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ADOLESCENTES E O SEXO NA INTERNET (parte 3, final, do capítulo “Nativos Digitais” do livro “Adolescência em cartaz

Uma conversa sobre a ausente representação do erotismo, contrastando com a farta oferta de pornografia na internet. Um alerta sobre os efeitos traumáticos dessas imagens que podem ser excitantes, mas também duras, deixando um amargo tempero de passividade e submissão, principalmente feminina, como universal no sexo. Um alerta sobre cyberbullying, sobre os riscos, particularmente das meninas, de ser expostas, quando pensavam poder confiar. E sobre amores, inicial ou permanentemente virtuais, que chegaram à vida de todos nós, o que pensar sobre isso para os adolescentes?

SEXO NA INTERNET

Um elefante na sala

É engraçada a nossa cultura. Ao longo da infância, de um jeito ou outro, as crianças assistem na TV a centenas de assassinatos, destruições de carros, prédios, cidades, explosões variadas, esfacelamentos de corpos humanos. Nós até tememos que isso possa ser um problema, mas não criamos muito caso. Porém, basta aparecer uma cena de sexo na tela, que o escândalo está feito.
Quando as crianças brincam é o mesmo: elas são cheias de onomatopeias, colocam seus personagens de brinquedo em confrontos letais, em choques, estes voam longe e se estrebucham contra a parede, frente ao nosso plácido olhar. Agora, imagine se os personagens do brinquedo se lambessem, como fazem os animais entre si, ou esfregassem seus corpos um no outro. Rapidamente, se armaria um grande alarde, em busca do que estaria causando tais fantasias despropositadas nos pequenos. Não importa o quanto os psicanalistas tenham insistido na existência da sexualidade infantil, ainda nos surpreendemos perguntando-nos: de onde estariam tirando essas ideias?
A sexualidade e o erotismo são um elefante na sala sobre o qual ninguém diz nada e todos fingem não estar notando. Quando finalmente chega a adolescência, esse jogo se reverte e os pais e professores tentam ter conversas, às quais os jovens reagem com exasperação. As abordagens são por vezes suaves, entre diálogos diplomaticamente buscados, recomendando calma, coragem e cautela, por outras em clássico tom de sermão. Seja como for, os filhos raramente sentem-se tranquilos para abordar o assunto em casa e acham muito estranha a insistência em falar do elefante, que sempre esteve ali sendo tratado como invisível.
Quanto às escolas, quando há alguma educação sexual, raramente envolve algum tipo de debate livre. Qualquer discussão será barrada por um clima de vergonha e tabus, raramente orientada pelas verdadeiras curiosidades de cada faixa etária. O tom costuma combinar acima de tudo com as fantasias que os adultos projetam sobre os pequenos e os jovens. Já o esclarecimento, sempre bem vindo, restringe-se à fisiologia e anatomia do sexo e da reprodução. Não está mal, ao contrário, devemos estar muito informados desde o mais cedo possível sobre nosso corpo, assim como sobre as peculiaridades anatômicas e fisiológicas de cada sexo e sua maturação, de como se dá a fecundação, bem como quais são os perigos das doenças sexualmente transmissíveis.
Ao par dessas informações imprescindíveis, há muito mais do que falar: estão os temores relativos a ser ou não desejável, quanto a ser capaz de sentir prazer e como isso se faz, sente e expressa. As inseguranças quanto ao desempenho nessa intimidade tão sobrecarregada de expectativas públicas são tantas quanto ignoradas. Nos meios de comunicação existem sexólogos, médicos ou psicólogos capazes de dialogar livremente com os jovens e estes sentem-se tranquilos para perguntar, consultá-los e expor seus impasses. A grande popularidade desses interlocutores já indica de que há demanda de algo que na vida corrente é uma raridade: um adulto, técnico ou não, que consiga falar de sexo, até mesmo em público, sem tantas mesuras ou prolegômenos. A educação sexual é sempre difícil em função de que entendemos pouco o que nos move na intimidade, ou seja, podemos até ter uma certa liberdade para viver nosso erotismo, mas faltam-nos palavras para falar sobre isso. Ao par, temos medo de influenciar negativamente alguém em formação.
A vida sexual continua sendo um impasse para a maior parte das pessoas. A grande esperança da revolução sexual não aconteceu. Essa promessa vem desde a contracultura dos anos 1960. Acreditávamos que uma sociedade menos repressiva seria menos neurótica, que se as pessoas tivessem mais experiências sexuais seriam mais felizes. É claro que melhorou: temos menos tabus, acesso a mais experiências, menos preconceitos, porém, isso não nos tornou necessariamente tão realizados no campo sexual como supúnhamos que ocorreria.
A esperança do sexo como fonte de felicidade humana deixa a desejar. Sua falta é uma grande frustração, mas a sua presença, ou seja, uma vida sexual ativa, não entrega tudo o que nos prometeram. E pior, não raro as inibições sexuais driblam as liberdades conseguidas e reafirmam sua força. Ou seja, a sexualidade segue sendo fonte de neuroses. Ela não tornou-se, como era esperado, a panaceia para a angustia humana, pelo contrário, costuma estar associada ao gatilho desse sofrimento. O sexo é supervalorizado enquanto expectativa e é óbvio que as crianças e os adolescentes ficam capturados por suas promessas e querem saber tudo sobre tão interessante assunto.
As diferentes formas de gozo organizam nossas vidas: mesmo tratando-se de práticas que pouco têm de públicas, costumamos classificar e discriminar as pessoas de acordo com a forma como sentem prazer sexual e com quem. Quase não conseguimos falar diretamente sobre esse tema, mas deixamos clara nossa posição sobre desejar alguém do mesmo gênero ou não, sobre a prática do sexo ocasional, e interessa-nos sempre a aparente potência ou sensualidade dos outros.
Abordar os temas do amor e do erotismo juntos, até mesmo entre amigos íntimos, exige uma capacidade de introspecção, de honestidade consigo mesmo e com o interlocutor que com frequência nos fogem. Imagine fazer isso no terreno pantanoso da comunicação com um adolescente. Não seria tão delicado se deixássemos o diálogo fluir a partir do que ele consegue e precisa debater, mas entendemos que muitas vezes é uma delicada percepção das oportunidades que se abrem para fazê-lo e nem sempre conseguimos perceber a tempo quando uma brecha surge. Frequentemente as perdemos face às nossas dificuldades em lidar com o tema e com a ideia de que no lugar da nossa criança está surgindo alguém que fez ou fará sexo!
Isso não é uma falha pontual, é uma problema da nossa civilização carente de uma cultura e uma arte eróticas, no que outras foram ricas. Depois de ter inventado mil exorcismos morais e religiosos para o prazer sexual – principalmente o feminino – acabamos impedindo a construção de um discurso positivo sobre ele.
A pornografia, que esbalda-se em imagens e roteiros estereotipados e explícitos, reina nesse terreno que deixamos baldio. Sua banalidade quer fazer parecer simples e unívoco o que é sutil e complexo, ela nos conduz a uma experiência erótica de parca interação, entre corpos vistos de modo fragmentado, envolvidos em desempenhos sexuais atléticos. Essa simplificação não cumpre o objetivo de nos tranquilizar, pois a sensualidade que habita nossos corpos e anima desejos e fantasias continua pobremente representada. Se nós adultos ainda somos tão atrapalhados para expressar-nos nesse território, mesmo depois de sermos supostamente experientes, o que resta aos iniciantes?

Pornografia ao alcance de um click

A pornografia e o erotismo são primos distantes, mas às vezes, confundimos os dois. Os limites podem parecer tênues, dependendo da subjetividade de quem vê. O erotismo pode ser usado com fins pornográficos, e algo pornográfico pode ser sentido como erótico. Para a psicanálise, a pornografia é uma espécie de recurso utilizado quando o desejo recorre a uma fantasia emprestada para animar uma relação sexual. Ela também serve quando a questão de olhar e ser olhado é parte essencial do que anima os envolvidos, também funciona como oportunidade para uma espécie de sexo grupal imaginário. Ela pode ser uma espécie de aditivo, uma muleta do Eros, uma tentativa de viabilizar a relação sexual ou fornecer um cenário para a masturbação.
O erotismo, por outro lado, é a poética possível do desejo sexual. Ele incrementa um desejo que já existe, dando-lhe uma dimensão maior e possibilitando um ato sexual. O erotismo lubrifica o encontro de subjetividades e seus corpos, sendo igualmente disponível para toda a gama de fantasias e desejos possíveis, só que nessa estética eles não são reduzidos às suas versões caricaturais.
A pornografia coloca em cena fantasias que as pessoas podem imaginar estar vindo de fora, quando na verdade elas provêm de dentro. Se uma pessoa assiste um filme pornográfico e se excita, ela pode pensar: “é um outro que está vivendo aquilo”. Mas, na verdade, essa pessoa está provavelmente contemplando o reflexo de uma fantasia interna reprimida. A pornografia tem dupla face: vende-se como algo liberal, quando na verdade pode estar sendo usada para recalcar as próprias fantasias de quem a consome. Mas isso são questões da sexualidade, qual seria especificamente o malefício de tanta pornografia facilitada ao alcance de crianças e adolescentes?
O encontro muito precoce com a pornografia vai deixar uma criança, ou mesmo um adolescente menos iniciado, com imagens e questões que ainda não consegue processar. Pode ter efeitos similares a um trauma, que é uma vivência que não temos como decodificar e portanto fica insistindo para ser assimilada. No caso da pornografia, muitas vezes o sujeito volta a assistir para processar, não é exatamente um trauma nem um vício, mas está preso a um circuito em que tenta dar conta do que se viu, justamente porque aquilo não diz algo compreensível, fica como puro ato sem contexto.
O drama da pornografia é o analfabetismo erótico e amoroso que ela pode desenvolver. A vida sexual não funciona com o autocentramento das fantasias masturbatórias, que parecem ser o cerne do funcionamento pornográfico. A redução do outro à condição de objeto até pode ser um jogo erótico acordado, mas na estética pornográfica costuma ser via de mão única. Além disso, o sexo é representado como fácil, automático e sem as arestas inevitáveis do encontro de duas ou mais subjetividades. Ela fornece um mapa não confiável para quem a usa, que atrapalha bastante ao aventurar-se mais tarde em experiências eróticas ou amorosas envolvendo pessoas reais.
Não acreditamos que a pornografia por si induza a novos comportamentos. Esse grande medo é infundado: ela mais representa do que causa, se a sexualidade é assim retratada é porque esse é o ideal majoritário. A injustificável presença de uma pornografia pedófila na rede, não transforma ninguém em pedófilo, ela existe para alimentar de imagens os que já têm essa fantasia. Por outro lado, a existência desses abusadores – mesmo que imaginários – de crianças acaba incentivando o abuso real necessário para a produção de tais imagens. Além disso, são imensuráveis os riscos do encontro de uma criança ou de um adolescente com imagens de pornografia pedófila. Neste caso, ao contrário das que existem para consumo dos entusiastas, pode sim produzir-se um efeito traumático, embora não supomos que possa causar diretamente o envolvimento de crianças em encontros desse tipo. Uma criança que assiste pode demostrar inquietudes ou até apresentar sintomas, por se perceber vulnerável. Afinal, isso acontece, ela viu.
Na ausência de uma narrativa, de representação artística do erotismo, ou mesmo frente à impossibilidade de debate sincero sobre a sexualidade, a geração que está iniciando-se acaba utilizando a pornografia como uma espécie involuntária de tutorial. Fica então espelhando-se em um sexo mais distante e frio, justamente porque não costuma ter um enredo plausível, retratar um verdadeiro encontro. Ela é problemática por estreitar a gama de possibilidades do imaginário sexual dominante e transformar o ou os parceiros em objetos manipuláveis. Seus clichês de enorme difusão são responsivos da grande demanda dos que os consomem.
O mundo nunca precisou da pornografia para ser machista ou sexista, mas ela vem a somar nos mal entendidos da Babel do sexo, onde o prazer feminino é praticamente desconhecido e as crianças são usadas para o exorcismo do desejo ambivalente de ser passivo. Na colocação de mulheres e crianças na condição de puros objetos, o que está em jogo, para além do sexo, são as relações de poder no mundo real, essas sim são perigosas e problemáticas.
Esse pode ser mais um caso em que culpamos o meio pela mensagem, a virtualidade pelas fraquezas e perversões humanas, as quais existem muito antes de haver suporte material para pornografia. Pode ocorrer que alguns aspectos dela tragam à luz fantasias obscuras de que o consumidor não se dava conta, iluminando um campo escuro do seu ser. Talvez esse encontro com imagens de suas fantasias mais escondidas possa fazer com que alguém se sinta legitimado a realizá-las, mesmo que envolvam comportamentos abusivos, é uma hipótese a considerar, mas é difícil afirmar com certeza. O uso instrumental do outro, ou seja sua desumanização, não precisa passar pela pornografia e quando passa, já estava dado na estrutura de quem faz.
É preciso ter uma consistência pessoal diminuta para constituir uma identidade, um modo de amar e desejar e um sistema de valores a partir do caleidoscópio de imagens, de pedaços de corpos e vinhetas de gozo provenientes do material pornográfico. Essas pessoas limitadas podem até existir, mas não constituem a massa dos consumidores dessas fotos, vídeos e relatos. Para essa maioria, a pornografia não produz uma alteração do quadro erótico do sujeito, apenas alimenta e por vezes o mantém preso às suas estereotipias. Ninguém vai se tornar um zoófilo depois de ver um vídeo de zoofilia por engano e tampouco vai consolidar uma via de desejo somente por estar assistindo essas imagens. Desenvolver obsessões monotemáticas no campo sexual é uma de nossas defesas prediletas.
Não acreditamos que com a Internet a pornografia tenha mudado. O que mudou foi o meio e a facilidade de acesso. Existe algum meio conhecido que não tenha sido usado para o sexo? Qualquer um que inventarmos servirá para veicular fantasias sexuais, sejam elas eróticas ou pornográficas. A novidade está na possibilidade de acesso, pois a internet distribui qualquer conteúdo com muita eficácia. Se associarmos a isso o fato de que os recém chegados ao mundo têm acesso à rede de forma sempre mais eficiente que os que seus predecessores, teremos um fenômeno de difícil controle.
Mesmo que sejam acionados inúmeros dispositivos de controle parental, será praticamente inevitável o encontro na internet de mentes despreparadas com alguma imagem forte, pornográfica, de difícil decifração e grande impacto. O que fazer para ajuda-los a decodificar essa oferta de um retrato tão pouco amigável e factível do sexo? Seguramente, resta aos adultos responsáveis por zelar de crianças e adolescentes fazer uma contrapartida ativa que não se limite às atitudes de censura de conteúdo impróprio para a faixa etária. É preciso falar sobre sexo, permitir a circulação de obras literárias que retratem com o encanto da arte os prazeres e revezes da iniciação, permitir a circulação das dúvidas e a construção coletiva de uma narrativa erótica juvenil, condizente com as experiências que eles estão buscando. Ou seja, é preciso desenvolver e implementar uma educação sexual, seja lá como for. É necessário estar um passo à frente do encontro com essas imagens.
Nesse mundo digital onde os adolescentes movem-se tão bem, há um território inventado por eles e pelos jovens adultos, que é a construção de fanfics (fanfiction ou ficção de fã). São histórias escritas e partilhadas em sites dedicados a essa arte, onde parte-se de personagens já existentes, dos quais o autor é fã, provenientes da literatura, cinema, quadrinhos ou games, que são envolvidos em tramas ao gosto dos criadores. Eles apropriam-se dessas identidades para levá-los a cenários e cenas que não fazem parte do roteiro original, mas nas quais os fãs gostariam de vê-los.
O detalhe é que boa parte dessa produção escrita dedica-se a conteúdos eróticos, prova da sede que essa faixa etária tem por uma narrativa dessa índole. Além disso, a riqueza de material disponível derruba todas as teorias que vaticinaram que a disponibilidade de imagens mataria a capacidade de expressão verbal e escrita dos mais jovens. Estes não só consomem literatura, quando esta vai ao encontro de seus desejos, como a tomam de assalto, ao seu modo interativo e de cada conto aumentam muitos pontos. Algo interessante de notar é que a revolução digital fez com que essa geração escreva mais do que a anterior, pois nas redes, blogs, nos múltiplos sistemas de mensagens, escreve-se.
Os apocalípticos de plantão já haviam previsto que as gerações nascidas após o império da televisão ter se estabelecido na vida das crianças seriam analfabetas, disgráficas, empobrecidas. Isso não ocorreu. Depois disso, quando as primeiras redes sociais e sistemas de mensagens começaram a proliferar, vaticinou-se a destruição da gramática e da capacidade de expressão. A literatura infanto-juvenil na sua forma de livros impressos, em geral em grandes ou numerosos volumes, cresceu enquanto mercado junto com a internet, portanto, deve haver algo de errado nessas previsões. É evidente que a língua, que é viva e sempre em transformação, passa por modificações que são agora motivadas pelas vias digitais de expressão, porém isso é a normal plasticidade das palavras, que precisam adaptar-se, modificar-se para dar conta de narrar situações que antes não existiam.

