto, e principalmente, da criatura, que no romance é tão discursiva, não irritou a autora. Pelo contrário, ela ficou sensibilizada pela comoção da plateia, que parecia entender o espírito de sua obra. A partir de então, o livro original, que segue nas prateleiras após quase dois séculos, assim como a personagem emudecida pela sua versão dramática firmaram-se enquanto um mito literário.
Um mito não tem autor, ele pretende estabelecer a história da origem das pessoas, do mundo, dos objetos e extrai sua veracidade da provável fonte sobrenatural da narrativa. Seu uso busca amalgamar o máximo de elementos possíveis, pois ele não existe para gerar interrogações, mas sim para dar explicações, para fechar questões. Para tanto, um mito engloba em seu interior todos os elementos úteis que puder angariar: referências históricas, fantasias comuns, elementos do cotidiano de cada época. O mito é uma tentativa de dar explicações através de histórias para o que é frequentemente inexplicável, e se não se ocupasse das fronteiras do nosso conhecimento, não seria necessário recorrer a argumentos fantasiosos para dar conta do assunto. Já os mitos literários são assinados, sua fonte é humana e claramente estabelecida, porém eles possuem a mesma característica de imantar elementos de um momento histórico, da forma como se estrutura a sociedade e a intimidade dessa época, e combiná-los com fantasias atemporais, gerando uma trama que pode ser transposta a outros lugares e outras épocas. Uma história se torna mito quando ela se transforma, permanecendo ela mesma, em um aparente paradoxo.
Mitos literários, portanto, são histórias que transcendem esse ponto de partida claramente autoral, para caírem em outras mãos, porque o público consome versões que vão transformando-a a seu gosto, ele se apropria delas para fins de elaboração de suas questões e as vai transformando sutilmente. Mais do que a corrupção de um original, se estabelece uma harmonia entre um cerne essencial da narrativa que se conserva, enquanto cenários e personagens se modificam, que é justamente o que nos autoriza a pensar que estamos lidando com algo maior do que o livro de um autor.
O monstro é órfão de mãe, e filho da relação de um homem com a ciência, é a criatura incompreendida e abominada por todos, que persegue seu pai-criador até o fim da vida de ambos, essa é sua essência. Embora ele tenha sido privado das palavras que usava para acusar Frankenstein, sua imagem continua angariando pena e horror ao mesmo tempo, pois ele é a encarnação de um erro, além do retrato do abandono.
O horror provém do ato monstruoso que parece ter sido a própria criação e o desafio à morte que ela pressupõe, nisso estão igualados o cientista e seu monstro, enquanto o feito de um e seu produto resultante que é o outro. Por isso, em todas as versões joga-se com a alternância das duas personagens que, para efeitos populares, acabaram atendendo pelo mesmo nome, criador e criatura, já que o monstro fica identificado à loucura onipotente que lhe deu origem. Por outro lado, a fuga do cientista que deixa a despreparada criatura à mercê de um mundo nada acolhedor produz uma empatia inesperada no público, que acaba penalizando-se daquele que tem tudo para ser apenas rejeitado.
O livro recorre a um arrazoado filosófico, que associa o monstro ao bom selvagem, um ser ávido de receber acolhida e uma formação, ao qual a rejeição transformou em obstinadamente mau. Na obra de Shelley a empatia com a criatura é racional, discursiva: escutamos dele todos os esforços que fez para parecer-se com os humanos, que ele observava de longe e escondido, assim como seu anseio por ser admitido entre eles e o sofrimento cada vez que era reduzido a ser a abominável representação de um ato inaceitável. Ele queria ser humano, mas os maus-tratos o lembravam de que não passava de uma forma artificial de vida infundida a pedaços mortos, assustador como um fantasma. Ele buscava compreensão e só encontrava exorcismo. Já no teatro, ao ver substituídos por rudimentares balbucios, gestos e olhares os complexos raciocínios com que defendia sua essência originalmente boa, que ele acusava de ter sido corrompida pelos homens, só lhe resta a identificação com uma criança que ninguém aceita como filho, que sequer é admitida como alguém da nossa espécie, para obter a simpatia e a compaixão do público.
A imagem corporal de alguém composto de pedaços costurados, cujo resultado tem aparência monstruosa, tem precedentes na teratologia. Conforme Warner, “a monstruosidade participa do desajeitamento da irregularidade, de suas classificações e harmonias imperfeitas, e encena a aberração por não conseguir permanecer consistente nem mesmo consigo próprio”.