Sexo privado em público

Uma imagem jogada na rede fica para sempre. Esse é um elemento essencial sobre o qual precisamos conversar com nossos jovens ao falar de sexo. Mais versados do que seus mais velhos nas experiências do cyberbullying, eles deveriam teoricamente saber que é arriscado enviar fotos do próprio corpo, os famosos nudes, para as pessoas com quem estão envolvidos. Fazê-lo é tentador, principalmente para os adolescentes. É uma forma de receber um olhar que os confirme como desejáveis, prontos para o jogo do sexo. Essa afirmação lhes parece atraente e mais fácil de suportar por ser intermediado pela tela, estando ainda longe do risco de serem tocados.
Estar pronto para ser olhado não significa de modo algum que se esteja pronto para ser tocado. Além disso, na fotografia a cena pode ser bem editada, recortados os melhores ângulos de si, congelando o olhar em uma imagem que tenta parecer ideal. Ao vivo estragamos tudo, mesmo que se tente repetir os gestos ensaiados dos clichês pornográficos, sempre teremos uma pele menos lisa, volumes nos lugares errados ou a falta deles, inspirando a implacável autocrítica. É hora de lembrar-nos também que o corpo é cada vez menos algo privativo, pelo contrário: ele tornou-se arena de conflitos, disputa pessoal em que precisa-se dar conta de rigorosas regras a respeito de sua forma, peso, cores e estatura, versus a inflexível realidade, que insiste em sua inadequação aos padrões tão rígidos.
Os espartilhos e sutiãs com armação e enchimento, em vez de desaparecer chegaram ao cúmulo, através das plásticas e próteses mamárias, de serem colocados dentro do próprio corpo, não são mais desvestíveis. Assim como as fotografias, o cinzelamento e a escultura do corpo visa uma imagem que se quer imutável, próxima da perfeição. Os padrões tendem a uma estética desnaturalizada, cheia de caprichos, que ao serem seguidos demonstram uma condição de obediência e conformidade. Estes têm a ver com o realce das zonas corporais mais cotadas, assim como é imprescindível o apagamento sistemático das marcas da passagem do tempo.
Um corpo assim trabalhado fornece a seu proprietário uma tranquilidade, no sentido de que ao ser exposto não constituirá um vazamento de sua intimidade, mas sim uma prova de sua adequação aos padrões exigidos pelo desejo dominante. As formas ideais são tão improváveis, que, salvo exceções, em nenhuma época da vida alguém se parece com o que deve ser. Por isso, mesmo os adolescentes precisam operar-se, exercitar-se e tomar substâncias para atingir tal forma. Lembramos aqui essas particularidades, porque após essas modificações estéticas a tendência é que se perca o sentimento de privacidade, visto que tão zelosamente preparou-se o íntimo para que faça bom papel em público. Frente a isso, é grande a vontade de dar a ver o que ficou bonito e a tendência é colocar essas imagens na rede, ou mesmo usá-las em diálogos sensuais virtuais. Isso não seria problema se a rede não estivesse lotada de lobos que caçam chapeuzinhos.
Essas intervenções corporais são diferentes das tatuagens, as quais tampouco podem ser retiradas e enfeitam a anatomia, determinando o percurso do olhar. Elas são uma marca sempre ímpar, tendem ao oposto da padronização. Estas também são uma forma de editar-se, como também são os cortes de cabelo, a maquiagem e a vestimenta. Porém, ao invés de seduzir através da evidência de estar encarnando um atrativo sexual convencionado, as tatuagens barram definitivamente um trecho de pele ao olhar alheio. Alguém que tenha um corpo muito desenhado nunca fica realmente nu. A tatuagem é uma tentativa de privatização paradoxal, pois expõe e oculta ao mesmo tempo. Faz parte de uma personalização de si, da busca de imparidade e de apropriação do corpo, de tal modo que ele tenha a própria identidade inscrita e a história pessoal escrita ali.
Tais manipulações corporais, assim como o perigo dos nudes vazados na rede pelos próprios retratados, evidenciam a relevância do corpo e do olhar do outro sobre ele. O corpo é arena não apenas para o exercício dos desejos, mas também de carências, conflitos e medos, por isso, tende-se a uma relação com ele cheia de sintomas e passagens ao ato, ou seja, nem sempre se faz o que se quer e se julga seguro e adequado. O mesmo ocorre com as experiências sexuais. Por isso, deve-se também tomar cuidado para impedir qualquer tipo de filmagem de cenas eróticas em que os jovens estejam envolvidos.
Casais que gostam de gravar ou fotografar imagens das próprias cenas sexuais não surgiram hoje, nem foram inventados pela internet. Trata-se de brincar com a presença de alguém olhando, que podem ser eles próprios, mas encenam a existência desse terceiro elemento. Também podem gostar de fantasiar com a exposição pública de suas ousadias eróticas, porém, todas esses prazeres imaginários, revelando que o olhar de fora é importante na cama para muitos, tornaram-se particularmente perigosos com a internet.
O que atrapalha e muitas vezes impede de tomar esses cuidados é o clima de confiança que o amor implementa, do mesmo tipo que faz com que contaminações de doenças sexualmente transmissíveis ocorram. Amor e sexo necessitam de entrega mútua para poder ocorrer, porém, a confiança requerida para viabilizar essa premissa nem sempre comparece onde era esperada. Desilusões amorosas envolvem não somente a perda do sentimento que ligava o casal, em geral a fonte da dor encontra-se associada à ideia de estar dormindo com o desconhecido: a revelação do ex-parceiro como alguém diferente do que se imaginava que fosse.
É por essa mágoa de sentir-se enganado, que tão poucas separações transformam-se em relações amistosas entre os envolvidos. Destes desencantos, a pior traição provirá do encontro com atitudes indignas, de colocação em risco e de exposição do outro: a chamada revenge porn – pornografia de vingança. Esta consiste em usar as imagens íntimas, obtidas em confiança enquanto a relação durava, para extravasar o ódio pela separação.
É uma conversa dura de se ter, consigo mesmo e com os adolescentes: sabemos que amar e ter prazer depende da capacidade de abrir a própria intimidade, por outro lado, tampouco ignoramos os imensos riscos provenientes disso. Talvez pequenas regras, como cuidados que a priori nunca devam ceder e o estabelecimento de parâmetros bem claros do que permitir e em que condições muito específicas fazê-lo, ajudem a situar-se nesse território, tornado com a internet bem mais pantanoso. Outra questão é auxiliá-los a entender que se eles não se cuidarem ninguém o fará, pois já não são crianças. Uma das questões duras com os adolescentes é que alguns querem crescer sem pagar o preço de cuidar de si mesmos.
Para cuidar de alguém é preciso estar um passo à frente. Não confunda isso com o zelo dedicado aos amigos mais próximos, esses serão amados e cuidados como uma família. Referimo-nos a um cuidado mais amplo, com familiares menos próximos e desconhecidos coetâneos. Esse é um traço difícil de encontrar na adolescência, geralmente porque estão mal conseguindo darconta de si mesmos. O bullying prospera tão fácil nessa idade justamente por essa atitude pouco solidária.
É preciso preparar nossos adolescentes para um ambiente que rapidamente pode tornar-se hostil. Uma imagem vazada vai ser divulgada exatamente por essas pessoas que ele esperava que fossem cuidadosas com eles. A maioria dos vazamentos de conteúdo intimo foi voluntariamente gravado, o que deixa o protagonista no difícil papel de reclamar por um cuidado que ele mesmo não teve ao permitir a existência dessas imagens.
Existem coisas piores, mas geralmente vindas de adultos, que conseguem imagens de crianças e adolescentes, para depois chantageá-las com pedidos de favores sexuais. É preciso deixar muito claro para aqueles de quem cuidamos: toda exposição vai cair em mãos erradas, não existe nenhum nível de segurança possível para conteúdos que passem pela rede. Tampouco é possível cortar a fonte, ninguém controla a internet. Não há alguém que possa retirar um conteúdo pois ele não é arquivado em um lugar e sim em muitos. Pode hibernar no computador de um desafeto e voltar à vida quando este quiser.

Corpos ausentes

A grande novidade da comunicação digital é a massificação da possibilidade de relações à distância, onde a presença e o corpo não equivalem. Para as pessoas mais inseguras em relação à imagem corporal esse lugar é uma dádiva, pois coloca em segundo plano o olhar que as inibe. Nos encontros iniciados virtualmente, as palavras, o estilo, certas afinidades chegam primeiro e firmam uma segurança no sujeito para que o corpo possa entrar em cena só depois.
Em alguns casos, nada raros, o corpo não chega nunca ao encontro, pois por vezes não se consegue ir tão longe com o personagem que está se tentando parecer. Todos temos a sensação de ser uma fraude, ela é universal, pois somos conscientes de que deixamos à mostra apenas uma pequena parcela do que sentimos, achamos e desejamos. Não poderia ser diferente, pois seríamos quase selvagens se pudéssemos expressar tudo e realizar os mais recônditos desejos. Porém, por vezes, essa sensação de ser um blefe domina a vida, ao mesmo tempo em que se desenvolve a arte de bancar o que se gostaria de ser dentro da internet.
É possível criar perfis falsos, avatares, ou seja, o personagem que nos representa, e caminhar por esse vasto mundo virtual sem o peso do corpo. Aliás, outros pesos podem ser retirados: a identidade sexual pode ser qualquer uma, pode-se brincar de outras possibilidades sem medo. Mediante esse disfarce, é possível realizar fantasias que na realidade poderiam ser desestruturantes, enfim, a virtualidade traz possibilidades de experimentação de baixo risco.
É como um permanente carnaval, onde podemos nos fantasiar-se do que se quiser e brincar à vontade, revelando com isso aspectos extraoficiais da nossa identidade, sem tanto medo de ser julgado por isso. Em ambos os casos, o disfarce protege a fantasia e seu portador. Nesse sentido, a internet tem vantagens, mas também desvantagens frente ao verdadeiro carnaval: neste último é preciso coragem para carregar uma fantasia no corpo e usá-la para viver alguma aventura; já na rede basta um teclado, uma tela e poucos minutos para montar um avatar convincente que vai sair por aí, virtualmente, mas tendo seus encontros que, de certo modo, acontecem, embora sem a força de uma experiência real.
Um avatar protege seu portador, porém acontecem coisas à personalidade com a qual se está brincando, as quais nem sempre se está em condições de entender ou bancar. O portador está jogando, mas seus interlocutores talvez não estejam. O risco, nesses casos, provém do impacto que causa no sujeito deixar-se levar por experiências que não imaginava, e pode assustar-se com coisas que descobre de si. Na mesma linhagem de experiências encontra-se o sexo virtual, filho da sua versão telefônica. Nestas formas de seduzir-se e até satisfazer-se, mesmo sem acesso aos corpos um do outro, os casais praticam um sexo seguro, no sentido de proteger-se fisicamente e de dosar o envolvimento tanto quanto julgam suportar. Porém, não é de forma alguma um sexo solitário, pois na masturbação entra em jogo apenas a própria fantasia e o outro comporta-se exatamente como a imaginação lhe ordena. Nos encontros na rede, mesmo com a ausência física é preciso negociar as fantasias de modo que a experiência seja satisfatória para ambos.
É natural que os adolescentes sejam quem mais abusa dessas possibilidades. Afinal, como estão fora do campo de tantas experiências, confinados à escola e à sua turma, a internet e seus becos escuros podem ser cenários de uma aventura erótica. Todas as idades podem beneficiar-se com esses recursos e sofrer com esses contratempos, mas é óbvio que para os adolescentes e jovens adultos, nativos da rede, essa questão traz uma sensibilidade peculiar. Eles têm sido mais jeitosos para mover-se nesse novo modo de estar no mundo, mas também têm ido ao encontro de perigos para os quais seus cuidadores não estavam prevenidos.
Para os mais jovens quase não existe um encontro ou romance que não tenha iniciado ou se consolidado através de mensagens e ou redes sociais. Já existe alguma etiqueta amorosa a respeito do assunto, embora seja bom precisar que, neste início de século XXI ainda estamos tentando deixar de ser trogloditas em termos de comunicação digital. Muitas das regras de bom comportamento e cuidados requeridos ainda estão por ser aprendidos.

FICÇÃO CIENTÍFICA

O medo das máquinas

A inteligência artificial, assim como ocorreu com as máquinas quando a automação industrial iniciou, fascina pelas inovações e possibilidades que introduz em nossas vidas, mas isso também assusta. Muitas vezes vemos os dispositivos que a suportam de modo animista, como um resto do pensamento infantil, que projeta características humanas no que é inanimado. É muito difícil para nossa compreensão, sempre meio fantasiosa, as vezes onírica, acreditar que algo tão genial e complexo como um computador seja meramente uma máquina. Essa fantasia encontra sua melhor expressão no filme, de 1982, Blade runner; o caçador de androides. Nessa história, robôs humanoides não somente nos imitam, mas também nos superam, e, à moda do monstro criado pelo doutor Frankenstein, acabam voltando-se contra seus criadores, os humanos que os escravizam.
Tememos que o feitiço vire e nossas máquinas acabem mandando em nós, ao invés de continuar ao nosso serviço. Além de atribuir a elas nossos sentimentos, lhes damos o estatuto de dileta criação, pois ainda somos fascinados pelos recursos que trouxeram à vida humana. Tal valorização as faz parecer filhos, cuja função é crescer, ir adiante e sobreviver aos pais, que necessariamente ficarão para trás, pelo caminho.
Várias obras marcantes da ficção científica são baseadas nesse risco que julgamos correr: perder o poder, e acabar sendo dominados pelos “filhos”. Projetamos sobre os seres e objetos inanimados a mesma rebeldia que se espera dos descendentes. Nessa via estão, por exemplo, 2001: Uma odisseia no espaço, O vingador do futuro e Matrix.
Matrix, filme de 1999 dirigido pelos irmãos Wachowski, retrata uma visão futurista distópica na qual a inteligência artificial assumiu o poder e transformou os humanos em corpos inertes, dos quais se abastece de energia. Ali os humanos são submetidos a uma vida irreal, ilusória, gerada pela Matrix, à qual já nascem aprisionados. Imaginam ter uma vida, quando na verdade apenas são mantidos sonhando que a possuem enquanto a Matrix lhes suga a vitalidade. A aventura do filme passa por escapar dessa prisão, constatando que a vida real é muito menos confortável, segura e bonita do que a realidade virtual, porém valiosa por ser verdadeira.
Evidentemente os heróis encontram coragem para manter-se fora da ilusão e ainda combater a dominação da inteligência artificial. Porém, há um jovem que não suporta a realidade e dá jeito de ser capturado e reconectado. Caso isso nos ocorresse, teríamos sido fortes para suportar a realidade hostil ou sucumbiríamos à mesma covardia, que permite passar a vida imerso em prazeres ilusórios ambientados em um mundo ideal?
O nome do filme evoca uma zona de origem, a ligação materno infantil. A palavra “Matrix” remete à mãe, ao útero onde ficamos ligados fisicamente a ela, assim como depois do nascimento estaremos psiquicamente ligados a quem cumpra essa função. Foi com a ferramenta matemática das matrizes que tornou-se possível organizar a enorme quantidade de dados processada por um computador. No filme, as cenas dos humanos sendo vampirizados pela máquina evocam uma vida intrauterina: eles estão nus, imersos em uma cuba de líquido, com vários cabos ligados ao corpo, como uma série de cordões umbilicais. Só que desta vez é a “mãe” Matrix que suga o “filho” humano. Há mais uma ideia infantil associada ao temor da inteligência artificial: ela poderia realizar nossos sonhos, viabilizar nossas fantasias. Ela nos ofereceria recursos similares aos que um dia encontramos na figura materna, o “espaço potencial” para criar aquilo que se tornaria nosso “eu”.
Em função das potencialidades e utilidade introduzidas em nossa vida a partir da revolução digital, é natural que, de certo modo, nos apaixonemos pelo que nos oferece tanta comodidade e recursos. Daí procede a ideia de que ocuparão nossas mentes, mas também o farão com nossos corações, como retratado no filme Ela, dirigido por Spike Jonze. Nele, um escritor solitário apaixona-se pela voz de um programa que funciona como assistente virtual, uma espécie de secretária, companheira e interlocutora. A inteligência artificial terminará por desmaterializar a maior parte dos nossos objetos, não surpreende o medo de que anule a presença real de nossos corpos, como ocorreu em Matrix, é um pesadelo que tem sua lógica.
Ninguém que já tenha visto 2001: Uma odisseia no espaço, olhou para seu computador da mesma forma. Esse precioso instrumento, que tanto nos ajuda, por que um dia não se tornaria o HAL 9000 e tentaria nos matar e tomar o comando? Afinal, os filhos, que são nossa mais incrível criação, não acabam igualmente fazendo algo similar? Eles se desenvolvem, enquanto nós regredimos em nossa potência e, por fim, estão destinados a testemunhar nossa morte. Essa pode muito bem ser uma projeção de adultos com medo de envelhecer, mas sabe-se lá, essas máquinas, que parecem tão mais espertas que seus usuários, assim como nossos filhos parecem tão mais eficientes que nós. Talvez fosse bom ficar de olho. Brincadeiras à parte, convém lembrar que é pouco possível que a inteligência artificial, que depende da inteligência real de um programador para existir, torne-se autônoma. Já os filhos, esses sim, seguirão adiante sem seus pais, menos obedientes que as máquinas.

ADOLESCÊNCIA E REDES SOCIAIS

PARTE 2 do capitulo “Nativos digitais”, do livro “Adolescência em cartaz: filmes e psicanálise para entendê-la” Aberto ao público para ajudar no debate sobre a imersão de nossos jovens confinados em seus meios digitais de existir

Achados e perdidos nas redes

“O que você faz tantas horas no Facebook?” Quando as redes sociais chegaram, os adultos faziam essa pergunta a seus adolescentes. Soava-lhes incompreensível: como se podia passar tanto tempo ali, fazendo o quê? Com quem? Com o tempo, muitos desses adultos acabaram entendendo por ter a mesma experiência.
Além da óbvias funções de comunicação, especialmente de divulgação da própria vida e de investigação da alheia, as redes sociais constituem, sem dúvida, a forma hoje mais à mão para o exercício da distração. Elas servem para ausentar-se de aulas, reuniões, eventos de família ou de qualquer outro ambiente em que se esteja, assim como para adiar tarefas de estudo ou trabalho.
Gerações de pais, anteriores à revolução digital, já resmungavam sua irritação frente à compulsão dos jovens para manter-se em contato e fugir dos deveres. Não foi a internet que inventou isso, apenas, o que não é pouco, tornou portátil o contato compulsivo com os pares a que tendem os adolescentes. Décadas antes, falavam a tarde inteira ao telefone com amigos ou namorados com quem passaram a manhã na escola. Não é novidade a necessidade sempre premente de encontrar-se e ficar todo o tempo possível apenas entre os pares. As redes sociais trouxeram um elemento a mais: o ambiente digital, no qual o adolescente parece estar só, mas está permanentemente acompanhado, embora, visto de fora, o contato pareça abstrato e irreal.
Os adolescentes conectados comunicam-se em tempo real: o vivido é narrado e partilhado imediatamente, independente de onde estejam. Falam entre si como se estivessem no mesmo recinto, enviam as imagens do local e mostram uns aos outros objetos e companhias, de tal modo que uma conversa pode envolver vários cenários e grupos. Nesse caleidoscópio de imagens e narrativas, observam-se uns aos outros como ocorreria em uma rua ou pátio de escola. Constitui-se, portanto, de fato uma outra forma de convívio.
Independente do que estiver ocorrendo, quer seja na aula, no trabalho, em família, durante um deslocamento, passando um tempo ao lado dos amigos ou até mesmo da pessoa que amam, talvez não consigam prestar toda a atenção na realidade. Para tanto teriam que desprender-se do aparelho que os mantém conectados com outras pessoas. Por vezes, ficam comunicando-se ininterruptamente com seus pares, por outras apenas passeiam dentro desse ambiente, que parece mais protegido e menos chato do que o do lado de fora.
As redes sociais tornaram-se ágeis ferramentas de comunicação, porém nem sempre quem entra nelas pretende estabelecer algum contato. É comum passar-se longos períodos em mero percurso errático entre perfis, investigando seus laços e características. Em geral essas buscas têm como mote indagações sobre amores que se quer conquistar, que se perdeu ou que se teme perder, seguidamente são motivadas por ciúmes. Também amizades possessivas ou rompidas motivam esse tipo de investigação, além de percursos aleatórios, movidos pela simples curiosidade de conhecer e compreender a intimidade alheia.
Isso pode ser similar a uma espécie de fantasia ficcional emprestada, quando o caminho é guiado pela história de uma pessoa ou um grupo, sendo levado por essas personagens como se fosse um filme, um livro ou os labirintos de um game. Mas também equivale a andar à deriva, zapeando. Zapear, é um jeito de ir a lugar nenhum podendo ir a todos ao mesmo tempo, talvez uma forma de expressar insatisfação através do uso do controle remoto. O gosto não está em ver alguma coisa, trata-se de exercer o direito de escolher, ou melhor, de não escolher nada do que é oferecido e continuar usufruindo do prazer das ofertas. É importante observar que para os usuários da televisão, chega uma hora em que os canais acabam e aquele que zapeia precisa recomeçar seu ciclo, já para quem faz isso na internet, seus caminhos são infinitos.
O tempo dispendido nas redes sociais recria esse hábito bastante difundido de ficar mudando de canal sem assistir nada, viajando entre pedaços de filmes, propagandas, frases, cenários, gestos e rostos desconexos. A princípio, a rede social pareceria uma oferta pouco variada, pois são apenas páginas contendo informações sobre pessoas produzidas por elas mesmas, que interesse poderiam ter? Quantas vezes vocês já escutaram uma frase como esta: “Fico olhando as páginas dos meus familiares, depois vou nas dos seus amigos, nos amigos dos amigos, quando vejo já é de manhã…”. O que parecia uma incomum prática adolescente, foi aliciando gente de todas idades. Essa forma sistemática de espiar a vida alheia é similar ao hábito das pequenas comunidades, conhecido como fofoca, no qual conta-se histórias de pessoas, com as tintas mais vibrantes possíveis visando o interesse do interlocutor. No caso das redes sociais, a edição da vida visando aumentar o atrativo e a visibilidade, é tarefa do próprio sujeito.
O Facebook, como seu nome retirado dos anuários de fotos dos alunos sugere, inaugurou-se tendo como alvo o contato entre estudantes e a busca de popularidade. Na verdade, em sua primeira versão, criada por Zuckerberg em 2003, não passava de um catálogo de estudantes de Harvard, principalmente do sexo feminino, a serem avaliadas e categorizadas pelos rapazes quanto a seus atrativos sexuais. Como uma febre, houve adesão maciça de extensas comunidades universitárias norte-americanas, que tomaram de assalto o programa inventado pelo jovem Mark, utilizando-o para comunicar-se, seduzir-se e informar-se uns sobre os outros. Essa rede, onde o prestígio dependia da aparência, foi ampliando-se até assumir sua identidade empresarial e a intenção de possibilitar contatos e gerar informações úteis aos cidadãos, negócios e estados. A expansão não precisou de muito esforço: voluntariamente ao redor do mundo as pessoas foram entrando no que inicialmente era um círculo de eleitos.
Até hoje essas ferramentas de comunicação digitais baseiam-se em galerias de faces, além de que fotografar-se e divulgar a imagem em algum tipo de rede social tornou-se uma obsessão adolescente. Mostrar-se sorrindo ou fazendo alguma careta típica do momento, dar notícias da atividade em que se está envolvido, com quem, o que se está se pensando e sentindo, é uma prestação de contas voluntária e cada vez mais compulsiva, aparentemente dirigida a um olhar global e onipresente. Talvez o objetivo seja bem mais restrito e antigo: a formação de uma comunidade de referencias mútuas.

Saudades da aldeia

Paradoxalmente, o motivo pelo qual os jovens possuem extensa rede social nas comunidades virtuais quiçá não seja exatamente uma novidade, mas sim uma espécie de retorno à forma antiga de funcionamento para a qual nosso cérebro sempre foi apto. Claro, não é da mesma forma, mas ainda trata-se do uso da capacidade social de situar e sentir-se à vontade em uma ampla rede de pessoas com diferentes pesos de significação. Isso se considerarmos do ponto de vista evolutivo, pois temos milênios de vida em grupos. Já do ponto de vista histórico mais recente, poderíamos ver algo semelhante: as redes sociais simulam a antiga aldeia, uma comunidade onde todos se conhecem e partilham informações.
A geração dos autores deste livro, assim como a de seus pais, cresceu habituada a conviver com o temor dos mais velhos relativo ao “que os outros vão dizer”. Tinha-se praticamente duas vidas: dentro de casa ocorriam conflitos e viviam-se dificuldades, enquanto frente aos parentes, vizinhos, colegas ou fiéis da mesma paróquia fingia-se ter uma família, um casamento, filhos e uma carreira perfeitos. O temor de ficar mal falado, assim como o empenho em fabricar uma imagem pública respeitável, motivava brigas familiares e críticas aos filhos adolescentes que se deixavam ver em comportamentos julgados condenáveis. Portanto, editar a própria imagem e a vida que se tem de modo que pareça melhor do que ela é não constitui nenhuma novidade.
O fato de vivermos em uma sociedade individualista, onde cada um se orgulha da sua imparidade e renega suas origens, não quer dizer que não tenhamos saudades das antigas formas de convívio. Quem sabe as redes sociais nos apontem o esgotamento, a pobreza, ou uma insuficiência das formas contemporâneas de estarmos – ou melhor, não estarmos – uns com os outros. Talvez elas constituam uma crítica espontânea e ingênua ao individualismo. Enquanto julgamos mal os usuários pela suposta superficialidade da conexão com seus amigos da rede, deixamos de ver a intenção de criar algo novo em termos de laço social, ou mesmo de retomar de algum modo a vida comunitária que está fazendo falta.
Do ponto de vista histórico, o número de pessoas que conhecemos durante a vida mudou muito. Vivemos em uma sociedade urbana que nos propicia contato com muita gente, mas com poucos deles temos laços significativos. Sabemos e temos informações sobre nossa família, que é cada vez menor, além de alguns poucos amigos eleitos. Frequentamos muitas pessoas, mas de poucas retemos informações significativas como o nome, filiação, aspectos do caráter e trechos de sua vida. Já não gastamos muita energia arquivando histórias de pessoas aleatórias, suas qualidades, seus defeitos. Em um passado não tão distante isso operava ao avesso: as sociedades tradicionais tinham a vida social em grande conta e as informações sobre os indivíduos que delas faziam parte eram cruciais, isso era o assunto principal e conhecimento insubstituível para se dar bem. Pouca gente, muitos detalhes, inverso à diversidade urbana, constituída de multidões de desconhecidos.
Do ponto de vista evolutivo, somos uma exceção recente no longo percurso do homem, caracterizado pelos fortes laços aos parentes, aos vizinhos e às amizades. A relevância atual das redes sociais certamente resgata a memória e os recursos cognitivos desse momento histórico anterior ao nosso. Nosso cérebro foi moldado, e assim funcionou durante a maior parte do tempo, em sociedades tradicionais, ou seja, conectado a uma complexa rede social, onde sabíamos tudo de todos. Ainda mais se considerarmos que havia um funcionamento distinto em relação aos mortos, pois eles não eram esquecidos, eram honrados e frequentemente lembrados em rituais. Portanto além do carrossel de nomes dos vivos, as gerações mortas também contavam no acervo da memória e tinham que ser mencionadas. Logo, evoluímos como espécie guardando um grande número de nomes, agregados ao lugar social de cada indivíduo.
Portanto, do ponto de vista evolutivo, tornamo-nos anômalos em relação ao que fez a aventura humana. Nossas capacidades sociais pareceriam atrofiadas se comparadas às sociedades de épocas anteriores. Somos introspectivos e solitários, aparentemente dependemos menos da aprovação alheia, já que os outros são genéricos. No entanto, a rede social pode fazer um semblante desse convívio quando alguém necessita desse olhar externo. Poderíamos supor que nossos jovens hiperconectados estejam buscando caminhos para a retomada dessa herança social: a vida em comunidade.
Se há uma questão a ponderar, visto que estamos lidando com fenômenos em transformação, seria sobre os efeitos dessa modalidade de oferta de contatos sociais. As redes dão oportunidade de estender alguma sociabilidade até níveis impensáveis, talvez maiores do que nossa verdadeira capacidade de estabelecer qualquer tipo, mesmo que muito remoto, de vínculo. Frente a isso, torna-se uma questão saber até que ponto estamos constatando a construção de algum tipo de tecido social e quando isso transforma-se em uma massa amorfa, um simulacro de sociabilidade. Questões para as quais ainda não temos respostas, afinal, frente a novidades das redes, somos criadores e cobaias ao mesmo tempo.

Tudo é falso

Uma das acusações mais corriqueiras é que nas redes todos são lindos, bem sucedidos, amados, felizes e estamos em um imenso feriado com sol. Ou seja, usaríamos uma fachada falsa para nos descrever. Isso é certamente verdade, mas quando não é assim? Na vida real faz-se propaganda de si mesmo o tempo todo, não mostramos nosso lado B, somente o A. Claro, existe uma exceção, os deprimidos: esses tampouco são autênticos, tentam constantemente provar aos outros que não valem nada, fazem o movimento contrário.
Somos seres sociais, precisamos uns dos outros, o prestigio é o nossos oxigênio, por que as redes sociais funcionariam de forma diferente? Diríamos apenas que essa construção da imagem ficou um pouco mais acentuada, mais explícita, os adultos de outrora fingiam não fingir. Como tudo fica registrado, visível, recortado e editado, as máscaras ficam mais à mostra para um olhar acurado. Somos mais caricaturais na rede, provavelmente pela não presença real do outro. Nosso “ego de domingo” expande-se mais fácil e ridiculamente por não encontrar limites. Talvez sejam dificuldades intrínsecas a um meio que ainda é rudimentar relativo ao que pode tornar-se, e recém começamos a usá-lo, somos todos novatos.
Por vezes vemos usar a palavra vício para descrever o uso abusivo das redes sociais. Pessoas que trocam a vida real pela virtual, concordamos, mas quem fez isso já tinha problemas na vida real. O vício no caso é em uma sociabilidade, tão mais compulsiva quanto falsa. São pessoas com dificuldade de contato, por medo ou falta de habilidades para relacionar-se, que usam a rede social para simular para si mesmas uma sociabilidade que era incipiente, nunca existiu ou perderam.
Ninguém que tenha uma boa rede real se limita à rede social digital. É justamente quando há essa falha na vida, que abre-se a porta para o excesso, tornando-se uma obsessão para aqueles que possuem uma existência desertificada. É interessante observar, que entre os que têm buscado sistematicamente no mundo digital uma compensação para a própria incapacidade de socialização, figuram um expressivo número de adultos e até alguns já idosos. Como os contatos na rede nesses casos são mais ralos, é preciso mais tempo e mais empenho para que ela consista e devolva ao sujeito a ideia que alguém o escuta, lhe leva a sério, se preocupa com ele. Esse raciocínio deve ser relativizado na adolescência, pois sua tarefa é encontrar sua turma: necessita-se como nunca de seus pares, é natural que vá passar mais tempo conectado do que os adultos. Para o bem e para o mal é mais fácil achar sua tribo através das redes sociais e, por exemplo, certos adolescente muito peculiares, tem uma chance a mais de encontrar outros com sua mesma sensibilidade.
O que sim pode ser falso nas redes sociais são as informações, mas isso para quem trocou o jornalismo pelos posts de pessoas afinadas a uma forma única de pensar. Vivemos em bolhas, acabamos convivendo mais com gente com as mesmas afinidades, mesma origem e classe social, que portanto pensa de uma forma similar. Esse fenômeno agrava-se com o auxílio dos algoritmos programados para isso. É a inteligência artificial que domina as redes, programada por empresas que têm interesse nesse tipo de comportamento. Nas redes sociais repetimos esse comportamento de grupo fechado. O fenômeno novo é a troca de informações que elas permitem, uma espécie de jornalismo sem jornalistas.
Antes, para nos informarmos sobre qualquer coisa dependíamos de jornais, rádios, TVs. Obviamente o controle político da mídia sempre existiu, mas temos alguma capacidade, nem que seja mínima, de questionar algo veiculado através de um meio impessoal como o jornal ou a televisão. Quando uma informação ou posicionamento provém de alguém com quem temos algum laço afetivo, o impacto disso é maior, quer estejamos de acordo ou não. Hoje os amigos facilmente funcionam como editores de textos e notícias uns para os outros, como estamos em uma bolha, o conteúdo fica restrito ao nosso pensamento, às informações que confirmem as crenças que já temos. Sem falar das notícias falsas, dos mitos pseudocientíficos, das teorias da conspiração.
Infelizmente, a sociedade de acesso livre à informação não parece melhor informada que as precedentes. O erro está em pensar o humano como um ser epistemofílico, ansioso por novas descobertas, conhecimento e não como um conservador que sente que novas informações desequilibram seu mundo. As pessoas abertas ao novo, que não se abalam com novidades que afrontam suas crenças, são uma minoria.

Navegando sem bússola

Se há um ponto de vista em que a internet pode ser um problema está em que não existe uma capacidade fácil e automaticamente auto-engendrada para categorizar, decodificar e apropriar-se de conhecimentos e ideias. A massa de informações e o percurso labiríntico por elas não soma, não decanta. Para compreender algo novo, é preciso inserir esse conteúdo em uma lógica pessoal, confrontar premissas e dados. Nascemos com inteligência para desenvolver essas capacidades, mas ela é intermediada pela relação com aqueles que nos inspiram e inquietam. Essa condição de pensamento beneficia-se muito de uma boa capacidade narrativa, a qual por sua vez depende de diálogos, conversas, debates, transmissão envolvente de conhecimentos históricos, compartilhamento de experiências artísticas. Aprender requer uma tutela instigante da curiosidade científica e, acima de tudo, uma escuta mútua e respeitosa entre grandes e pequenos, adolescentes e adultos.
Os pais temem a pornografia, mas há lixos bem piores ao alcance de poucos cliques. Teorias racistas, sexistas, antissemitismo, extremismos religiosos e políticos, apologia do terrorismo, discursos pregando ódio a uns e outros, em linguagem simples e ao alcance do entendimento de qualquer um. Os discursos mais insensatos são sempre banais, economizam a complexidade do mundo e oferecem-se barato para os mais imaturos, inexperiente e ignorantes.
Como dizia Umberto Eco, a internet deu voz a todos e também ao “idiota da aldeia”. Antigamente o público desses simplórios vociferantes restringia-se aos infelizes ouvidos do seus mais próximos, agora podem esbravejar a fúria de sua impotência nesse imenso megafone. O mundo é extraordinariamente complexo, isso é assustador para os jovens que percebem o trabalho que dá entender tudo isso, missão quase impossível. Aplainar o entendimento, através de ideias maniqueístas é muito sedutor, pois trata-se de encaixar tudo em um modo infantil de pensar. O detalhe é que mesmo as crianças facilmente abrem mão de um imaginário tão pouco complexo e, caso sejam estimuladas ao debate, podem chegar a ideias bem mais interessantes do que algumas bastante populares na rede.
Portanto, é melhor não deixar seus filhos e alunos sem certa supervisão, também no que diz respeito ao conhecimento. Como a evolução tecnológica é incessante e muito veloz, acaba ocorrendo uma sistemática inversão de certo tipo de sabedoria, que talvez possamos denominar melhor de habilidade técnica: os mais jovens tendem a ter melhor domínio dos dispositivos digitais do que seus mais velhos, passam as gerações e essa inversão tem persistido. Como as famílias desejam muito ver em seus descendentes sinais de genialidade precoce, a supervalorização dessa pericia técnica acaba sendo mais uma oportunidade.
Confundido essa habilidade com conhecimento, cultiva-se a fantasia de que as crianças e adolescentes atuais sabem, ou podem saber tudo, por ter tantos recursos de acessar todo tipo de fonte. Porém, qualquer um que já tenha feito uma busca na internet sabe que trata-se de uma arte, quanto mais se sabe sobre algo, quanto mais premissas de conhecimento e capacidade de abstração se tiver, melhores e menos banais ou suspeitas informações se encontrará. A internet não substitui os professores, no sentido de quem os oriente nesse mar de informação que aparenta possuir o mesmo valor. Uma das características da estrutura psicótica é o não ordenamento hierárquico dos saberes. Como se todas as teorias valessem a mesma coisa e estivessem em um mesmo plano. A navegação por essa vasta oferta de conhecimento sem uma bússola, representada por um interlocutor atencioso e melhor qualificado, leva-nos a riscos similares a essa patologia. Não surpreende nesse caso, que se difundam ideias descosturadas, delirantes, ou francamente paranoicas.
O escritor argentino Jorge Luis Borges nos falou do fascínio e terror que a oferta de um saber sem bordas pode causar. Seu conto O Livro de Areia apresenta um objeto que é como a internet avat la lettre. Trata-se de um livro mágico, que como a areia não tem começo nem fim: seu número de páginas é infinito, nenhuma é a primeira nem a última, nunca se consegue abrir na mesma página, pois estaremos fadados a jamais reencontrá-la. Aberto ao acaso, levava o leitor para um labirinto sem fim, do qual o personagem do conto tornou-se prisioneiro, a ponto de deixar de sair de casa e de dormir, por sentir-se incapaz de abandonar suas páginas. Horrorizado, considerou-o monstruoso e o deixou perdido entre as estantes da Biblioteca Nacional. Não podemos livrar-nos da internet, portanto, é melhor utilizar bússolas para enfrentar essa deriva.