A falta de um olhar materno que unifique as partes desconexas da criatura é o que empresta um caráter monstruoso à sua imagem. Em menor escala, observamos inúmeras distorções na imagem corporal de sujeitos que se enxergam como disformes, abjectos, com partes que devem ser ocultadas ou corrigidas. Em geral, nesses casos trata-se de pessoas em cujas vidas ocorreu algum desencontro radical ou uma importante falta de sintonia com a mãe. Mas a dismorfofobia aparece muito frequentemente na adolescência quando um outro olhar, agora como corpo sexuado, o desafia, portanto sua causa pode estar na confirmação desse corpo que o olhar materno colou.
O livro Frankenstein foi escrito por uma órfã de mãe. Talvez por isso não surprende que a história seja a de um filho, que contando apenas com a figura paterna, só possa oferecer ao olhar alheio a imagem da falta de harmonia de seu conjunto. Mais uma vez, vemos aqui retratadas as limitações que atribuímos à Função Paterna. O pai pode nomear, mas carece do poder do olhar que unifica. Criador e criatura, portanto, fecham os olhos um para o outro.
A sobrevivência dessa história, e sua transformação em mito, está ligada ao fascínio gerado por esse ato profano de criação, que já alimentava a popularidade das histórias sobre o Golem. É uma instigante fantasia sobre a prepotência de um homem que tentou negar a morte, descobrindo um método para impingir vida à matéria inerte, que quis superar deus, a ciência de seu tempo e prescindir das mulheres para dar origem a um ser vivo. Filho de tanta pretensão masculina e de nenhuma mulher, essa criatura involuntariamente acaba representando a bancarrota da onipotência de um pai, de quem o desmaio, a fuga e o arrependimento mostram a fragilidade. Esse homem que quis tanto, negando a própria morte com seus atos, é tão mítico quanto seu enorme filho desamparado. Na verdade, um não existe sem o outro, por isso eles partilham o nome. Ele quis tudo e ficou com nada, por isso foi, no livro, totalmente destruído.
Frankenstein também é o protótipo do “cientista louco”, personagem que ganhou espaço a partir dessa época. Desde então tentamos saber o que resta da sabedoria, já que a igreja e a tradição não mais respondem por ela. Através dessa figura do cientista louco nos mostramos nostálgicos, negamos a ele a totalidade de saber e o castigamos pela ousadia. A ciência é a herdeira imediata da expectativas que depositávamos na religião: que seja fonte de segurança, antídoto contra o desamparo. Se até mesmo a fé, com toda a sua convicção, foi abandonada, por que a ciência, com suas certezas sempre transitórias, teria nossa adesão garantida?
A personagem do cientista louco, marginal em relação aos seus pares e capaz de superar o conhecimento de seu tempo, reflete nossa ambivalência. Confiamos que sua genialidade ultrapassará as fronteiras do que já se sabe, mas como a condição transgressora e revolucionária de suas descobertas é punida, é como se, ao mesmo tempo, déssemos também um voto de desconfiança. Supomos que suas invenções, que o desgarram do já estabelecido, vão produzir algum tipo de desequilíbrio: ele ficará transtornado, ou sua obra será de alguma forma perigosa, ou ainda trará algum tipo de alteração no mundo cujos efeitos serão nocivos. No caso de Frankenstein ocorreram essas três consequências de sua descoberta.
Em seguida ao surgimento do livro, e ao longo de um século, as peças de teatro foram dando contornos novos ao monstro, até que, em 1910, a criatura de Shelley encontrou um novo meio para expandir sua influência. A Edison Film Company, pioneira na história do cinema, o recrutou entre as primeiras personagens do recém-nascido cinema mudo, com direito a inéditos efeitos especiais. Mas foi a versão cinematográfica de 1931, com direção de James Whale, o momento crucial para a difusão de Frankenstein e a sua posterior transformação em mito. A imagem que vem à cabeça de todos, de um ser de cabeça quadrada com eletrodos no pescoço, cheio de cicatrizes mal costuradas, usando roupas pequenas para seu tamanho, é a do ator Boris Karloff maquiado para esse filme.
Whale estabeleceu o cânone estético e muitos dos aspectos que hoje consideramos intrínsecos à criatura. Como já era de hábito, seu monstro se limita a grunhir e movimenta-se como um grande bebê, já que o ator usava ferros nas pernas e pesos nos pés para que seu andar ficasse vacilante. Os olhos profundos e negros de Karloff, com a maquiagem pesada nas pálpebras eram frequentemente enfocados, fazendo do monstro um rosto triste a ser olhado para angariar nosso afeto. Se para o cientista, na narrativa de Shelley, o olhar de sua criatura o apavorou por serem olhos mortiços, no cinema isso foi substituído por uma expressividade que redunda no contrário: é desamparo que constatamos nos olhos caídos de uma criatura que clama por adoção. Whale também retoma a tradição teatral do ajudante corcunda e sinistro, e coloca grande ênfase no roubo de cadáveres, o que no original é apenas uma alusão.
A temporalidade indefinida em que a novela é tecida está bem ilustrada nesse caso e ajuda aos contornos míticos que a personagem ganhou posteriormente. No filme, tudo se passa em uma aldeia genérica europeia onde o passado e o presente, o arcaico e o moderno se confundem. Embora sofra as influências de seu tempo, ele é um romance não datado e mistura um saber científico de ponta com alquimia medieval. O laboratório do Dr. Frankenstein, um lugar que congrega todos os instrumentos científicos da época de Shelley, situando-os dentro de uma torre gótica, é uma boa imagem dessa síntese. Aliás, o cânone dessa imagem foi estabelecido pelo filme de Whale, mais de um século depois, pois no livro, o laboratório é apenas é um lugar sinistro.
Embora nos forneça imagens definitivas, o filme simplifica a trama. Temos no início o Dr. Frankenstein obcecado pelas suas investigações sobre a fronteira entre a vida e a morte. Ele rouba cadáveres para prosseguir suas investigações solitárias, afinal a academia não iria tão longe como suas experiências. Um erro que ele não se dá conta vai ser fatal para sua criação: enviado ao necrotério para obter uma parte fundamental da criatura, seu ajudante trapalhão rouba o cérebro errado, não de uma pessoa normal, mas de um psicopata.
Depois da criação, o ansiado resultado da pesquisa científica a que havia se entregue com tanto entusiasmo é como sempre renegado pelo criador horrorizado que adoece. Enquanto isso, o novo ser é deixado preso, aos cuidados do ajudante corcunda que o chicoteava impiedosamente. Acossada pelos maus-tratos, a criatura devolve-lhe a brutalidade e o mata. Como o monstro já nasce então fadado ao fracasso pelo seu cérebro doente, neste caso pouco se espera dele a não ser uma carreira criminosa, portanto, não há dúvidas de que ele deva ser eliminado. Quando fica consciente do seu erro, o Dr. Frankenstein e seu professor, que curioso do resultado havia comparecido para observar a experiência, concordam que ele deva ser destruído. O criador é resgatado por sua família que o recupera da saúde abalada pelos anos de esforço dedicados à ciência, enquanto se prepara o esperado casamento com Elisabeth. Enquanto isso, o professor fica no laboratório incumbido de eliminar o monstro, que já revelara sua natureza criminosa. Porém, a ciência é como uma sereia cujo canto enfeitiça o bom senso, e ele não resiste em fazer algumas últimas experiências no corpo anestesiado da criatura. Óbvio, para o bom andamento da trama, que ela acorda, mata seu algoz e foge.
Na sua escapada comete mais um crime, mata uma menina que encontrou ao acaso no caminho e brincou com ele. Desta vez, como da anterior, não há maldade: ele é inexperiente, tosco, incapaz de entender a lógica da brincadeira e comete um erro fatal: a menina jogava flores na água para que boiassem e convida-o para fazer isso com ele; entusiasmado com a brincadeira, ele atira a menina na água, para que ela também boie como as flores, e ela se afoga.
O cérebro do psicopata utilizado na construção do monstro, que supostamente teria desencadeado toda maldade não é convincente, sua carreira de assassino mais parece uma sucessão de trapalhadas do que de maldades. O monstro mata da primeira vez porque é brutalmente maltratado. Sua segunda investida é praticamente em legítima defesa, pois iria ser sacrificado e se salva matando o professor. Quanto à menina, trata-se de um mal-entendido lógico, do tipo que fazem as crianças pequenas. Elas colocam-se em risco em função da combinação perigosa de curiosidade com ignorância, tal como a que teve a criatura, que quis experimentar se a menina boiaria como uma flor. Quando a vê afundar, desespera-se e tenta retirá-la das águas de forma atrapalhada e inútil, resgatando apenas seu corpinho sem vida. O monstro porta-se como um bebê gigante, sem saber falar, sem entender direito o mundo, andando desajeitado, vaga mais perdido e digno de pena do que evocando terror.
O pai da menina leva a filha morta para a aldeia, que estava em festa, reunida para comemorar o casamento do Dr. Frankenstein. A cena da chegada do cadáver da criança, nos braços do pai desesperado, que vai estragando a festa por onde passa e transformando os aldeões em uma multidão de linchadores, é antológica da história do cinema. Quando ele chega lá todos compreendem o que aconteceu e saem à caça do monstro.
Trata-se de cinema para as grandes massas e essa história trágica precisa terminar bem: o monstro tem que ser eliminado, pois ele é um equívoco científico e o casal de protagonistas, o cientista e sua noiva, deve dirigir-se para um final feliz. As intermináveis conversas e encontros entre o monstro e o Dr. Frankenstein, que fazem o núcleo do romance de Shelley, estão eliminados. Além disso, agora ele se limita a uma visita a Elisabeth, sendo que nesse encontro, ao invés de ser assassinada apenas desmaia. Antes do cerco final, a criatura encontra seu criador e após uma luta ele carrega-o consigo para um moinho, mas o cientista escapa. O desfecho é previsível. O monstro acaba acuado em um velho moinho, em cujo interior ele é queimado vivo. Trata-se de um bem-sucedido exorcismo coletivo. Mas que demônio se expurga nessa cena?