Espelho, espelho meu

Se tivéssemos segurança a respeito do que parecemos, não seria necessária a presença de espelhos. A fotografia, sob a forma do auto retrato, vulgarizado como selfie, elevou os espelhos à máxima potência. Quando uma avó pediu à neta que fizesse uma selfie dela, querendo que esta a fotografasse com seu celular, causou uma gargalhada na jovem. Isso mostra o caráter geracional dessa mania. A senhora não compreendia a ideia de fotografar a si mesmo, pois para ela o retrato ainda simbolizava o olhar de outro sobre si.
Ao verificar constantemente nossa imagem nos espelhos o objetivo é indagar como somos vistos. Mas não se trata apenas de investigar, tentamos controlar essa visão ao editá-la através da máscara facial que se arma automaticamente quando nos olhamos, assim como através dos recursos digitais disponíveis. Maquiagem, caretas, detalhes, assim como a busca do “melhor ângulo de si” para colocar-se estrategicamente frente ao olhar alheio, são expedientes usados por quase todos.
Apenas as crianças não perdem tempo frente aos espelhos, pois sua imagem não lhes causa inquietudes. Para elas, pelo menos entre aquelas que sentem-se asseguradas no amor dos seus adultos, o olhar destes é suficiente para que não temam desaparecer caso não haja ninguém certificando sua existência. Ao crescer, perdemos a morada no olhar da nossa mãe, dos familiares que pareciam contemplar somente a nós. O problema é que em vez de independizar-nos, tornamo-nos carentes dessa acolhida.
O auto retrato será tanto mais ativo e insistente quanto maior for a insegurança a respeito da existência e permanência da nossa imagem. A credibilidade da auto imagem, por sua vez, depende da suposição de olhares interessados e que nos sejam amorosamente destinados. Não queremos dizer que os antigos seriam mais seguros de si do que os contemporâneos, talvez não tivessem o recurso de registrar-se ao alcance da mão. Para eles cabia unicamente ao espelho acolher a insegurança que passamos a ter depois da infância, a respeito da integridade da nossa imagem. Hoje tentamos domínio absoluto do registro dela, a espontaneidade é a grande vítima disso, pois mais do que viver, é preciso retratar e, principalmente, retratar-se na cena.
A obsessão com o próprio rosto, ou corpo quando ele é motivo de orgulho, só cede espaço ao retrato dos filhos, que atualmente substitui o olhar familiar. Para os pais contemporâneos não basta ver, querem registrar e mandar imediatamente para os supostos interessados. Cada gracinha da criança ou lugar ao qual um jovem ou adulto chegam, é imediatamente socializado com uma assembleia de participantes.
Uma criança pequena ocupada em brincar em uma pracinha, por exemplo, precisará interromper o tempo todo suas atividades para posar para essas fotos, o escorregador já inclui uma paradinha no topo para o registro familiar. Os eventos de todas as idades já incluem cenários, maquiagens e adereços, assim como profissionais para auxiliar os convidados a preparar essas imagens. Os convidados já não se arrumam para aproveitar a festa, mas sim para fazer retratos, que podem acabar substituindo a festa propriamente dita.
Retratar-se tornou-se uma forma insistente de congelar a vida, produzindo imagens que a interrompem e impedem de entregar-se à sua fruição. O olhar, tanto o próprio quanto alheio, deixa de ser espontâneo, não há com o que surpreender-se, as descobertas são limitadas quando a entrega à vivência encontra-se entrecortada por paradas para registro. A fotografia é uma forma artística de olhar, mas pode tornar-se a suspensão de qualquer olhar genuíno original, pois a arte pressupõe entrega e surpresa.
Consultar o espelho por horas ou retratar-se compulsivamente é próprio de momentos em que estamos mais inseguros ou precisando compreender, constituir ou reafirmar nossa imagem. Por isso a selfie é fenômeno epidêmico na adolescência, quando se está fabricando uma imagem de si, para apropriar-se dela e usá-la por aí. Tenta-se que ela seja tão autêntica como a assinatura pessoal que valida um documento. Aliás, mediante a difusão da cultura digital, cada vez mais será a própria face a assinatura requerida para validar nosso acesso ou a autenticidade de qualquer ato. O rosto, agora uma espécie de documento de identidade, precisa ter uma espécie de constância, representação impecável e imutável do seu proprietário.
Como então envelhecer, considerando que a passagem do tempo deixa marcas, modificando esse documento visual? Por isso, o recurso de congelar a própria face através de substâncias que paralisam a musculatura está cada vez mais difundido, de tal modo que uma imagem editada da nossa versão juvenil se eternize. O problema é que a dita imagem juvenil, que todos os adultos tentam tornar sua para sempre, não é a que se tem na adolescência: nessa época aparecem os traços mais marcantes como os volumes do nariz, do cabelo, enfim, diferente dos traços infantis que são mais suaves.
Embora a imagem adolescente ainda seja delicada em relação à caricatura de nós mesmos em que vamos nos tornando e que chega ao ápice na velhice, há outras marcas, próprias da ebulição hormonal, que maculam a almejada perfeição. Ao olhar-se no espelho, antes de editar-se com maquiagem ou manipulação digital da imagem, o adolescente só terá olhos para as espinhas, a barba rala e irregular, a oleosidade da pele, a imperfeição do nariz e o desalinho dos cabelos. As selfies corrigem com sua persistência essas imperdoáveis falhas. É uma pena que para produzi-las seja requerido tanto empenho que muitas vezes torne-se difícil estar realmente em um lugar ou situação. Viver, tende nesses casos a ser substituído por registrar para olhar depois. É um tempo estranho esse, em que o presente é invadido por um hipotético futuro ideal.

CAPÍTULO “NATIVOS DIGITAIS” DO LIVRO “ADOLESCÊNCIA EM CARTAZ”- PARTE I (GAMES)

Os jovens precisam escapar de nós, do olhar opressivo dos seus adultos, mas eles precisam escapar para algum lugar. Que lugar é esse, o virtual, seus jogos, para onde eles vão?

Parte I

Trechos do Capítulo XIX, “Nativos digitais” -do livro “Adolescência em cartaz: filmes e psicanálise para entendê-la”
Nesta primeira parte, além de uma pequena introdução, fazemos uma abordagem do tema dos Games.
Eles nos colocam a questão da virtualidade X realidade, da diferença entre brincar e jogar e da dispersividade própria desses “homens-polvo” que estamos nos tornando ao fazer tantas coisas ao mesmo tempo.

INTRODUÇÃO

As famílias inquietam-se ao ver suas crianças e jovens fechados em seus quartos, entregues às redes sociais ou aos videogames, virando a noite para terminar um jogo, privilegiando um time que joga em rede em detrimento a uma festinha da turma de escola. Temem que eles sejam abduzidos por uma realidade ilusória e levados para territórios alheios aos reais e familiares.
O temor procede, mas não em todos os casos. A internet, principalmente os games e de algum modo as redes sociais, são de fato uma realidade alternativa onde refugiar-se. Esse habitat digital é tão tentador que alguns jogadores falam sobre os expedientes a que recorrem para conseguirem abster-se, ou manter-se a salvo, do risco de entrar sem conseguir sair. Mas não procede a ideia de que se frequenta um jogo com o grau de entrega e alienação de um zumbi, ou com a voracidade de um viciado buscando satisfação imediata. Jogar é um processo criativo e de construção ativa dos caminhos, estilos e personagens que se quer encarnar. É claro que há os que se comportam como viciados, mas estes já eram compulsivos antes, não ficaram dessa forma por causa da maneira como se relacionam com seus dispositivos digitais.
Esses dispositivos não sequestram os adolescentes, é a superproteção familiar, aliada aos projetos de realizar-se através das conquistas dos descendentes, que ameaçam usurpar-lhes a vida real que poderiam ter. Quando esses prisioneiros de luxo precisam fugir de suas famílias e de outras exigências da vida, uma saída de emergência pode ser a travessia do portal mágico da tela que sempre está ao alcance de suas mãos.
Somos “estrangeiros digitais” tentando assimilar-nos, enquanto usuários dos dispositivos eletrônicos e também na condição de adultos responsáveis por jovens “nativos digitais”. Partimos então dessa contraditória premissa, que foge do espírito do livro, ao falar de um tempo que não vivemos por inteiro, ao incluir uma realidade inventada após o fim de nossa própria adolescência. Porém, contamos com a vantagem de um olhar estrangeiro. Dessa forma, tentaremos neste ensaio dar conta das questões mais corriqueiras que o mundo dos computadores e a tecnologia digital nos colocam.
O papel dos videogames, dos quais nos ocuparemos a seguir, talvez seja o mais enigmático para quem nunca os usou e não experimentou suas possibilidades. Vamos trabalhar a importância das redes sociais para os adolescentes, já que elas passaram a fazer parte intrínseca da tarefa de socializar-se, de fundar um semblante social. Por fim, é inevitável abordar o tema da pornografia. Não ela em si, pois não há novidade alguma, mas no sentido de que ela nunca esteve tão disponível, expondo toda sua bizarrice, ao alcance de poucos clicks, para gente com muito pouca idade.

GAMES

Adultos estrangeiros

Entre as questões que as novidades tecnológicas trazem, certamente o videogame é o fenômeno mais intrigante para os que estão de fora. A razão é simples: ele não existia, nada do que as gerações que o precederam tinham se parece, a princípio, com ele.
Na verdade não são assim tão inéditos, pois reproduzem quase todas as regras da prática imaginativa de brincar, tanto em termos de experiências lúdicas solitárias, quanto grupais. Eles também incorporam o funcionamento justo e previsível das competições, dos jogos regrados, assim como o melhor do espírito de grupo de um time. A invenção que eles trazem é a da fusão de todas essas potencialidades lúdicas – próprias de brincar e jogar – com a fruição da entrega à magia da ficção. Como não deixar-se capturar pelo encanto deles?
É uma grande novidade pensarmos em que todos esses recursos da fantasia não fiquem para trás com o fim da infância. A experiência lúdica, que o senso comum supõe obsoleta após o amadurecimento, é, na verdade, valiosa pelo resto da vida. Porém, para os atuais adultos é incompreensível e desagradável a visão de adolescentes brincando apaixonadamente em vez de fazer suas tarefas práticas, aparentemente isolados, mas continuamente conectados entre si em um ambiente invisível.
Cada geração que chega padece com os preconceitos das que a precederam, que tendem a condenar aquilo que não viveram. É difícil perceber que algumas coisas no mundo já seguiram adiante sem nós. Se mantivermos viva a curiosidade, a qual aliás é sempre lúdica, podemos até entusiasmar-nos com elas, mas sempre seremos algo estranhos a elas, por não terem feito parte da nossa própria formação
Esse olhar desconfiado dos adultos testemunhou o surgimento das histórias em quadrinhos, que foram acusadas de tentar matar a literatura, tornando o leitor preguiçoso, apoiado nas imagens. Depois chegou a TV com os programas infantis e os vaticínios foram ainda piores: estaria se gestando uma geração de alienados, incapazes de brincar, pensar, esqueceriam dos signos e seriam analfabetos funcionais.
Agora chegou a vez dos games. Poupamos o leitor de todos os prognósticos alarmistas, pois ele já deve ter ouvido o quanto eles são, no mínimo, uma grande perda de tempo, no máximo, um instrumento de infantilização perpétua. O interessante é que se um jovem se interessar por um esporte, mesmo que seja violento, com o mesmo afinco e obsessão que os jogadores virtuais, seus adultos não ficarão preocupados e possivelmente vão orgulhar-se disso. O atleta nunca é acusado de monomania, de obsessão, sua experiência não é vista como empobrecedora nem alienante.
Quem joga começou na infância, os games raramente seduzem adultos. Já existem adultos que jogam, mas geralmente são os que cresceram nesse ambiente. Os games fazem um corte geracional entre quem joga e quem não joga. Até porque raramente se para de jogar. Ao crescer já não se tem tanto tempo e energia para isso, mas, principalmente depois de ter filhos, isso será um grande assunto em comum.

Brincar, jogar e ler

Os games começaram de forma muito simples e cresceram junto com os computadores pessoais, sempre empurrando sua evolução. No começo não passavam de uma espécie de ping pong em duas dimensões, homem versus máquina. Mesmo aqui já traziam alguma novidade, juntando os desafios de um jogo de tabuleiro com alguma destreza física e perceptiva: era preciso ser rápido, responder com os dedos, como um esporte da motricidade fina. A seguir eles foram ganhando complexidade, cenários, a terceira dimensão. Na sequência foram chegando personagens, enredos. A introdução do joystick passou a exigir maior agilidade motora. Aliás, hoje é a única habilidade manual, fora tocar um instrumento, que tem algum prestígio entre os mais jovens.
O aumento da memória dos dispositivos possibilitou a expansão do ambiente e os jogos passaram a criar universos, verdadeiros mundos alternativos. Um último passo foi dado quando puderam ser jogados em rede via internet, joga-se com e contra outros participantes reais. Com isso formaram-se times e comunidades, no sentido da comunicação e do sentimento de pertença. Além disso, cada jogo é construído e se enriquece com as experiências dos usuários, que sugerem personagens, tramas, cenários, estratégias, as quais são apreciadas pelos desenvolvedores e incorporadas. É uma caixa de diálogo permanente, composta de gente do mundo todo que, além de reunir-se para jogar, ficam debatendo em fóruns sobre o aprimoramento da habilidade dos jogadores e sobre o jogo propriamente dito. Contradizendo a suposição de que os jogos virtuais induzem à passividade e ao isolamento, os fóruns são redes colaborativas de jogadores, onde se avaliam os resultados, discutem estratégias, investem formação uns dos outros e instigam os desenvolvedores a aumentar a complexidade dos games.
Um gamer precisa ser perseverante, pois terá que avançar falhando, tentando novamente, até conseguir dar um passo ao encontro do mesmo processo no próximo trecho do seu percurso. Além dessa paciência e capacidade de suportar a frustração, será necessária muita engenhosidade para desvendar a lógica do jogo. Para isso terá que estar realmente imerso, familiarizado nessas paisagens virtuais, habituado aos seus monstros e inimigos, afinado com um grupo em que cada um tenha desenvolvido bons papéis complementares. Aliás, a escolha das personagens, que em geral podem ser customizadas e eleitas em um variado cardápio de heróis, funciona como uma tradicional brincadeira infantil grupal: cada participante escolhe “ser” um personagem e isso tem que ser negociado, pois não teria nenhuma graça se muitos fossem o mesmo.
O que os videogames se tornaram com toda essa evolução? São jogos, com o espirito de grupo dos esportes coletivos, acrescidos da necessária visão de estratégia dos jogos de tabuleiro. Porém, mesmo um dos mais complexos jogos, como o xadrez, não chega perto da rapidez de raciocínio e engenho que alguns games pedem. Somam-se a essas características aspectos da criação literária e do cinema, já que cada ambiente virtual constitui uma história que embasa os movimentos e vai sendo completada em função dos caminhos escolhidos pelos jogadores e através da interação destes com os criadores.
Na literatura podemos encontrar a figura do personagem que é cocriador da própria trama em que está imerso. Esse é o enredo de História sem fim, livro do escritor alemão Michael Ende, lançado em 1979, que já se tornou um clássico. Nessa história o herói não funciona como um escritor, mas como alguém que brinca, ou seja, ele vai criando uma trama que protagoniza. Por outro lado, ele já vive algumas situações próprias dos games contemporâneos, onde a trama e aquele a vivencia ludicamente dialogam. O mundo mágico que ele mesmo criou não é nada obediente, está cheio de ciladas, perigos e desafios, ele precisa seguir as regras, desvendar mistérios, errar muitas vezes, fracassar, quase desaparecer, até aprender a trilhar o caminho necessário para sair.
Em O Senhor dos Anéis, saga publicada em 1954, o britânico Tolkien criou um dos mais populares mundos mágicos: a Terra Média. Nessa obra, temos um território muito bem mapeado (há inclusive mapas de fato), vários tipos de personagens, representantes de diferentes povos, com personalidades, aparências e habilidades diversas, que exercem funções complementares e unem-se para vencer inimigos monstruosos e travar batalhas épicas em nome de uma missão em comum. Esse nicho imaginário acabou dando origem aos jogos interativos de RPG, Role-playing Games (jogos de interpretação de papéis), em que adolescentes e jovens adultos envolvem-se desde os anos setenta.
O RPG é uma mistura de encenação, como nos improvisos teatrais e nas brincadeiras infantis, com as regras de um jogo de tabuleiro e o funcionamento colaborativo de um time esportivo. Há vários tipos de personagens, um cenário específico e desafios. A história vai sendo criada em um grupo liderado pelo mestre, que é seu membro mais imaginativo e iniciado nas regras do jogo. Ao longo do percurso, os jogadores vão encenando missões e batalhas, que foram inicialmente ambientadas em cenários evocativos da criação de Tolkien.
Você está pensando que muitos aspectos da descrição acima poderiam ser de um videogame, certo? Só que aqui não temos nenhuma tecnologia envolvida, apenas um tabuleiro, um mapa, ou nem isso, alguns poucos objetos, se muito, e principalmente um grupo que em geral é constituído por jovens que, embora já não sejam crianças, estão definitivamente dispostos a brincar.
Eles estão realmente brincando? Em certos termos sim, pois imaginam e vivenciam juntos uma história que vai sendo criada por eles. Porém, na verdade estão também jogando: o jogo introduz na brincadeira a competição, com as regras e parâmetros que garantam que ela seja justa. Os RPGs não constituem um espaço de brincar livremente determinado apenas pela imaginação, eles envolvem regras e cálculos. Essa é a grande novidade: gente que vai crescendo sem deixar para trás os recursos lúdicos. Após termos arrolado todas essas referências, o leitor pode notar o quanto os videogames fusionaram aspectos da literatura, da brincadeira e dos jogos.
Criar, inventar e brincar são parentes entre si, pois todos visam transcender a realidade, que é compreendida, mas para ser recriada, subvertida. Acreditamos que cientistas, artistas e todos aqueles que contribuíram para o avanço do conhecimento estão em dívida com a atividade de brincar, pois nessa prática as ações incorporam, ousam, outras possibilidades imaginárias, que são experimentadas de verdade. Os games nasceram dessa múltipla fronteira entre ciência, técnica e a atividade fantasiosa necessária para brincar e jogar.
Nos jogos, as regras são claras e sempre valem. Como eles, os games não trapaceiam, os parâmetros são claros e democráticos: todos os jogadores começam igual e equivalem-se perante o programa. É o paraíso da meritocracia e de um mundo justo. Não resta dúvida de que é muito tentador e repousante passar um tempo em um lugar assim, tão diferente da nossa realidade.
Os adultos não conseguem ver a seriedade em brincar nem sua utilidade, esquecem que é lúdico todo o processo de aprendizagem que nos levou a crescer, assim como tudo o que nos faz continuar crescendo enquanto civilização tem estreita ligação com a ousadia lúdica. D. W. Winnicott ensinou-nos que nascemos subjetivamente a partir de um espaço que ele chama de “potencial”, uma área intermediária, ilusória, uma zona de brincar que se estabelece entre um bebê e quem exerça a função de mãe. Essa mãe, seria, para o psicanalista inglês, aquela que coloca as coisas à disposição do seu pequeno no exato lugar e tempo em que ele está a ponto de criá-las. É assim quando se brinca: imaginamos e fazemos acontecer o inexistente a partir dos elementos que se puder arrolar em volta. Winnicott acredita que com cada bebê nasce um mundo, ludicamente criado por ele. As realidades criadas pelos dispositivos digitais são sucessoras desses primeiros mundos imaginários.