Qual mito?

Se Frankenstein é um mito, a pergunta é qual seria, no sentido de sua filiação, ou então ele seria um mito novo? É claro que podemos ver traços de outros mitos nele, como o de Doutor Fausto, por exemplo. Afinal vemos uma equivalente paixão pelo conhecimento no Dr. Victor, já o monstro de Shelley lembra Mefisto pela eloquência, mas por certo essas comparações não dão conta da totalidade do tema, são pedaços de um todo mais complexo. A própria autora tenta nos convencer que se trata de um Prometeu moderno, isso está inclusive no título da novela. Provavelmente no sentido de uma insubmissão ao estabelecido, pelo roubo dos poderes e saberes celestes, e do castigo por tal ousadia, ou ainda de uma revolta contra uma autoridade despótica. Mas nada disso dá uma explicação da totalidade, apenas acrescenta aspectos. Nem a ideia de um Pigmalião sinistro, como já foi lembrado, nos traz muita luz, é apenas uma referência.
Certas interpretações colocam Frankenstein na categoria do Duplo. Parecem certas, pois não faltam elementos que apontem nessa direção: a criatura, como não tem nome, acabou sendo conhecida então com o nome de seu criador. De certa maneira, eles compartilham o significante, sugerindo que redundem no mesmo significado que se desliza entre eles, se completa. O monstro não tem infância, ele nasce adulto, possui quase a mesma idade de seu criador, não há uma geração que os separe e o fim de ambos é desaparecer no Polo Norte.
A criatura só se reporta ao seu criador, suas conversas são o centro do drama. Só o Dr. Frankenstein praticamente vê seu monstro. Cada um à sua maneira, os dois estão fora do sistema, ele não é aceito pela comunidade científica, por suas crenças, enquanto a criatura é fora de tudo, de uma genealogia, de um lugar no mundo. Os dois têm sérios problemas com a alteridade que o sexo coloca, são celibatários, os casamentos não se consumam, pois um mata a noiva do outro. Existe a espera de uma mulher, mas ela nunca chega de fato. Ou seja, nada de sexo, nem para nascer nem para nada. Os dois acabam ilhados em si mesmos, um fixado na destruição do outro.
Se de fato essa história pode nos dar então uma radiografia dos dilemas de uma alma partida, ela nos deixa sem respostas a uma questão central do romance: tanto a criatura pede o tempo todo que seu criador seja um pai para ele, que lhe dê um lugar e lhe diga por que o fez, quanto Dr. Victor foge várias vezes por não se mostrar à altura dessa empreitada. Nesse quesito a questão do duplo nos deixa sem respostas, não faz sentido ver apenas um homem acusando a si mesmo por não conseguir encontrar sozinho respostas para suas inquietudes. Como alguém pode acusar-se de abandonar a si próprio, de não ter cuidado de sua infância e educação? Existe uma reiterada denúncia da falta de ascendência, da falta de transmissão de uma educação efetiva. O monstro pede um lugar e pede para ser amado, é por ter esses direitos negados, dos quais ele se julga merecedor, pois não pediu para nascer, que se torna malvado.
Mas o que a criatura pede a Dr. Victor? Sem nome para se fazer valer, em outras palavras, sem origem ou, ainda, sem um passado para reivindicar, o monstro é um sujeito pós-revolução francesa. Filho da ciência nascente, ele é mais um herói do individualismo, afinal ele é único e ilhado, não tem pares, é inédito, desenraizado e intelectualmente muito lúcido.
As interpretações em que lançamos a ideia do duplo são onde o drama se desenvolve quando a um aspecto da personalidade não é permitido aceder à consciência do sujeito. É a cisão da personalidade que cria o duplo, ou seja, uma parte não quer saber da outra, o duplo é o outro de si mesmo. Como no caso clássico de Dr. Jekyll e seu duplo, o monstro Mr. Hyde, o qual, como diz seu nome, é a encarnação da face escondida do médico. Ou ainda como temos em Oscar Wilde no Retrato de Dorian Gray onde apenas no retrato a face narcisista da personagem envelhece. O que ele não suporta da alteração que o tempo faz a seu corpo está jogado para fora, não é reconhecido. Essa questão de uma suposta cisão da personalidade não é o aspecto mais relevante em Frankenstein, embora de fato caiba ao seu monstro o trabalho sujo do mal. Entender o monstro como a parte recalcada de uma suposta agressividade homicida, ou a personificação da sua melancolia renitente, ou ainda uma tendência antissocial é uma possibilidade, embora não abarque todo o sentido da obra.
A nosso ver, o aspecto central de Frankenstein é a procura por um pai, no sentido de alguém que forneça um lugar na sociedade e na genealogia, pois justamente estava-se em um momento histórico em que o lugar de onde provem a autoridade paterna sofria profundas mudanças. Na época do nascimento desse mito, início do século XIX, a Europa assiste ainda aos desdobramentos imediatos das revoluções industrial e francesa, à queda de várias monarquias, enquanto a autoridade da igreja começa a sofrer fissuras. Além disso, a autora, Mary Woollstonecraft Godwin Shelley, é filha de dois importantes pensadores dessa época, sendo que sua mãe, falecida em consequência de seu nascimento, foi uma das primeira feministas da história. Educada por seu pai com uma liberalidade inédita para seu tempo, sem uma mãe para identificar-se, a jovem escritora tinha todos os motivos para compreender os sofrimentos de uma criatura ímpar, inédita e sem referências palpáveis no mundo em que vivia.
Ora, o pai, ou melhor, sua função na estruturação de cada indivíduo, também é marcado por isso. Em um tempo de tantos rompimentos, apenas ser filho de alguém já não possui o sentido de antes. O sujeito da modernidade não se faz mais pelo nascimento, por quem seria seu pai, mas pela sua trajetória, pelas suas escolhas, pelo que ele consegue fazer de sua vida. Somente no seguinte sentido poderíamos compreender pai e filho como duplos um do outro: irmanados no desamparo, eles se repetem no sofrimento do pai que se sente órfão do próprio pai, do filho que acredita ter um pai insuficiente, no desencontro entre o desejo e a realidade que caracteriza a função paterna.
Há uma lição que é repetida inúmeras vezes nos mitos: um homem não pode fazer o que é atributo dos deuses. Criar um ser do nada, fazer algo vivo da matéria inanimada ou ressuscitar mortos é atributo divino, se os homens assim procederem, com certeza farão isso de modo imperfeito e seus resultados serão monstruosos e se voltarão contra o criador. Temos com Frankenstein uma versão agora científica deste mito de criar ou prolongar a vida. Frankenstein é o mito da onipotência da ciência, transposta para uma suposta onipotência paterna. É o fracasso atribuido àqueles que hoje responsabilizamos por apontar a direção que devemos tomar. Em seu encalço caminharemos até o Polo Norte.