Digital e ou e real

Os adolescentes têm muita energia e muito pouco deles é pedido. Queremos, apenas que se comportem e que compareçam à escola. Na maior parte dos sermões dos adultos, acaba mencionando-se que eles “só” precisam estudar. Deixamos explícito o quanto consideramos pífia a exigência que lhes cabe. Enfim, para a imensa maioria dos que têm direito a viver uma adolescência, ela transcorre em um mundo chato, entre outros iguais a ele e tão desmotivados quanto, tendo a mesquinharia das disputas de prestigio entre os colegas como único desafio. As diversões só trazem mais do mesmo: quem ficou com quem, fofocas sobre a intimidades dos outros, conversas marcadas pelo exibicionismo, o encontro das mesmas pessoas em lugares repetidos e, com sorte, alguma música. Não é um ambiente convidativo, é um mundo minúsculo onde nada lhe parece relevante.
Mas imagine que uma porção de coetâneos precisa dele para uma batalha que será travada em um lugar mágico e perigoso. Estão tentando faz tempo decifrar novos caminhos para derrotar o inimigo e essa noite vão desfechar um ataque surpresa. Eles são um time e necessitam da sua ajuda, sabem que você já desenvolveu habilidades que somam para o sucesso do grupo. Você investiu seus esforços nisso, venceu dificuldades e têm um prestígio entre os jogadores, ali sua presença é questão de vida ou morte. O grupo trabalha junto, a vitória demanda muito esforço e sintonia, os jogos tem mistérios interessantes. Seus pares são guerreiros sérios e cientes da sua missão. Fora do jogo existe uma comunidade que avalia as partidas em geral de modo construtivo, quem for dedicado sente que pode fazer diferença nesses debates, os quais podem chegar a ocupar tanto tempo quanto o próprio jogo. Frente a isso, ainda é tão difícil entender por que seus adolescentes dedicam-se com tanto afinco aos games?
A violência na maioria das grandes cidades encolheu os espaços da vida pública, restringindo a liberdade de circular de que dispunham as gerações precedentes. Explorar a cidade, brincar em terrenos baldios, em casas abandonadas, circular a esmo procurando aventuras é quase impossível na vida real. Já na realidade virtual tudo isso e muito mais acontece.
Crianças e adolescentes geralmente vivem confinados em apartamentos. Frequentam aulas de esporte ou dança o que é diferente de jogar com os amigos, lutar de brincadeira ou dançar por prazer. Na escola, a pedagogia costuma ser pouco interativa, o conhecimento raramente dialoga com suas dúvidas e hipóteses, não se leva em conta que eles pensam, aliás ninguém espera que eles realmente façam isso. O recreio é breve demais para toda a demanda represada de liberdade.
Frente a esse cenário, novamente é nos jogos que se dá a possibilidade lúdica de explorar um terreno desconhecido, traçar estratégias, acumular experiência e aprender com ela, aventurar-se, correr riscos e desenvolver a capacidade de orientar-se. Claro, não é a mesma coisa sem a presença real do corpo, os sustos não são para valer. Por outro lado não é desprezível o ganho cognitivo em desenvolver a capacidade de cuidar-se, observar detalhes para fazer uma mapa mental e retomar o caminho certo. Admitimos que é um simulacro da verdadeira experiência exploratória, mas ao menos eles têm essa. Na realidade, boa parte dos privilegiados aos quais são dados o tempo e as condições para viver uma adolescência, só conseguem andar sozinhos em espaços desinteressantes como um shopping ou outros similares a ele.
O senso comum pensa que toda essa experiência lúdica não altera os participantes por não ser real. Em primeiro lugar, convém lembrar que quem joga em rede, principalmente quando estamos falando de jogos que prescindem de um time, tende a fazê-lo com amigos ou colegas. São principalmente pessoas com quem se tenha a intimidade necessária para desempenhar juntos tarefas desafiantes, que requerem agilidade de decisões e confiança uns nos outros. Portanto, estamos falando de uma genuína experiência lúdica entre parceiros reais, que podem estar ausentes no recinto, já que ela ocorre em um ambiente e com objetos intangíveis.
Lembramos que brincando aprende-se a ser e a irrealidade imaginada cria ou altera a realidade. Todas as invenções, tudo o que dependeu de um ato criativo, começou exatamente assim: quando alguém fantasiou algo que ainda não existia, ou teve uma ideia inédita. Portanto, a realidade virtual serve como experiência subjetiva, fonte de vivências transformadoras. Ninguém vence nem cria sozinho e os jovens que jogam parecem compreender isso melhor que muitos adultos.
O problema não provém do fato do que os jogos oferecem, mas sim do vazio de experiências reais que a adolescência vem se tornando. É preciso que tenham a oportunidade de intervir de algum modo na realidade, quer seja realizando algum trabalho, responsabilidades, trajetos verdadeiros, trocas de ideias desafiantes, experiências culturais em que se engajem expressando-se, atividades grupais onde as decisões e papéis de cada um façam diferença. Sem isso não se conseguirá tirar os jovens de dentro de seus quartos, da sua realidade alternativa onde parecem, paradoxalmente, verdadeiramente existir.
Em seu livro O que você é o que você quer ser, o psicanalista inglês Adam Phillips analisa o paradoxal peso sobre nossas vidas de tudo aquilo que nunca fizemos. Ou seja, dos caminhos da nossa vida que não trilhamos, mas poderíamos tê-lo feito. Não se trata de que sejamos pouco, mas sim de que compartilhamos o trajeto da nossa existência com a presença imaginária de todos aqueles rumos que nunca tomamos, e não nos perdoamos por isso. Não é difícil deduzir o quanto essa insatisfação recai também sobre os filhos, aos quais cabe, “no mínimo”, encarnar alguma, ou várias das personalidades ou experiências que a vida ficou nos devendo. No ambiente digital, eles farão isso de fato, porém em uma dimensão tão imaginária quanto a de nossas vidas alternativas. Eles pelo menos sabem que estão brincando.
Adam Phillips lembra-nos de uma ideia de Isaiah Berlin, o qual diz que existe uma diferença entre a “liberdade de algo”, que é livrar-se do que oprime, e a “liberdade para algo”, que significa engajar-se no que se tiver vontade e potência para tentar. Nossos jovens estão tentando livrar-se de nós, dos nossos ideais opressivos, e querem ser livres para tentar, sabendo, como nos games, que a vida requer experiência e para tanto precisam suportar repetidos fracassos. Como fazer isso se cada vez que eles erram, ou simplesmente não dão certo de primeira, seus adultos colapsam porque não conseguiram nem esse “mínimo” que lhes deviam?
Phillips faz um trocadilho com a ideia acima, utilizando a palavra escapar. Isso é mais interessante ainda pois acusa-se o mundo digital de ser apenas uma forma de escapismo, ou seja, ficar habitando a imaginação para não enfrentar as dificuldades reais. Ele estabelece a diferença entre “escapar de algo” e “escapar para algo”. Na primeira, os jovens precisam escapar das expectativas e controles que os oprimem, enquanto na segunda equivale a partir para construir, encontrar, criar soluções, invenções, caminhos. Talvez seja essa sutileza que os adultos precisam entender. Sim, eles escapam, mas é para algo que lhes entrega um lugar ativo, desafiador.
Ao escapar de seus adultos, os adolescentes precisam partir em direção a experiências verdadeiras, por trajetos reais, ou seja, escapar para algum lugar. Se não tivermos tanto medo e não os afogarmos em nossos sonhos superlativos, eles poderão com certeza deixar-nos caminhar alguns trechos ao seu lado. Aliás, eles voltarão de tanto em tanto para contar e discutir conosco suas aventuras e até aceitar alguns conselhos. Enquanto isso não é possível, eles farão isso apenas jogando, o que não é inútil, apenas insuficiente.

Homens-polvo

Uma das questões que envolvem o mundo digital é a ideia de que somos cada vez mais capazes de fazer várias coisas ao mesmo tempo: a multitarefa. Essa não é uma criação própria da era digital, mas sim fruto da nossa época voltada para a rapidez, eficiência e a idealização da obtenção de resultados com o mínimo de esforço possível.
A automação industrial emprestou inusitada potência ao sistema produtivo, assim como a descoberta desses recursos mecânicos e eletrônicos levou essas maravilhas para a vida privada, proporcionando comodidades para o cotidiano doméstico. As máquinas poupam trabalho, a velocidade dos veículos encurtou distâncias, a possibilidade de comunicação instantânea encolheu o planeta.
O mundo foi tornando-se um lugar onde esperava-se que nossas tarefas e deslocamentos convergissem para soluções cada vez menos trabalhosas e, de preferência, instantâneas. O fazer prático para produzir um objeto, um alimento, um serviço, perdeu espaço, de tal modo que o envolvimento com o processo requerido para o desempenho de qualquer tarefa não possui mais valor. A partir daí, não deveria surpreender-nos que considerássemos bem-vinda a capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo, sem que nenhuma delas demandasse demasiada concentração. A aquisição desse dom representaria um acréscimo na capacidade produtiva com o menor grau de esforço e de cansaço.
A multitarefa tirou seu nome da capacidade de um computador para rodar diferentes programas concomitantemente ou distribuindo seus esforços de modo a atender a várias solicitudes de forma alternada, mas com tal agilidade que estas são levadas a termo conjuntamente. Espelhados em nossa fascinante criação, a tecnologia digital, a mania de funcionar multitarefa invadiu a vida. Qualquer um de nós já protagonizou tal tipo de desafio, ou mesmo presenciou alguém que assiste o futebol na TV ao fundo, enquanto percorre com curiosidade as novidades nas redes sociais e tenta responder um e-mail, ao mesmo tempo fala com um amigo no telefone e atende às demandas surgidas em algum sistema de mensagem, como o WhatsApp.
É uma gula de viver que nos leva a tentar ganhar tempo fazendo várias coisas simultaneamente. A eficiência em clima de urgência não visa finalizar as tarefas, depois do que se abriria um período de ócio, de entrega para algo mais repousante, posterior ao desempenho das obrigações. Após concluir múltiplas tarefas realizadas conjuntamente, tendemos a envolver-nos em um novo grupo de situações que envolvem mais comunicação, atenção e desempenho simultâneos. A multitarefa abre tempo para outras situações de multitarefa.
A verdade é que não temos essa eficiência: mesmo que acostumados desde cedo para tal fim, nosso cérebro não faz tantas coisas ao mesmo tempo, pelo menos, não tem como concentrar-se em mais de uma de gênero semelhante. Será possível, por exemplo, caminhar enquanto se escuta música, nesse sentido, ainda pode-se dar ao luxo de percorrer a paisagem ao som das melodias escolhidas para o momento, porém, a atenção requerida no deslocamento pode falhar, pois ficará preterida pelas outras atividades. Nossa mente categoriza, prioriza, alterna e podemos nos treinar para isso, mas sempre haverá perdas. Algo não vai ficar bem feito.
O estranho é que essa forma ansiosa de ser ganhou uma certa aura de prestígio, como se estivéssemos diante de uma inovação e de um sujeito à frente de seu tempo. Olhando com atenção, parece mais uma perda civilizatória do que um ganho. Os animais são multitarefa, o que é indispensável para sua sobrevivência na vida selvagem. Na natureza, não podem sequer comer em paz sem estar de olho no entorno, para que eles mesmos não virem alimento: engolem escutando e vasculhando atentamente com suas orelhas em radar, prontos para captar qualquer mínimo ruído que signifique a aproximação de um predador ou inimigo. Estão sempre alertas para uma reação rápida ao menor estalo. A condição humana conquistou o oposto, ou seja, a capacidade de ter paz para comer, amar, parar, refletir e ponderar com profundidade um problema.
O estilo que tem se desenvolvido no meio digital não nos ajuda nessa que é uma das grandes tarefas da educação: sossegar o corpo para poder concentrar-se em uma tarefa. Os videogames nos treinam para o contrário disso: atenção, agilidade de raciocínio, destreza motora, estratégia, tudo simultaneamente. Ou seja, o que o game pede não é uma novidade, pois na ação, como em um ambiente selvagem ou hostil raciocinamos assim. Nossa questão é quanto o tempo gasto em games nos prepara acima de tudo para a produtividade e ação, o que pode ser bem útil, mas nunca para a reflexão, que também o é.
A mesma quietude que ler um romance pede, é um extraordinário treino para quando precisamos estudar. Ou seja, dedicar-nos profundamente a um universo ficcional ou temático para emergir posteriormente com uma nova visão. Esse movimento não é natural, é praticado e treinado desde a infância. O que o videogame oferece, ao contrário da leitura, é treino em uma disposição mais próxima do que nosso cérebro de habitantes de ambientes hostis já foi preparado por milênios.
Essa prontidão, que não gasta tempo em vacilar, duvidar e olhar de fora, sem chance de tomar uma decisão com calma sobre as prioridades a seguir, pode ser conveniente. Porém, não se trata de algo somente necessário para situações extremas de guerra ou perigo: esse modo de funcionamento também é utilizado para um desempenho eficiente por parte dos trabalhadores, de quem se espera que tenham o desempenho das máquinas. Eles podem dar conta de tarefas que chegam para o sujeito como as peças que caem cada vez mais rápido em um jogo de encaixes. Muitas situações de trabalho assemelham-se a um equilibrista de pratos, que precisa manter todos no ar, sem obviamente a opção de ficar escolhendo o melhor momento para pegar um prato ou outro. Tal destreza é necessária em inúmeras tarefas e situações, porém é apenas uma das formas de trabalhar, criar e desempenhar funções, não precisa ser o ideal nem a regra.
Existem momentos de parar para pensar, assimilar experiências, refletir sobre o que se passou. Esse tempo contemplativo tem deixado de ser nobre em detrimento do agir, do raciocínio rápido, da resposta imediata. Os games devem ser pensados também como parte de uma forma acelerada de ser. Evidentemente, eles não são a causa desse nosso estilo, são apenas um dos produtos dessa ânsia de viver em dobro.

Mafalda

Trecho do livro “Fadas no divã” sobre a personagem. Uma homenagem à partida de Quino.

MAFALDA

Mafalda é uma menina petulante, uma fonte inesgotável de perguntas sem respostas. Sem ser seu objetivo, cria constrangimentos para seus despreparados pais com questionamentos inusitados e agudas observações sobre o mundo. Ela é o personagem principal de tiras humorísticas, publicadas na Argentina desde 29 de setembro de 1964 até 25 de junho de 1973. Quando terminou sua temporada nos jornais, sobreviveu nas décadas seguintes graças às compilações em livros, a bordo dos quais chegou às gerações posteriores e a vários países. Os livros de Mafalda foram traduzidos para seis línguas e alcançaram sucesso tanto na Europa quanto na América Latina. Além disso, o personagem se popularizou em objetos como pôsteres, camisetas.
Filha do humor inclemente de Quino, ou Joaquín Salvador Lavado, nascido em Mendoza, no ano de 1932, ela se permite questionar tudo. Apesar de seus cinco ou seis anos de vida, não pára de pensar nos descaminhos da humanidade, na beligerância dos povos, no poder dos militares – os golpes pipocavam na América Latina da época –, nos problemas do terceiro mundo, na ampliação dos horizontes femininos e na podridão dos políticos de plantão. Ela gosta de brincar de governo, escuta notícias no rádio e filosofa sobre um globo terrestre, que é seu brinquedo predileto. Como vemos, tudo muito engajado.

Uma infância politizada

Mafalda é tudo o que na verdade as crianças não são. Elas podem até ser observadoras e fazer perguntas sobre política, mas isso somente ocorrerá no caso desse ser um tema corrente e relevante dentro da família. Na infância, a rua é secundária à casa e são os pais e os irmãos, acrescidos de alguns parentes mais próximos, que ocuparão o centro das atenções. Mesmo os pequenos que freqüentarem creches ou escolas ficarão esse tempo entre outras crianças, aprenderão a diferenciar ambientes diversos e as regras que lhes são próprias, mas continuarão ligados à família em termos emocionais. O que ocorre na escola geralmente é conseqüência da vida doméstica, é raro que um drama se origine no sentido inverso.
Na infância, é possível questionar-se sobre grandes temas, como a morte e o sexo, mas será decorrente de observações e impasses domésticos, e esses pensamentos se expressarão principalmente através de brincadeiras e conversas meio enigmáticas, nas quais se nota nitidamente que a criança está abordando algo que está além de sua compreensão. Seguidamente as vemos fazer perguntas e afirmações que mostram que estão envolvidas com alguma questão transcendental, mas os diálogos são curtos, estranhos, e a criança se recolhe contente com alguma resposta parcial, deixando o adulto desconcertado. Se algo importante acontece na rua, como catástrofes naturais ou sociais, abalos ou vitórias políticas, problemas como o desemprego e a carestia, será através das reações dos membros de sua família frente a esses fenômenos que as crianças os acessarão e compreenderão. A criança não é ainda um cidadão constituído, seus pais é que são, sua sociabilidade está ainda em construção.
Os personagens de Quino são ainda mais distantes do mundo infantil que a turma de Charlie Brown, cujas vidas contém dramas de auto-estima e relativos ao convívio com seu grupo de amigos, que não são ausentes da infância. Apesar disso, é necessário esclarecer que a ambientação e a rotina de Mafalda e de seus amigos é tão típica da infância quanto a dos Peanuts, poderíamos dizer que até mais, na medida em que Quino inclui o relacionamento dos personagens com seus pais.
O que é menos próprio da infância, neste caso, são os dramas enfocados, pois até quando se revolta contra a imposição familiar de tomar sopa, Mafalda o faz com um tom filosófico ou politizado. Como a subjetividade das crianças dessas tiras se aproxima pouco da realidade da infância, acreditamos que para Quino elas representariam uma espécie de utopia ética nesse mundo confuso e problemático. Restaria à infância um lugar de alteridade à mediocridade da vida, ao absurdo que reside na crueldade, na desigualdade e na beligerância da nossa organização social. Pensando nessa direção, só o olhar infantil nos revelaria o ridículo que nos cerca. Estaria nas crianças a possibilidade de esperar algo melhor dos humanos, já que elas ainda não foram corrompidas pelo tempo e pela sociedade. Não pensamos que Quino acredite numa teoria rousseauniana, que atribuiria uma pureza essencial à infância, mas é a mensagem que acaba decantando quando se coloca tanta crítica social na boca de personagens tão jovens.
Aliás, nem todas as crianças desempenham esse papel nas tiras de Mafalda. Os personagens que contracenam com a protagonista também mostram em sua personalidade os adultos problemáticos que um dia serão. Em alguns deles é visível o potencial de liberdade de pensamento e qualidade ética que se gostaria que crescesse junto com as crianças, mas também há personagens que trazem dentro de si o embrião do contrário. É de pequenino que se torce o pepino, por isso entre eles há personagens embotados e preconceituosos. Através desses protótipos caricaturais de Mafalda e alguns de seus amigos, torna-se possível revelar os pontos de fratura do mundo capitalista e das famílias de classe média em que eles estão crescendo.