O que quer um homem?

O feminismo não combate os homens, pelo contrário. Ele traz para ambos os sexos uma consciência do peso dos clichês, aos quais nenhum de nós nunca se ajusta. Portanto, o feminismo liberta os homens.

Bicha, boiola, maricas, frutinha, boneca, fresco, veado, não faltam palavras para os que fogem, mesmo que por detalhes, dos clichês da macheza. É tão vasta a riqueza de nomes para definir esses “desviantes”, como é para nomear uma mulher que não seja recatada e do lar. Só isso já nos dá uma pista de que os privilégios masculinos custam caro demais.
Imagine se os homens não precisassem viver provando sua virilidade. Se pudessem libertar-se da frigidez emocional, sentir, chorar. Se não tivessem sua sensualidade restrita ao pênis. Se fizessem o exorcismo da sina da ereção eterna. Seria a libertação de uma cultura que os obriga a viver presos em uma carapaça pesada e inútil.
Na mesma fogueira destinada aos sutiãs, eles jogariam anabolizantes, alteres, viagras, ternos duros e gravatas sufocantes. Os que foram discriminados pela falta de simpatia pela bola, iriam incinerar as camisetas do time que nunca conseguiram amar. Nunca houve uma grande queima ritual de sutiãs, é uma referência simbólica. Foi nossa imaginação histórica, que associa mulheres com bruxas, que a recriou.
Tais militantes homens da causa, sofreriam o peso da condenação social, como ocorre até hoje com as mulheres que não são virginais e submissas. As que polemizam ainda são vistas como vadias, frígidas, mal amadas, movidas pela inveja do pênis e recalques variados.
Ao nascer você recebe um nome e é encaixado em uma das duas categorias. Ao contrário das perguntas que possamos fazer-nos sobre como ser, no que acreditar, em nome do que existir, a masculinidade e a feminilidade estão fadadas a ser o paraíso da previsibilidade. Desde nossa certidão de nascimento até o atestado de óbito, vai ser preciso marcar com um X o sexo ao qual pertencemos. Aferramo-nos a essa divisão binaria porque duvidar cansa, dá medo.
Estudando história, descobrimos como as certezas científicas e morais sobre as características do homem e da mulher podiam virar até o oposto do que se acreditava antes. Comicamente, continuaram sendo apresentadas como verdades eternas, naturais e universais.
Quantos meninos foram rejeitados pela família ou desprezados pelo pai? Quantos foram fisicamente agredidos, até abusados? Quantos tiram a própria vida por isso? Quanta solidão, por medo de ser considerados próximos das mulheres? Quanto ódio para nunca serem taxados de fracos e submissos?
A guerra dos sexos está na origem da epidemia de femicídios e cobra sua cota de vidas dos dois lados das trincheiras. A violência masculina faz vítimas em suas próprias hostes.
Eles passam dizendo que não sabem o que uma mulher quer, as acusam de eternas insatisfeitas. É que, com suas lutas, elas aprenderam a colocar isso em questão. Sonho com o dia em que também um homem possa duvidar do que, afinal, ele quer.

Tempos de virada

Aproveitar a longevidade é uma aventura.

Ele tinha vinte e sete anos quando chegou ao meu consultório, decretando ser essa a idade de tornar-se adulto. Explicou que eram quase trinta, mas ainda havia tempo de tomar algumas decisões antes do momento que considerava “fatal”. Também avisou-me que uma pessoa pode chegar a ter “umas sete grandes viradas” ao longo da vida. Chamava assim os momentos em que se precisa repensar tudo, colocar em questão as próprias bases.
Na época, ele fez jus à sua ideia das viradas. Saiu de um casamento precoce e infeliz, encontrou a companheira de seus sonhos e especializou-se em algo que tinha tudo a ver com ele, não por acaso, a simulação. Esse é um ramo em que, por exemplo, tenta-se prever os efeitos de uma alteração sobre a linha de produção de uma fábrica. Portanto, modificar para melhorar é sua paixão. Esses dias, com menos cabelo e quase duas décadas a mais, reapareceu para reavaliar novamente sua vida. Brincamos entre nós de que ainda lhe faltavam umas três viradas.
O aumento da expectativa de vida trouxe um impasse interessante: as decisões que implicam em mudanças de destino na vida de pessoas já maduras. Quando um adulto contemporâneo chega próximo à idade na qual seus antepassados estavam encaminhando-se para o fim, ainda pode dar-se ao luxo pensar ao que irá dedicar-se. É possível que possa viver ainda algumas décadas, o que fazer com elas? A possibilidade de passar todo esse tempo em frente à televisão esperando a morte chegar não é atraente. Como nem só de trabalho somos feitos, os pactos amorosos também são questionados, revisados ou revogados. Para alguns é inclusive época de viver amores nunca tentados. O velho fim é um novo começo.
As tais viradas, as sete que meu jovem paciente apaixonado por números havia anunciado, podem ser pensadas em termos de decisões de grande impacto, mas também em um sentido mais sutil. Por vezes significam meras mudanças de ritmo, de ponto de vista. Para os mais ousados, é tempo de abrir os olhos para o que acreditávamos que fosse impossível desejar. A novidade é que temos mais ocasiões e mais prazo para tentar, o que não é o mesmo que simular.
Na indústria pode-se prever os efeitos de cada inovação. Já na vida é preciso ousar sem o expediente tranquilizante de simular resultados. Reavaliar-se demanda uma escuta fina e destravada de si mesmo, só assim para descobrir o que estamos querendo de forma enviesada, inconfessa, canhota. Somos estranhos ao que expulsamos da nossa consciência, por isso mudar dá tanto medo.
Os antigos vivam menos, trabalhavam na mesma firma, no mesmo ramo e casavam para sempre. A experiência mais de uma vida em uma única existência é uma conquista, mas aproveitar essa longevidade é uma aventura.

Amigos para não conversar

Uma amizade, um encontro de empatias,uma escuta profissional, são diferentes níveis de compreensão, que não implicam em uma escala de falas mais ou menos profundas. Por vezes amigos precisam calar e desconhecidos acabam se dizendo tudo. Profissionais ajudam a pensar, mas viabilizam um encontro amistoso consigo mesmo.