Pequena gente grande

Mafalda é simplesmente alguém que pensa; sua peculiar sensibilidade pode ser encontrada em qualquer idade salvo, ou pelo menos em raríssimas exceções, na infância. O importante desse personagem, e seu toque de humor, é sua capacidade de levantar questões relevantes a partir de partículas do cotidiano que estão dentro da casa e da vida de qualquer um. O contato com o mundo é feito através de um rádio, sua representação é um globo terrestre, um banquinho serve para brincar de governo, o armazém onde se compra a comida da casa abre uma janela para as questões econômicas e o jeito das pessoas que passam pela rua é uma ponte para falar de grandes temas humanos, como a felicidade, a bondade e o envelhecimento.
A vida desfila inteira pela calçada ou pela pracinha de Mafalda e pode ser conjugada inteiramente dentro das paredes de sua casa. Quino parece dizer que só não pensa quem não quer, não importa quão pequeno se é e quão estreitos são seus horizontes. Mas nem só de problemas do mundo vive Mafalda, também existem fatos de infância propriamente ditos: sua ojeriza a sopas, seu ciúmes pela chegada do irmão, a curiosidade pelo hobby do pai de cultivar plantas de interior, assim como o gosto por se alienar na televisão. Apesar dos assuntos infantis e domésticos, a reação de Mafalda é de elevada reflexão ou de linguajar adulto. Por exemplo, quando expressa seu temor de perder o lugar no amor dos pais em função do nascimento do irmãozinho, ela diz que sente como se o coração deles tivesse aberto uma filial; quando canta no banho, ela diz que é a única maneira de superar essa imensa e branca solidão da banheira.
A graça das tiras de Mafalda parece ser similar à que referíamos relativo aos Peanuts: a de colocar a sabedoria de gente grande para interpretar a vida de gente pequena. Não se trata apenas de injetar a maturidade futura no passado pueril da infância, a operação seria também a de mesclar a pureza infantil na capacidade adulta de criticar a sociedade e a própria vida. Essa combinação de inocência infantil com uma crítica adulta aguçada, além do efeito de humor, empresta um sopro de esperança mesmo ao mais trágico pessimista. Afinal, se temos trabalhado tão diligentemente para destruir e estragar o mundo, quem sabe os que virão não o consertem?
Em suma, como nos Peanuts, temos em Mafalda os personagens crianças-adulto. Um universo onde a precocidade das crianças revela as mazelas adultas. O que distancia as crianças de Schulz das de Quino é a inclusão dos problemas do mundo na trama das tiras. Para Mafalda, esses problemas são quase um personagem, se lembrarmos um globo terrestre e um rádio com os quais ela praticamente conversa. Enquanto a obra do americano deixa as crianças numa bolha, que as circunscreve à casa e à escola, o argentino as coloca no mapa. Como dizíamos, os cenários são os mesmos, varia o ponto de vista. Para Schulz, no cotidiano pequeno da infância é possível encenar a comédia humana do indivíduo; em Quino, além desses, são também enfocados os dramas sociais.
Mafalda colocou toda uma geração a pensar sobre a miséria do seu cotidiano, mas sem se desligar da premência de questionar o momento histórico em que viviam. O mundo dela retrata especialmente a América Latina, dos anos 60-70, com suas esperanças e pesadelos. Mas não se pense que ela é uma militante política obcecada pelos grandes temas apenas, por exemplo, uma das questões constantes é a paixão dessa menina pelos Beatles, uma escolha estética que ela defende com unhas e dentes, frente a seu amigo Manolito, que a acusa de gostar de uma música cuja letra não entende. Ela também tem questões sobre a felicidade, interroga-se porque alguns são tão amargos e outros não, sobre o amor e o casamento.
Porém Mafalda é uma menina, e tanta sensibilidade política não lhe serve muito quando o assunto são seus pais: ela não esconde uma certa decepção pelo pouco que eles conseguiram ser na vida, o pai lhe parece mais um coitado que é sugado pelo mundo do trabalho, a mãe uma medíocre que não sabe nem se importa com nada fora das lides domésticas. Esta é a mais alfinetada pela crítica da pequena feminista empedernida que ela tem em casa. Num dos quadrinhos, Mafalda observa a mãe trabalhando, estafada com as lides domésticas, e pergunta, assustada, se a capacidade para triunfar ou fracassar seria algo hereditário. Noutro, frente a esse mesmo quadro, a menina lhe pergunta: – o que gostarias de ser se vivesses?
Essa esperta menina parece não esperar que seus pais lhe transmitam algo, um conhecimento sobre o mundo, é ela que detém a sabedoria. Quando não compreende algo, perguntar a seus pais revela-se inútil, é só para deixá-los perplexos e ou constrangidos. A fonte da sabedoria nestas tiras é o dicionário, ela o consulta constantemente e discute suas respostas furiosamente. Junto com o globo e o rádio, o dicionário completa o tripé de objetos que representam o mundo nas tiras.
Apesar de freqüentar a escola, essas crianças parecem aprender sozinhas, com a ajuda de alguns instrumentos. Os pais até fornecem elementos, como certa ocasião em que o pai de Mafalda lhe presenteou com um pôster que mostrava ruínas gregas, dizendo-lhe ser esse o berço da nossa civilização. Bem, bastou o pôster e a frase, para que fossem disparadas um sem número de reflexões sobre o fato de uma imagem de destruição e ruína ser a de nossa origem. Portanto, temos uma síntese entre um ambiente estimulante e uma liberdade de pensamento, que se processa em mentes puras e não viciadas. É este nosso ideal de aquisição de conhecimento. Queremos proporcionar aos mais jovens muitas fontes, mas desejamos que tirem suas próprias conclusões, porque confiamos muito pouco nas nossas e esperamos muito das deles. As crianças de Quino são também representantes das nossas mais acalentadas ilusões pedagógicas.
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A troupe

Não são muitos os personagens que acompanham Mafalda, são seus vizinhos dum bairro da classe média portenha. Susanita é o protótipo da mulher que não quer saber de nada fora sua estreita vida doméstica, seus planos de ascensão social e seus futuros filhos. Manolito só pensa em dinheiro, uma atividade, convenhamos, para lá de adulta. Os personagens que teriam características mais infantis são o angustiado Felipe, com sua pertinaz procrastinação de tarefas, e Miguelito, que se perde em fantasias megalomaníacas, embora essas características sejam encontráveis na maioria dos mortais em todas as idades
Felipe, ou Felipito, é um neurótico, mas seu acento está mais na angústia do que no fracasso. A caminho do colégio, ele se paralisa de pânico, supondo que esqueceu o tema de botânica em casa, abre a pasta, para constatar que estava lá, alguns metros depois, é tomado pela dolorosa possibilidade de ter esquecido o compasso para a aula de geometria, com o coração explodindo, abre a pasta para também concluir que estava com ele. É aí que ele faz a pergunta que poderia ser a da maioria de nós: – Justo a mim tinha que ter me acontecido ser como eu?
Esse personagem deixa para fazer os deveres de casa no último momento, mas passa a tarde toda martirizando-se porque deveria estar fazendo-os. Não faz suas tarefas, mas está irremediavelmente preso a elas. Quando enfim tenta encarar uma tarefa mais difícil, sentado à mesa fica devaneando com seu herói preferido, El Llanero Solitário, uma espécie de cowboy justiceiro. Apesar de ser um menino esperto e um pouco mais velho, ele não possui a inteligência nem a precocidade de Mafalda, mas é com ele que ela se sente mais perto de ser entendida.
Se na mãe da menina e no personagem de Susanita são veiculadas críticas à mediocridade das mulheres, através de Felipito, Quino expõe a fragilidade e a dependência dos homens, pois a amiga está sempre tentando tirar este menino dos labirintos neuróticos e sofridos em que ele se mete. Com certeza as angústias de Felipe não são absolutamente próprias de um gênero ou outro, elas apenas se revelam masculinas pelo fato de que despertam em Mafalda um certo zelo maternal, denotando essa eterna vocação para filhos que os homens carregam pela vida afora. O pai de Mafalda também se desespera, frente às perguntas irrespondíveis da sua pequena ou até frente à invasão de formigas em seu jardim de apartamento, aí é a mãe dela que vai cumprir essa missão de dar colo para um homem fragilizado.
As constantes críticas à mediocridade da mãe levam à valorização de uma vida de maior inserção social para as mulheres, motivo pelo qual devíamos classificar Mafalda como uma feminista. Mas, na verdade, esses questionamentos também transcendem uma questão de gênero, visam mais do que nada situar que os pais já não servem de exemplo, e os novos humanos deverão crescer apoiados em suas próprias convicções. As mulheres terão de se mostrar maternais em casa, mas também guerreiras na rua. São tempos confusos e misturados para os gêneros, e a turma de Mafalda parece ilustrar isso bastante bem. Por outro lado, como a visão de Quino é de esperança, certamente trata-se de uma aposta otimista em que homens e mulheres possam se beneficiar do fato de que seus destinos se tornaram mais complexos e abertos.
A outra menina do grupo, Susanita, é o oposto de Mafalda e vai na contramão dessa tendência de ampliação dos papéis masculino e feminino, é um contraponto ilustrativo, que serve para ressaltar a posição do personagem principal. Enquanto Mafalda tem olhos para o mundo e seus problemas, Susanita vive sonhando com seus futuros filhos e um lar abastado, o marido parece lhe importar menos nos seus planos, um mero instrumento para atingir seus objetivos. Por isso não podemos afirmar que ela é romântica e pueril, pelo contrário, seu personagem concentra os piores e mais antigos preconceitos contra as mulheres: ela é calculista, fofoqueira e egoísta, sua paixão pelos filhos bem sucedidos que terá (conforme ela, seu filho será um doutor muito famoso e rico) é uma ilustração da glória obtida através da maternidade. Ela vive cometendo gafes, hoje diríamos politicamente incorretas, que só mostram o seu anacronismo. Até quando está tentando ser simpática e entender o ponto de vista dos outros se revela ignorante e inadequada. Por exemplo, certa ocasião comenta com Mafalda que, já que ela era tão anti-racista, talvez o irmão que sua mãe estava esperando viesse a ser uma criança negra e isso seria lindo, pois combinaria com o discurso de sua amiga.
O oposto político de Mafalda, e seu personagem masculino para representar a mesquinhez humana, é Manolito. Esse menino é filho de um gallego dono de armazém que, aliás, já trabalha com seu pai, fazendo entregas e às vezes atendendo no balcão. Ele é um devoto desse pequeno negócio, fica sonhando com campanhas publicitárias mirabolantes para tocar o futuro grande empreendimento comercial que sonha um dia construir. Na atmosfera política da época dessas histórias, o maior palavrão político para acusar alguém era taxá-lo de pequeno burguês. Fruto de um marxismo mal digerido, essa palavra vendida como classificação teórica servia para adjetivar o que de pior se imaginava haver em termos de reacionarismo político e estreiteza de pensamento. Pois bem, é nesse contexto que nasce Manolito, um menino que só tem olhos para os negócios, mas tão pequeno é seu foco do mundo que pequeno torna-se seu ser. Manolito é limitado e burro, tanto no que diz respeito aos questionamentos que seus amigos fazem, que em geral não acompanha, quanto na escola, onde é o pior aluno da classe. Quino não esconde o que para ele é a inteligência, deve estar relacionada com a imaginação e a capacidade de criticar o mundo, e a burrice, associada ao pragmatismo, a uma mente dinheirista e pobre de espírito.
Miguelito talvez seja o único personagem do grupo que é um pouco mais infantil, é também o mais traquina de todos, bate nas campainhas e sai correndo, grita coisas atrás de um tapume para assustar os passantes. Claro, depois faz uma reflexão, um tanto quanto adulta, de como essa é a faceta mais sórdida da sua personalidade e acusa-se de covardia. Também é adulta sua consciência de que a culpa de pouco ajuda para prevenir novas travessuras.
Para representar a infância propriamente dita e poder fazer piadas com a lógica infantil foi preciso nascer Guille, o irmão caçula de Mafalda, esse sim transita dentro dum universo de papai, mamãe e chupeta. Guille é uma gracinha, faz artes de criança pequena, e é sua irmã e seus amigos que dão discursos defendendo sua liberdade de expressão, ou seja, seus direitos de correr pelado e desenhar nas paredes da casa.
Mais tarde, junta-se ao grupo uma voz ainda mais politizada que a de Mafalda, chama-se Libertad. Embora o novo personagem tenha a mesma idade que Mafalda, é muito pequena na estatura, o que contrasta com a sua enorme capacidade de se expressar. Libertad é pequena como a liberdade que havia na época dessas tiras e fica irritada quando as pessoas tiram a óbvia conclusão sobre a relação entre seu tamanho e nome. Sua fala acaba sendo uma radicalização do discurso de Mafalda sobre as mazelas do mundo e a asfixia de pensamento. A metáfora não poderia ser mais direta, mas apesar disso a voz dessa esperta pequena encontra a mesma amplitude que uns poucos corajosos conseguiram ter para combater os anos de chumbo que maltrataram a América Latina. São os grandes perfumes nos pequenos frascos.

Por que tantos peregrinaram ao ônibus da história “Na natureza selvagem”?

Qual o fascínio para os adolescentes da jornada de Chris ao Alaska?

O ônibus de “Na natureza selvagem” não está mais na natureza selvagem.
Recentemente, um helicóptero da Guarda Nacional do Exército do Alasca removeu o lendário ônibus onde Christopher McCandless encontrou o triste fim da sua jornada de filosofias e aventuras. O local tornara-se meca de perigosas peregrinações, de pessoas identificadas com sua história. Foram tantos os extraviados, resgatados com dificuldade, tendo havido inclusive casos de óbito, que as autoridades tiveram que remover esse “monumento”. O que foram tantos procurar em meio à inóspita paisagem alasquiana? Em nosso livro, “Adolescência em cartaz” dedicamos um capítulo a esse personagem, que existiu na realidade e tornou-se uma das grandes fantasias sobre a juventude. Abaixo, alguns excertos:

“Os alasquianos habitam um território no extremo dos Estados Unidos que, pela sua beleza e natureza hostil, desperta a imaginação de pessoas de outras regiões. Eles estão habituados à aparição de peregrinos e Christopher McCandless, um rapaz de 24 anos, oriundo de uma família classe média alta de Annandale, Virginia, foi mais um deles. Eles os vêm com certo desprezo, como assombrações que insistem em passar por ali, impulsionados por fantasias a respeito de si e do lugar e assim os descrevem: ‘jovens idealistas, cheios de energia, que se superestimaram, subestimaram a região e acabaram em dificuldade (…) há um bocado desses tipos perambulando pelo estado, tão parecidos que são quase um clichê coletivo.’”(…)

A região atrai todo tipo de aventureiro, em geral jovens, submetendo-se à rudeza da experiência como rito de passagem. A fibra necessária para enfrentar tal provação, os sofrimentos físicos e a superação dos medos, a solidão em que em geral essas viagens são feitas, se justificam na expectativa de consolidar uma identidade e de corroborar um valor que eles próprios possam acreditar que têm. (…)

“Vale questionar-se sobre as razões de por que a trajetória desse rapaz tenha se tornado livro, filme, motivo de debates acalorados, assim como inspirador de identificação entre aqueles que sequer gostam de aventuras na natureza radicais na natureza. Apesar de seus desejos eremitas, o autonomeado Alex era um entusiasta contador de sua própria história e de seus ideais, deixou suas andanças documentadas, além de comentários sobre as fontes literárias em que fundamentava suas crenças. A última aventura, por ser desastrada e dramática, tomou o centro da narrativa e o ângulo pelo qual o enxergamos, mas ele foi muito mais do que isso. Sua morte trágica, por inanição no Alasca, nos legou uma coleção de enigmas. Enigmais e pistas a respeito de como teria sido o encontro do jovem com a natureza e a morte. Sua tragédia real, fortemente inspirada na literatura avizinhou-se da poesia. Por isso os escritor Krakauer, o cineasta Sean Pen e neste momento nós também, assim como tantos outros, seguimos ocupando-nos dessa história, que se tornou mítica.
São poucos os que têm coragem de fazer a experiência radical de largar a vida comum e sair ao encontro da aventura, principalmente hoje, em que há uma enorme adesão a uma vida reclusa onde pode-se viver experiências meramente virtuais. Muitos desses jovens acomodados sonham com os verdadeiros riscos e as genuínas vivências de quem abriu mão de todas as comodidades e da segurança por opção, e não em nome de uma causa ou missão, ou ainda por ter sido convocado.
O sucesso do livro não é outra coisa que combustível para essa fantasia – e isso nos revela o desejo de fuga como uma das dimensões da adolescência. Na prática pode ser a migração para outra geografia, para outra cultura, mas, em muitos casos, como neste, para fora da cultura propriamente dita, como se a natureza o fosse purificar da sua história, como se ela fosse a única alteridade respeitável. Esta é a dramática história de um jovem buscando refundar-se com o mínimo apoio possível, longe de tudo e de todos.” (…)
“O interessante em estar na estrada é viver sem rumo, o que importa é o meio não o fim, não se vai a lugar algum, apenas se vai. Talvez possa ser lido como uma colocação em ato de uma das grandes questões dessa fase: como não sabem para onde ir, o caminho se faz ao andar. Assim vivem um eterno presente, esquivando-se da pergunta que ronda: o que vais fazer da tua vida? A pergunta é simples, singela, mas para muitos ela abre uma porta de pavor, sentem-se incapazes de responder e, imaturos demais para as exigências do mundo. Fogem da questão e de quem eles supõe que a fariam.
A tarefa de tornar-se alguém começa com uma incontornável alienação à história familiar, mesmo que os pais tentem ser democráticos. Subjetivação e sujeição se confundem, parecem o mesmo movimento. Tomar nas próprias mãos o resultado do que fizeram conosco e fazer algo peculiar, é a tarefa que cabe à adolescência desde que o individualismo tornou-se dominante. A revolta contra essa marca primeira de dependência, que tinge-se de uma espécie de mágoa por ter sido submetido a eles, volta com toda força nessa idade. Na verdade, eis a fonte daquilo que os adultos estão sempre denunciando como uma ingratidão dos mais jovens: deveriam reconhecer que quando eram desamparados seus cuidadores lhes dispensaram tudo o que precisaram para crescer. Porém, infelizmente, a gratidão nesse caso viria com o preço de continuar preso dentro de casa, agora pagando a conta. É por isso que os adolescentes não sentem como legítimos os pilares em que se sustentam, precisam relativizá-los, questioná-los e fantasiar uma espécie de auto-fundação.
Sua questão é como trocar os próprios fundamentos sem que a casa venha abaixo. É uma operação complexa, que exige livrar-se dos pais da infância, na tentativa de abafar suas reais ou supostas exigências. É preciso matá-los simbolicamente e sair vivo da empreitada. Fugir de casa ou partir e deixar de dar e receber notícias é uma das tantas maneiras de desfazer-se dos pais. Essa é a escolha de Alex. Por isso, no caso dele, como no de tantas outras fugas de casa, o sofrimento dos pais não é considerado. É quase como se eles nunca tivessem existido, o propósito é exatamente esse. Com a maior parte das pessoas que Alex interage durante suas andanças repete o ciclo, encontra, faz um vínculo forte e parte sem dar adeus, sem que o outro possa proferir sequer uma palavra de despedida. Mais que ir embora, ele sumia, essa era sua marca.”(…)
“Antes de pensar o que o pôs a correr de seu habitat de origem, convém entendermos melhor em que direção apontava seu desejo. O andarilho Alex foi admirado não somente pela ousadia do seu desprendimento, mas sim pelo fato de que durante aqueles dois anos construiu uma existência coerente com seu pensamento romântico radical e morreu em consequência disso. Ele é visto como se fosse o herói de uma guerra pessoal, capaz de sacrificar-se pela sua crença.
Mas examinemos seu pensamento, de modo em que ele revele o que haveria de admirável para aqueles que leram sobre sua história: afinal o que um jovem buscaria na natureza? Percebemos que ela representa para ele uma alteridade radical, algo a ser conquistado, vencido. Mas por que a experiência frente a seus rigores seria capaz de funcionar como uma prova convincente? E de que valor? E para quem?
Os pais podem até ser muito generosos, mas querem ser recompensados pelos seus investimentos amorosos. Ser filho de alguém é carregar o peso da aposta que se fez em nosso nome. De alguma forma sempre vem a mensagem de que devemos pagar pelo lugar simbólico que ocupamos em uma linhagem. A força das marcas familiares que fundaram o sujeito é sentida particularmente na adolescência, é o fim do jantar e o momento de receber a conta. A cultura dos pais, seus sonhos e projetos, seus erros e acertos vão impor-se ao ser que eles criaram, querem que ele se realize nos termos dos seus valores. Muitas vezes o desejo parental pode não ser de continuidade, não é nada incomum que seja até de rompimento: vá além, faça o que não consegui, enfrente o que me derrotou, escolha melhor do que eu fiz. Outras, é de mera continuidade, mas não importa o tom, sempre soará opressivo e, quanto maiores os recursos psíquicos do jovem, menos pesada será a consciência e a desilusão de concluir que o amor dos pais nunca foi incondicional.
Já a natureza, embora na prática suas exigências possam ser cruéis, parece ser equânime e desinteressada. Estar sozinho em lugares extremos pode produzir momentos de euforia, numa comunhão íntima com a beleza da paisagem, muitos dos quais foram relatados por Alex. Isso se você estiver disposto às agruras necessárias para chegar e permanecer ali. Os que conseguem sentem-se vitoriosos, mas trata-se de uma conquista em que não se cedeu ao desejo de ninguém, não exigiu troca de favores, não se negociaram crenças nem houve medições de prestígio. As exigências de uma montanha, um deserto, uma grande onda, a imensidão do oceano, de uma floresta cheia de ciladas, serão iguais para todos os que ingressarem nelas. O que muda são os recursos com os quais cada um entra na cena. Por isso era fundamental para Alex não possuir nada que diminuísse os riscos, que amenizasse as exigências do lugar, era uma forma de aumentar a magnitude de uma experiência que ele considerava pura e essencial.
Acreditamos que, pela semelhança das experiências a que se lançaram o “personagem” McCandless e o escritor Krakauer (autor do livro responsável pelo resgate do personagem), podemos tomá-los, para efeito de reflexão, como duas vozes de pensamentos similares. A pesquisa do jornalista o levou a citar trechos dos autores preferidos do seu personagem e, entre eles, temos a seguinte passagem de Caninos Brancos, publicado em 1906 por Jack London:
“A própria terra era uma desolação sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que seu espírito não era nem mesmo o da tristeza. (…) Era a imperiosa e incomunicável sabedoria da eternidade rindo da futilidade da vida e do esforço de viver. Era a Natureza, a selvagem, a de coração gélido, a Natureza das Terras do Norte.”
O livro de London contrasta o heroísmo natural das criaturas selvagens, assim como do valor intrínseco da beleza da paisagem do Alasca, com a mesquinhez, a incompreensão dos homens corrompidos em nome do ouro. Estes últimos, segundo as críticas que Chris dirigia a seus pais e seu modo de vida, são representantes do sistema de valores erguido em torno do dinheiro. Seus pais se sacrificaram muito para subir na vida e, como acontece em todas as famílias, não deixavam de adular o valor de suas conquistas, no caso em termos de poder aquisitivo. O filho negou-se a ganhar dinheiro, insistia em que o ouro não media nem provava o valor de ninguém. Já a natureza, esta sim pareceria uma juíza legítima e a ela ele se entregou.”

Replicantes: reivindicações terminais

Trecho do Capítulo 6, do livro “Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia”, dedicado às criaturas Golem, ao monstro do Dr Frankenstein, aos replicantes de Blade Runner. Disponibilizamos aqui, em comemoração ao novembro de 2019, data do futuro previsto na distopia de PhilipDick, filmada por Ridley Scott.

“As coisas elétricas também têm sua vida,
por pequena que ela seja. ” (Philip Dick)

Humanos falsos e verdadeiros

As primeiras décadas do século XXI pareciam muito mais distantes em 1968, quando Philip Dick ambientou para essa época seu livro Sonham os androides com ovelhas elétricas?. Após as mais de quatro décadas que nos separam daquela concepção futurista, vale observar que estamos vivendo no tempo histórico retratado no livro. Felizmente a catástrofe ambiental resultante da Guerra Mundial Terminal, prevista pelo autor, ainda pode ser evitada e talvez o mundo inteiro não se torne súdito das grandes e onipresentes corporações comerciais.
Nessa história, a radioatividade resultante da guerra tornou nosso planeta inabitável e todos aqueles que tiveram alguma condição de fazê-lo emigraram para as colônias extraterrestres. A terra é um lugar em decomposição, onde a poeira radioativa obstruiu o sol e envenena o ar, insalubre para os poucos que aqui restaram. Mas não foram somente colapsos ambientais que o homem fabricou, ele criou a mais maravilhosa das máquinas: o androide, uma réplica dos humanos, de eficiência indiscutível, capaz de ajudá-lo na tarefa da colonização. Porém, assim como a guerra fugiu ao controle, também com os androides as coisas não saíram como previsto. O homem acaba sempre sendo de alguma forma inferior ou impotente frente ao poder revelado pela criatura que inventa.
O livro é genial, mas não teria tantos admiradores, caso sua história não tivesse sido reinterpretada, em 1982, pelo diretor Ridley Scott em Blade Runner: o caçador de androides. A adaptação de Scott para a história original é bem livre, mas mantém o essencial, com o qual podemos acompanhar a atualização do mito literário que nos interessa – a criatura gerada artificialmente pelo homem que se torna um monstro – e compreender alguns de seus movimentos.
Livro e filme enfocam os dramas existenciais de Rick Deckard, um caçador de recompensas, cuja missão é identificar e eliminar androides rebelados. Essas criaturas são modelos muito evoluídos de robôs, fisicamente idênticos aos humanos, mas superiores a eles em inteligência e força física, chamados Nexus-6. Eles não passam de autômatos, concebidos para realizar trabalho escravo nas colônias extraterrestres, onde os homens tentam conceber um novo mundo. Porém, diferente do planejamento original, parecem ser suficientemente humanos para almejar algo além de sua condição escrava, por isso se rebelam.
No livro buscam a liberdade, enquanto no filme seu objetivo é obter mais prazo de vida, já que são desenhados para durar apenas quatro anos. O caçador, celebrizado no cinema por Harrison Ford, é uma personagem desiludida, em processo de questionar a própria humanidade e, portanto, seu direito de eliminar outros seres. O futuro projetado nessa história supõe uma humanidade que tenta descobrir-se entre os restos da destruição que protagonizou. É uma reflexão filosófica que brota como a natureza reagindo depois da neve ou de um incêndio.
Deckard é parte de uma escória social: dos que ficaram na terra contaminada, impedidos por alguma razão de comprar seu lugar em uma dessas promissoras colônias onde os humanos organizam sua nova sociedade. Aqui restam os doentes, fracos, estranhos e pobres, mas Deckard ficou preso por seu ofício de caçador de recompensas recebidas a cada androide eliminado. A volta à Terra era proibida aos androides, que eram eliminados, ou “retirados”, para usar os termos da história, em um eufemismo para sua “morte” assim que aportassem. Aqui também fica a matriz da fábrica de androides, aonde Deckard vai para validar o teste de Voigt-Kampff, que utiliza para diferenciar um humano de sua cópia quase perfeita. A insegurança, o medo de errar e matar um ser humano por equívoco assombram o detetive e sua corporação, por isso o tema dos testes é importante.
Os Nexus-6 são quase indistinguíveis do original: inclusive foram dotados de falsas memórias, lembranças de uma infância que nunca tiveram, com o qual se visava produzir um relativo amadurecimento emocional, como se tivessem vivido e aprendido algo, limitando assim sua impulsividade e agressividade. O teste Voigt-Kampff consiste em perguntas, todas elas alusivas ao horror que pode ser produzido pela perda de uma vida, seja ela animal ou humana. Todas as questões descrevem situações que mencionam a supressão de alguma vida e espera-se que um humano a detecte e tenha uma reação imediata. Por exemplo: “você encontra em uma revista a foto de uma mulher nua, seu marido gosta da foto, a moça está deitada de bruços sobre uma enorme e belíssima pele de urso”. Como os medidores não mostram mudanças, Rick pensa: “uma resposta de androide; não detectou o elemento principal, a pele do animal morto”.
Supõe-se que o androide não padeça do trauma da destruição, que torna os homens sensíveis ao tema da morte. Os replicantes possuem memórias de fatos supostamente ocorridos com eles, porém nada sabem das dores, dos erros, das frustrações que se sofre no percurso. Eles foram concebidos já jovens adultos, portanto, não experimentaram uma verdadeira jornada de crescimento que os tornaria mais sensíveis e complexos. O resultado disso é que quando tornam-se inimigos são capazes de uma crueldade impassível, desconhecendo a culpa e as dúvidas, e toda sua eficiência de máquina coloca-se a serviço da destruição do rival.
Os personagens humanos da história de Dick organizam-se em torno da valorização quase obsessiva de qualquer resto de vida que o planeta ainda possui, animais vivos são o artigo mais cobiçado do mercado mundial, comercializados por altas somas e motivo de ostentação e inveja entre vizinhos. Deckard possui uma ovelha artificial, pois a original que tivera e lhe causava muito orgulho morreu, e ele precisa do dinheiro das recompensas para substituí-la. Despreza-se por possuir um robô, mas é necessário para sua imagem frente aos outros, pois quem não cuida de um animal é considerado “imoral e antiempático”, e essas parecem ser as maiores acusações que alguém pode fazer ao outro. O desprezo pela vida, simbolizado pela destruição nuclear, foi o causador do estrago no planeta e na nossa civilização, que obrigou o homem a deixar a Terra, por isso a preservação da vida está no topo da escala de valores deles.
Os Nexus-6 nada sentem a respeito dessa conjuntura de destruição e valor da vida, por isso as perguntas do teste que busca diferenciar humanos de suas réplicas artificiais versam sobre esse tema. No teste, a ausência da dilatação da pupila, que é monitorada, denuncia que eles não conseguem emocionar-se quando provocados pelo tema da morte de homens e animais. Para o autor, o sofrimento encontra-se do lado do humano, pois os replicantes não têm como reproduzi-lo, já que não realizaram a caminhada do crescimento. Eles não passaram pela experiência de ter medos infantis, não almejaram para seu futuro fantasias e metas irrealizáveis, nunca amaram dos jeitos estranhos e impossíveis próprios das crianças e dos adolescentes, tampouco se sentiram impotentes e inúteis, como nos ocorre quando pequenos. São esses percalços do passado que nos humanizam, experiências que desembocam no que os psicanalistas chamam de “castração”, nas quais não se perde literalmente nenhum órgão, mas, sim, simbolicamente, a potência que julgávamos possuir.
A humanização neste caso pode ser traduzida pela capacidade de estabelecer uma empatia com o outro, a sensibilidade que permitirá que ele seja alguém com quem interagir e não um objeto a serviço de nossa satisfação e necessidades. Nosso histórico de tentativas e erros, de ilusões e frustrações, assim como os desejos nunca realizados tornam-nos conscientes das nossas fraquezas e por isso permeáveis ao sofrimento alheio, isso é o que nos diferencia das cópias artificiais.
O romance inicia com uma questão que Iran, a esposa de Deckard coloca sobre o “órgão de ânimos Penfield”, um aparelho onde eles podem programar seu humor conforme a necessidade da ocasião. O objetivo de tal dispositivo é manter seus usuários em um estado de ânimo favorável, sempre disposto a colaborar e a ver o lado positivo das coisas. Através dele, pode se conseguir, por exemplo, “uma posicionada atitude profissional”, existe o “inibidor talâmico, que suprime a fúria” ou o “estimulador talâmico, que a incrementa o suficiente para triunfar em uma discussão” ou, ainda, a “consciência das múltiplas oportunidades que o futuro me oferece” e um “descanso reparador e merecido”. O órgão de ânimos Penfield faz todo o trabalho que hoje se encomenda às drogas psiquiátricas, que além de sua aplicação nos quadros graves ou moderados, também são usadas para a regulação e controle de humores e a força dos sentimentos que se julga necessária para tornar a vida mais leve e viável.
Certa ocasião, Iran havia retirado o volume da televisão, que nesse livro é uma espécie de “Grande Irmão”, e acabou escutando o silêncio e os sons provenientes do prédio semiocupado, da cidade abandonada em que eles viviam. Ao invés de apavorar-se, descobriu que se sentia melhor por poder vivenciar momentos de tristeza: “compreendi que era pouco saudável sentir a ausência da vida, não só nesta casa, mas em todas as partes e não reagir. […] Então deixei apagado o som da televisão e comecei a experimentar com o órgão de ânimos. E por fim consegui encontrar um modo de marcar o desespero. O incluí duas vezes por mês em meu programa. Parece-me razoável dedicar esse tempo a sentir a desesperança de tudo, de ficar aqui, na Terra, quando todas as pessoas legais foram embora”.
Os seres humanos tinham uma existência mecânica: eram constantemente instigados a partir para as colônias, onde receberiam um escravo replicante do modelo e utilidade que escolhessem, enquanto se anestesiavam com a televisão e seus órgãos de ânimos. Esse conjunto de formas de alienação os faria parecer mais com suas duplicatas artificiais, em uma inversão de papéis, na qual são os humanos que se aproximam da cópia robótica.
A propriedade de um replicante era propagandeada como um alegre retorno à época escravocrata , “a televisão gritava: novamente os dias felizes dos estados do sul antes da Guerra Civil! Seja como um criado pessoal, ou um incansável camponês, o robô humanoide feito à sua medida, projetado somente para você e para suas exclusivas necessidades, lhe será entregue na sua chegada [nas colônias] absolutamente grátis e completamente equipado, de acordo com suas próprias especificações formuladas antes de sua partida. Esse companheiro leal, sem problemas, consistirá na maior e mais ousada aventura humana da história moderna!”
Perder a conquista da abolição da escravatura não deixa de ser uma forma de abandonar a humanidade, é necessário banir a lucidez para não perceber que subjugar o outro é uma crueldade que nos dessensibiliza. A fantasia da criatura utilizada como um escravo era explícita na criação do Golem e aqui reaparece. A escravidão foi uma tradução social da perversão de perceber o outro como mero instrumento das vontades daquele que se coloca como seu proprietário. É assim que um sujeito se iguala a um objeto, perde a liberdade de desejar, e esse é um pesadelo que assombra todo tipo de vínculo, no qual a dependência mútua sempre ameaça tornar-se uma forma de imposição e domínio de um sobre o outro. Isso vale para as relações familiares, sexuais ou amorosas, portanto, as fantasias relativas à escravidão e seus horrores ainda traumatizam, tanto aos que são descendentes dos escravos, quanto dos escravocratas, remoendo indignações e culpas, mas transcendem essa referência histórica.
O fato de que os replicantes se rebelam, matam humanos, fogem para a Terra, onde não há escravidão, e tentam misturar-se à população remanescente, é prova de que possuem vontade própria e anseios maiores do que a programação original, portanto, desejos. Isso não parece compatível com sua condição robótica, de máquina com revestimento humanoide. Revelando-se mais que isso, tornam-se também personagens trágicos, na medida em que são fabricados como coisas, nas quais brota uma consciência de si e anseios típicos de seres pensantes. É assim que se aproximam da criatura de Frankenstein, concebida para ser apenas uma experiência científica, mas que acabou cobrando de seu criador um alto preço pela existência que lhe foi imposta.