Quando ficamos abalados, seja por motivos graves ou apenas pelas maluquices costumeiras, nem sempre precisamos de um bom papo. Um amigo para não conversar, junto de quem possamos ficar em silêncio pode ser o maior tesouro. Nem tudo consegue ser dito: discorrer sobre nossas tristezas e angústias é sempre bom, mas só quando chega a hora de fazê-lo, o que às vezes demora. Às vezes falar dói tanto, que demoramos para ter coragem, como a hora de dar o puxão definitivo no curativo que temos que retirar.
Amigos de verdade são sensíveis para perceber quando andamos perturbados, mas conseguem abster-se de cobrar respostas. Cabe-lhes esperar, quando estamos fechados para balanço, que as portas voltem a abrir. Até as pessoas que costumam narrar sua vida em voz alta vão silenciar a respeito do relevante. Estas apenas preenchem o espaço sonoro para evitar ser interpeladas pelo próprio silêncio.
Os amigos precisam ser capazes de perdoar-nos pela inépcia, quando estamos sem condições de explicitar os motivos de um estado de espírito sombrio. Quem não suporta a falta de explicação para a dor, não banca nosso sofrimento, só quer tirar nossa tristeza do caminho e vangloriar-se pela presença salvadora. As vezes é necessário sangrar um tanto, sem recorrer a um consolo que nos coagule. Amar alguém é conviver com a própria impotência para fazê-lo feliz. Isso vale para todo tipo de vínculo: fraterno, erótico, familiar.
Acontece até que seja mais fácil explicitar nosso mal estar para alguém quase desconhecido, por ter percebido que a pessoa passa por situação similar. Fala-se a mesma língua de dores. Lembro de uma amiga que perdeu um bebê e encerrou-se em lágrimas e silêncio. Certo dia, soube de uma conhecida que sofria pelo mesmo e, mesmo que não tivessem maiores intimidades, descobriu-se contando a ela em detalhes sua jornada de padecimentos físicos, raiva, tristeza e vazio. Somente ao lado de outra mulher íntima àquele específico sofrimento foi possível deixar-se falar: uma disse à outra o que não haviam ousado enunciar nem a si próprias e choraram juntas. Depois, cada uma seguiu seu caminho. Não foi o começo de uma grande amizade, só um encontro de empatias.
Um terapeuta ou analista não substitui o amigo. Vamos em busca de uma escuta profissional quando estamos desconfiando de que há alguma coisa mal contada naquilo que traz infelicidade. Será que estou fazendo/entendendo algo errado? Também quando admitimos a necessidade de dar sentido a dores que parecem de tamanho errado ou fora de lugar. Já a orelha amiga está simplesmente a postos para acolher o frio na alma e ninguém gosta de cobertores tagarelas. Profissionais até podem cumprir essa função, em momentos de profundo desamparo do paciente, mas para os amigos a capacidade de caminhar em silêncio ao nosso lado é um atributo essencial.
(Publicado na Vida Simples em 2016)

O mágico resgate dos botões perdidos

Uma história de encontros e reparações.

Em uma data qualquer, ela chegou com um presente daqueles que mostram uma conexão mágica entre duas pessoas. Mesmo que nos encontremos pouco, sempre tive muita empatia com Elza, que é tia do meu marido. Ela viu em uma vitrine uma bola de isopor recoberta de botões antigos e, sem saber por que, decidiu que aquilo tinha que ser meu. Muitos, variados e coloridos, estavam distribuídos com arte, de modo que ao girar a bola era possível apreciar como era rico o mundo dos botões de roupa. Eles eram essenciais e reinavam quase absolutos até a popularização do zíper.
A compra da tal bola foi uma aventura à parte, pois ela não estava à venda, era decoração da vitrine. Para piorar as coisas, a proprietária do estabelecimento alegava que havia sido feita a partir da coleção de botões que herdara de sua avó, portanto, impossível cedê-la. Não tenho ideia como conseguiu convencê-la, mas Elza acredita que venceu graças à sua determinação. Sabia que devia levá-la para mim, embora não compreendesse o motivo.
Ao receber aquela estranha bola, quase desmaiei. Perguntei-lhe se alguma vez havia lhe dito da falta que sentia da “meia de botões” da minha avó. Eu não tinha registro dessa conversa, nem ela. Mas, sabe-se lá, vai ver que ambas esquecemos, já somos meio velhuscas. O fato é que existia uma maravilhosa meia velha, recheada dos mais variados e incríveis tipos de botões, que morava em uma gaveta da máquina de costura da minha avó. Era um desses carpins masculinos, agora encardido, um envoltório feioso que guardava seu tesouro multicor.
Quando criança, fazia qualquer coisa com aqueles botões: composições, classificações, personagens, eles eram bons companheiros da minha imaginação. Posteriormente, quando minhas filhas chegaram à idade de aprender a costurar, usamos alguns deles para fazer olhos e roupas de bonecas de pano. Um belo dia, a meia desapareceu e minha mãe admitiu tê-la posto fora em um arroubo de limpeza. Admito que meus pensamentos foram matricidas, mas fiquem tranquilos, ela sobreviveu.
Quando Elza se obsedou pela bola, pensou: “a Diana é psicanalista, escuta o que as pessoas só falam com seus botões”. O que ela não sabia conscientemente era que, no meu caso, os botões eram literalmente memórias de infância perdidas, que ela resgatou. Telepatia entre duas pessoas que se gostam? Memória de um diálogo esquecido?
O fato é que hoje a bola mora no meu consultório (e não está à venda).
Ela me lembra o tempo todo que ninguém perde definitivamente seus botões. Eles voltam de algum jeito, através das mãos daqueles que realmente nos escutam. Afinal, os assuntos sobre os quais “falamos com nossos botões” costumam girar em torno dos nossos “botões perdidos”.

Faz-se carreto

como mudar – de lugar, de vida – sem ficar desamparado?

Mudança é um caminhão carregando e descarregando pesados móveis, colchões, caixas de livros, panelas e brinquedos, malas de roupa, quadros. Ver o passeio desses objetos pela calçada é um pouco constrangedor e instiga a curiosidade. É como olhar dentro da intimidade daqueles moradores, condenada a desfilar em público, carregada em braços desconhecidos.
As caixas têm dizeres, garranchos, títulos, são como um mapa para que seus donos amenizem a perda de referências. Os primeiros volumes a serem embalados costumam guardar uma lógica, códigos precisos. Por fim, roupas, papéis e objetos viajarão juntos, revelando a desestrutura da alma, verdadeiro estado daquele que precisa desmontar sua vida. Partimos de um lugar que costuma ser tão familiar como nosso próprio corpo, tanto que podemos percorrê-lo na escuridão sem medo. Embarcamos rumo a outro que parece que nunca chegará a ser tão pessoal e íntimo quanto o anterior.
Num primeiro momento, quando faz-se necessária a separação do que vai conosco, tropeçamos com o que tornou-se obsoleto. O balanço acaba sendo feito quando mexemos nas gavetas, no fundo dos armários. Esbarramos em caquinhos de memória que ficaram escondidos em algum canto, quietinhos, mensagens do passado escapando do descarte porque ainda tinham algo a dizer. Cada um desses restos pede uma despedida. Irão fora ingressos e passagens usados, contas que suamos para pagar, enigmáticas despesas insignificantes, bilhetes recebidos ou nunca enviados, fotografias sem álbum, roupas que já não servem, objetos quebrados esperando um conserto que nunca virá. Perdemo-nos em devaneios, caímos no labirinto em que cada uma dessas pontas soltas nos lança. Uma simples gaveta pode ter mil ganchos de memórias.
É preciso finalizar cada uma dessas pendências, descartando, classificando. Nossa vida encaixotada parece menor do que foi. Escolhas implicam em perdas, principalmente das ilusões. Vai fora o que ainda fantasiávamos que éramos e que tínhamos. Acondicionar também é descobrir quais partes nossas são mais frágeis, precisamos seguir com elas, mas sempre ameaçam não chegar inteiras. Levamos conosco também o que nunca foi nem será firme e forte. Também precisamos escolher o que nos é imprescindível, pois muitas caixas demorarão para ser abertas.
Ao chegar, ficamos acampados, rodeados pela desordem, estranhando os barulhos da noite, sem saber para que lado da cama colocar os pés ao acordar. Para mudar, tivemos que encarar o medo da perda de identidade, o risco de sentir-nos exilados, sem pouso. Não somos caracóis, sem casa não derreteremos ao sol e ao sal. Na verdade nossa capacidade de mudança é sempre maior do que apostamos. Com o tempo, nossa mobília interior vai tornando-se embutida, sob medida e parte conosco, sabemos o que em nós é objeto frágil e carregamos com maior cuidado, já descartamos muitas coisas e descobrimos que é possível viver sem elas. Se pudermos sentir-nos em casa dentro de nós mesmos, novos lugares sempre poderão ser um lar.

(publicado originalmente na Vida Simples de setembro 2016)

18/09/18 |
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