Blade Runner: o caçador de androides de Ridley Scott

No filme, dois replicantes ganham mais destaque: trata-se de Roy e Pris. O primeiro, é o modelo mais evoluído dos Nexus-6, inteligentíssimo e muito forte, destinado à guerra, um soldado cibernético; ela é bela de um modo sinistro, seus traços perfeitos de boneca, possuem os encantos de uma androide destinada ao prazer dos humanos. Eles se amam, formam um casal e lideram um motim para vir à Terra. Seu objetivo era mais complexo que o dos replicantes do livro: buscam o criador, para dele exigir um maior prazo de existência, estão desconformes com os quatro anos de validade.
O encontro entre Roy e Tyrell, o gênio que lhe desenhou a mente, acaba acontecendo. Eles indiretamente jogam uma partida de xadrez que é obviamente ganha pelo replicante, provando que esses cientistas da ficção sempre acabam inventando algo maior e melhor do que supunham, algo que foge ao seu controle e supera suas expectativas, boas e ruins. O dono da Tyrell Corporation, responsável pela fabricação dos androides, parece maravilhado ao ver sua criatura, chama-o de “filho pródigo”, exorta-o a ser grato pela excelência com que foi construído, pelos poderes que lhe foram conferidos. Porém, nada pode fazer frente à programação letal que o fará morrer no prazo determinado, ela seria impossível de reverter. Sem nenhuma gratidão ou emoção, Roy esmaga o crânio de Tyrell, literalmente destruindo a mente que o construiu, devido à sua incapacidade de inventar uma solução para sua existência terminal. Pela sua impotência frente à morte, o criador sucumbiu.
O lema da Tyrell Corporation é “mais humano do que o humano”, no sentido de ser mais capaz e poderoso. Essa é uma ilusão corrente, de que o valor de cada um é medido unicamente pelas capacidades de desempenho, pela mostra de eficiência intelectual e física, por ser linda e desejável como Pris e invencível como Roy. Eles podem ser maiores em termos de dotes, porém com certeza não são mais humanos por isso. O contraponto aos perfeitos seres artificiais é feito por Deckard, um caçador de androides sombrio, inteligente e bom de briga, mas cheio de contradições e culpas propriamente humanas.
Sendo solteiro e solitário, apaixonou-se pelo primeiro androide Nexus-6 que conheceu. Quando foi à corporação que fabricava os androides para validar o teste, Tyrell lhe sugeriu que fizesse uma contraprova: testasse em uma humana para provar a eficácia do mesmo. A candidata era Rachel, que na verdade era uma obra-prima de Tyrell, um modelo ainda mais evoluído de Nexus-6, que acreditava ser humana até que Deckard a testou e constatou ser uma replicante. De forma muito humana, a moça sofre e se entristece ao descobrir que as memórias que possuía eram meros implantes, pertencentes à história de uma sobrinha do criador. É a partir do testemunho da fragilidade e do sofrimento dela que ele se compadece e começa a amá-la.
Esse amor foi a forma de, no filme, aparecerem de forma compacta as variações do pensamento da personagem do caçador do livro, que também está sempre se perguntando o que é mesmo a vida, qual seu valor e que direito se tem de criá-la ou suprimi-la. Evidentemente, o caçador não está disposto a eliminar sua amada, o que torna a tarefa de destruir os outros replicantes mais árdua e dolorosa.
Existem inúmeras leituras desse filme, que angaria legiões de fãs, nas quais se questiona se o próprio Deckard não seria um replicante. Um final alternativo, com a versão do diretor, que na época da estreia não conseguiu impô-la, nos leva justamente nesse caminho: ele também seria um replicante. Não há nada no livro que realmente alimente essas dúvidas, porém elas não deixam de ser uma compreensão dos pensamentos conflitivos da personagem a respeito do que seria verdadeiramente ser humano. No livro, Deckard até pede a um colega que aplique o teste nele. Mas a questão da dúvida entre ser e não ser replicante é melhor que uma resposta definitiva, pois é disso que se trata, as personagens tanto do filme como do livro colocam-se questões filosóficas que no fundo levam a pensar: o que é que nos faz humanos? Qual o valor que damos à vida, por menor que ela seja, assim como de poder senti-la de verdade, mesmo que se trate de desespero. O policial de Dick começa desprezando os replicantes, para ao longo da história descobrir que lhe é muito difícil desconsiderar qualquer tipo de existência, mesmo que artificial. No filme, se apaixona por uma replicante, talvez porque eles tinham as mesmas questões, não sabiam o que eram, pensavam-se humanos e descobriram-se máquinas.
Na versão original, depois de terminar sua tarefa de eliminar os androides, encontra-se triste e frustrado, sente-se apenas um “policial de mãos grosseiras”, marcadas pela morte. No filme, ao testemunhar o discurso final de Roy e fugir com sua replicante amada, Rachel, ele revela que desborda de seu papel e resolve viver de acordo com suas dúvidas: afinal, quem sabe o que é mesmo um humano? A resposta a essa pergunta, que empresta humanidade a todas essas criaturas, independente do material de que são feitas e da intenção do criador, é que a humanidade provém do sofrimento, da inevitável experiência da castração. É fato, cuja importância aqui se ressalta, que um filho fará uma jornada de tristezas e dúvidas que seu pai não terá o poder de impedir, por mais que nunca eles perdoem um ao outro por essa indigesta realidade.
Talvez a melhor prova da humanidade dos replicantes seja esta cena final do filme, onde o que Roy pede é que algumas de suas memórias sobrevivam depois da morte. Após a luta final, na qual a supremacia de Roy é indiscutível, Deckard é mantido vivo por ele, que sabe estar prestes a morrer. Quer que seu rival escute as últimas palavras e testemunhe sua morte: “Eu vi coisas que vocês humanos nunca acreditariam. Ataquei naves em chamas nas bordas de Orion. Observei Raios-C brilharem na escuridão dos ares dos Portões de Tannhauser. Todos estes momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”. A humanidade retratada nesse fim de existência é indiscutível, dele se conclui que é impossível dar vida a uma criatura que não faça reivindicações nem tenha expectativas humanas, e também que é a consciência da morte que dá a gravidade da vida.
Por mais que queira fabricar alguém muito maior do que ele mesmo, cada pai, como Tyrell constatou de forma letal, acaba gerando apenas mais um humano. A declaração na hora da morte de Roy denota uma capacidade de perceber a força das experiências que teve e o anseio por vê-las reconhecidas, por compartilhá-las. Essa cena faz do replicante uma criatura bem diferente de um robô, um autômato sem emoções. A vida mecânica das máquinas, neste caso está mais próxima do que Dick descreveu como aquela que os humanos estavam levando nas colônias extraterrestres: autômatos escravocratas, anestesiados, incapazes de julgar e sentir, manipulados pelas corporações.
A expectativa de fazer de um filho algo mais próximo dos replicantes perfeitos e eficientes, à medida das necessidades dos pais, projetado conforme seus desejos é parte intrínseca da paternidade. O desejo primeiro dos pais é de que a criatura que se gerou possua apenas as potencialidades, sem a parte das emoções, da impotência e do sofrimento, que são intrínsecos da infância e crescem com o indivíduo, ou seja, esperam que o filho viva para o sucesso e a satisfação. Por isso, qualquer pai necessariamente ficará abalado ao ver um filho sofrer, e tantas vezes, constatamos na clínica, opta por afastar-se dele para manter intacto seu ideal.
Como todo criador que não compreende a complexidade de sua criatura, Tyrell sucumbiu ao crescimento dela. Não da mesma forma como ocorreu com os rabinos que deixaram o Golem crescer demais, restrito ao gigantismo físico, mas exatamente como o cientista Frankenstein, que viu no monstro que criou apenas uma experiência e esperava que ele se ativesse a esse limite. A criatura de Shelley avolumou-se em sensibilidade, humanizou-se e dirigiu-se a Frankenstein exigindo-lhe mais. Daquele que considerava seu pai, esperava que fosse mais poderoso, menos covarde, consequente e responsável por seus atos do que demonstrara ser. Já os seres criados por Tyrell também o procuraram para cobrar mais: queriam que ele completasse a perfeição de sua obra: se eram belos, inteligentes e fortes, porque durariam tão pouco?
É o feitiço voltando contra o feiticeiro: inicialmente foram os pais, neste caso os criadores, que se desiludiram. Eles esperaram muito de sua experiência e viam na perfeição de suas criaturas nada mais do que a comprovação de sua inteligência e poder, mas acabaram sendo eles os acusados pelo desencanto dos filhos. Ao invés da insatisfação do pai, é a do filho que cobra seu preço.
No livro de Shelley, em um momento de arrebato, quando estava empolgado pela experiência, antes de realizá-la, o doutor Frankenstein passa bem a ideia do quanto essas criaturas foram planejadas para serem escravas do desejo e instrumentos da realização de seu criador: “uma nova espécie me abençoaria como seu criador e sua origem; muitas criaturas felizes e excelentes passariam a dever sua existência a mim. Nenhum pai podia reclamar a gratidão de um filho tão completamente quanto eu daquelas criaturas”. A megalomania das fantasias do cientista, tão distantes da realidade do ser monstruoso e carente que animou, dão a medida exata do contraste que a paternidade vivencia entre o filho nascido e a idealização que o precede. Não somente os poderes e capacidades daquele que se gerou não correspondem ao ideal, mas também os atributos do pai, que esperava ser tão reverenciado e reconhecido em sua grandeza, tampouco estão de acordo às expectativas.
Em um livro fundamental para pensar o tema, Carta ao pai, o escritor Franz Kafka reclama de seu pai principalmente a pretensão de que o filho lhe seja grato e a soberba com que conduziu sua educação: “você era para mim o que há de enigmático em todos os tiranos, cujo direito está fundado, não no pensamento, mas na própria pessoa”. Kafka se considera sempre abjeto, um verdadeiro inseto frente à grandeza que o pai atribui aos próprios atos, cobrando uma admiração que o filho não conseguia sentir por ele. Porém, o que para o pai era motivo de queixas e acusações, para o filho era gerador de culpa e autodepreciação. A cobrança feita pelo pai é mais forte do que a contrapartida, pois a ascendência dele sobre o filho, cuja subjetividade ainda está em formação e é dependente dele, é maior do que as recriminações que possa receber.
Frankenstein teve a vida destruída e Tyrell o cérebro esmagado pela indignação dos filhos destes criadores frente à impotência dos pais, que se revelaram incapazes de oferecer-lhes o que eles precisavam e desejavam. Assim como um pai está disposto a afastar-se de um filho que se revele tão tristemente humano, esses filhos pretensamente perfeitos ou que encarnavam ideais monstruosamente grandes, estão dispostos a perseguir e matar seus limitados pais.
Existem muitas outras criaturas como a de Frankenstein soltos pela literatura, por exemplo, o desmemoriado espião Jason Bourne, transformado em uma máquina de matar. Ele se vê no mundo sem saber seu nome, nem de onde vem e quais são suas habilidades. Aos poucos se descobre um soldado hipertreinado, praticamente invencível, capaz de lutar com qualquer arma em qualquer meio, enfim, um homem acima das capacidades normais. Descobrimos que fora despersonalizado para poder matar sem remorsos, fazia parte de um projeto do governo de fazer assassinos perfeitos para usos políticos. Mas algo deu errado: em um desses assassinatos, uma fresta de sua antiga alma o fez vacilar, isso o abala e ele não encontra a antiga estrutura para se apoiar. Transforma-se em um ninguém que sai em busca de seu passado e de quem lhe fez ser o monstro (no sentido da insensibilidade assassina) que é. Obviamente, como costuma ocorrer com essas criaturas artificiais, moldadas pela pretensão de um homem, depois de longa busca, mata seu criador. Este também o buscava para matá-lo, pois ele era um projeto que deu errado e esse erro trouxe várias consequências desastrosas, em uma história que, embora protagonizada por um humano, aproxima-o da de Frankenstein e de seu monstro.
Mas a questão é que todos nós somos um pouco como a criatura inventada por Mary Shelley: rebelamo-nos nos momentos que percebemos a influência paterna, que inevitavelmente recebemos, como algo que nos foi imposto e consideramos que o que ele espera é muito maior do que o pouco que se dispôs a dar. Ingratos, na visão do pai, na verdade nos mostramos incapazes de suportar suas expectativas, seus sonhos onipotentes projetados em nós, tão tristemente humanos.
Facilmente transformamos nosso legado em paranoia, quando os desejos e desígnios de nossos pais, algo sem o qual nada seríamos, nos parecem uma ordem, um imperativo. Frente a isso, passamos a desejar que ele desapareça, saia do nosso caminho, e assim fazemo-nos, em alguma medida, parricidas. Não podemos acreditar nesses filhos monstruosamente paranoicos, pois, ao mesmo tempo em que acusam o pai de não ser suficiente, não falam de outra coisa do que na grandeza que seu pai deveria ter. É uma espécie de contraste com a fantasia de não ser filho de ninguém, em um verdadeiro delírio de autonomia, que notamos em certos sujeitos. O pai não tem saída, ou está de mais, ou está de menos, o certo é que nunca acerta a mão. A paternidade é esse exercício exaustivo de colocar-se em um lugar onde as grandes expectativas, que é preciso ter, se encontram com seus limites. O desafio é equilibrar-se nesse limiar.

Dumbo: um amor grande como um elefante

O elefantinho orelhudo é herdeiro da linhagem do Patinho Feio, dos que se sentem rejeitados, da temática dos que nascem diferentes dos rígidos padrões sociais. Eles representam a contemporânea busca de um lugar para ser, que leva o romance moderno ao conto de fadas.

O filme Dumbo é mais uma criação de Walt Disney que, se pode dizer, foi responsável por um revigoramento dos contos de fadas. Desde o lançamento de seu filme sobre a Branca de Neve (em 1936), ele foi o precursor de outra modalidade de apropriação da linguagem do conto de fadas, agora narrados em compasso com as imagens, sob forma de desenhos animados. As histórias da tradição oral, assim como aquelas obras literárias que se tornaram clássicas, como é o caso de O Patinho Feio, devem sua sobrevivência às sucessivas re-apropriações de que foram objetos. Os compiladores tradicionais, como Perrault, as adaptaram à linguagem de seu tempo. Podemos dizer que houve – e haverá – repetidos momentos de reciclagem, em que velhas narrativas se atualizam em novas linguagens. Uma história não necessariamente supera a outra, muitas vezes, podem proliferar versões ou tramas inspiradas umas nas outras. Lançado em 1941, Dumbo lembra o conto de Andersen, não o substitui nem o supera. Por isso, vamos enfocar nossa leitura nas diferenças entre essas histórias.
A história do elefante voador foi escrita pelo próprio Disney. Ele afirmou ter se inspirado na figura de um elefante que vira numa caixa de cereais. Através deste desenho animado, aproximadamente um século depois, o patinho feio e rejeitado transformou-se num bebê elefante que nasceu com gigantescas orelhas de abano. Esse defeito o tornava motivo de escárnio por parte de todos no circo em que vivia. Mas agora o filhote torto está com a sua mãe, e ambos sofrem com o seu defeito. A novidade é que a mãe moderna aceita – pelo menos tem de aceitar – o filho do jeito que venha, afinal, agora o amor materno é um valor em si.
Mesmo contando inicialmente com o amor da sua mãe, o drama de Dumbo também é de separação. Dona Jumbo, a mãe, é encarcerada após ter uma crise de fúria contra aqueles que maltratavam sua cria. O elefantinho ficou só, tendo apenas o rato Timóteo como conselheiro. Com um final feliz, a história termina provando que o defeito de Dumbo era na verdade uma virtude, pois suas enormes orelhas o transformam num elefante voador. Como o Patinho Feio, cuja aparência diferente não era um defeito, apenas uma característica das jovens aves de sua espécie, o elefantinho tinha as tais orelhas destinadas a algo maior. Ambos desconheciam suas qualidades, que carregavam consigo como um fardo, ambos se descobriram superiores aos outros, mas só depois de um bocado de sofrimento.
Até o começo da sociedade moderna, o amor materno não figurava entre os requisitos que uma mulher queria reivindicar para si. Nos primeiros momentos da emancipação feminina, era grande o desejo de desincumbir-se dos filhos e do lar, sempre que houvesse posses para isso. Libertas do pesado fardo do trabalho doméstico, as nobres emancipadas e as primeiras burguesas jogaram o bebê fora junto com a água do banho, dedicaram-se ao ócio e às tentativas de se mimetizar com os privilégios e as tarefas masculinas. Incumbiam seus bebês aos cuidados de amas-de-leite, muitas vezes fora do lar de origem, e os recebiam de volta quando já tivessem formato de gente, se tivessem sobrevivido até lá .
Na modernidade, o filho passa a ser um projeto prioritário para a mãe, mesmo antes de provar sua viabilidade. O destino dela está associado ao do filho. A sociedade incluiu o cuidado com a família entre as realizações necessárias para atingir o sucesso. Acaba valendo a máxima: diga-me como são teus filhos e eu te direi quem és. A maternidade não é uma tarefa degredada, realizada nos bastidores da sociedade, hoje ela é importante, central, digna de ocupação e preocupação.
Quando Disney criou Dumbo, essa mudança já estava consolidada. Dona Jumbo não se faz de rogada, aceita o seu filhote e briga por ele, mesmo que isso venha a arruiná-la, como é o caso. O filho vai ser sempre sentido e vivido como se fosse parte da própria mãe. Ela ficará ao seu lado no infortúnio e ele será sua extensão narcísica.
O drama do elefantinho se centra no fato de que ele se vê privado dessa proteção, quando sua mãe é encarcerada. Essa história tem seu fim quando se produz o milagre de fazer um elefante voar. A diferença entre a história do pato e do elefante está na consagração do amor materno como um grande valor. O patinho já demonstra essa valorização, pelo lado negativo, na medida em que a história frisa a rejeição egoísta da pata e o desamparo do filho. Dumbo, que tem sua mãe a seu lado, não se transforma numa bela criatura pré-existente na natureza, como o cisne, ele se revela um ser fantástico, um elefante voador. Como vemos, as mães não investem em troca de pouco…
Nesse sentido, o final do filme de Disney difere do conto de Andersen: em O Patinho Feio, a felicidade significa encontrar a tribo e ter uma existência autônoma; para Dumbo, o final feliz está em preencher as expectativas do ideal materno e ser algo grandioso. O impossível de um elefante voar aconteceu, logo as fantasias desatinadas de uma mãe dedicada podem ser alcançadas. Assumir o formato do ideal materno, no entanto, é uma proposta regressiva, é uma possibilidade de se entregar infantilmente à condição de ser objeto da mãe. Infelizmente, a experiência clínica nos revela o quanto isso pulsa forte em cada um de nós, perseguindo-nos a vida inteira.
Se na modernidade a mãe mudou, o mesmo ocorreu com a infância. O aspecto mais marcante dessa modificação é seu prolongamento. Não há mais pressa em abandonar as asas da mãe. Junto dessa prorrogação do crescimento, estão a valorização desse período da vida e as expectativas que temos dele: ser crianças por mais tempo, para que os pais também possam investir mais em tornar os filhos algo mais próximo de seu ideal. Em Dumbo, essa infância prolongada já está presente, pois ele é um herói fixado nesse período de idílio com a mãe.
E o pai de Dumbo? Não temos notícia, mas a função paterna é feita por um ratinho, o Timóteo – como nas histórias de fadas que veremos adiante, temos um pai desvalorizado, neste caso, minúsculo. A assimetria desse casal rato-elefante, no exercício das funções paterna e materna, simboliza bem o que sempre sentimos: uma mãe maior do que suportamos, e um pai sempre aquém do necessário para barrar a sua potência. Nas piadas tradicionais, o enorme elefante costuma ter medo de ratos, mostrando que tamanho não é documento. Porém, não deixa de ser ilustrativo que a mãe seja tão imensa, enquanto o personagem que poderíamos associar ao pai seja tão pequenino.
O ratinho representa um pai que surge como um conselheiro oportuno e sábio, mas só depois que o destino tira de cena a dona Jumbo, cujo amor paquidérmico ocupava todos os espaços. Timóteo cria um objeto mágico, uma peninha, que faz com que o elefantinho perca o medo de voar. Convence-o que se estiver segurando-a na tromba não cairá. Só depois, quando Dumbo já estava convencido de seu dom, Timóteo lhe revela que a história da peninha fora um pequeno truque.
Não pode haver nada mais paterno do que esse episódio, ele é similar ao que ocorre quando as crianças aprendem a andar de bicicleta: em um determinado momento, quem as está segurando deixa-as soltas, e elas seguem pedalando sozinhas, confiantes de que estão sendo amparadas. O trabalho do pai é esse auxílio no crescimento, que passa por deixar voar, mas entregando uma peninha que represente sua presença, ou, com as mãos soltas, acompanha com o olhar as primeiras pedaladas independentes. Trata-se de um apoio que saiba se ausentar na hora certa e possa ser substituído pela confiança nos passos do filho.
Quando Andersen escreveu O Patinho Feio, justamente estava se operando a valorização da infância que culminou nos dias de hoje. Porém, por alguma razão, essa história não sucumbiu. Os adultos a seguem contando, as crianças continuam escolhendo-a como algo digno de ser repetido a cada noite. Pelo jeito, ela não é apenas uma relíquia, ela fala de coisas que ainda são ativas no nosso inconsciente. Pensamos que, nesses casos, pouco importa o sexo do personagem, embora tanto o patinho quanto o elefante sejam masculinos. A condição universal e precoce de suas representações não oferece barreiras à identificação das meninas.
Ao comparar a história de Dumbo com a do Patinho Feio, podemos pensar que o conto de Andersen não se deixou substituir e é mantido vivo pelas crianças e seus pais, graças à ênfase no fato de que cada um terá de batalhar pelo seu lugar no mundo. Embora Dumbo tenha vivido sua aventura longe da proteção materna, numa jornada de crescimento, a fonte de sofrimento se situa na conjugação da hostilidade do mundo com a ausência da mãe. O Patinho Feio não esperava nada de sua mãe, que aliás se revelou uma madrasta. Mas compartilhamos com ambos uma certa dose de desamparo e de sentimento de rejeição, o que nos impulsiona na busca de um lugar ao sol.
O Patinho Feio já se descolou de seu criador, foi apropriado por todos e circula em várias versões. Sua força é tal que muitos chegam a crer que é um conto da tradição oral, o que serve para provar que as criações literárias podem ter a mesma pregnância que os contos ancestrais. Há algo de estrutura comum entre essa criação de Andersen e os contos tradicionais: o patinho não recebe um prenome, designa-se pelas características funcionais do personagem, assim como o final feliz redime e justifica o sofrimento anterior. Porém falta a tradicional revanche ou punição dos vilões. Nessa história não há um vilão específico, apenas o ambiente tem suas rusticidades, ele sofre de frio e fome. O papel de mau se reserva às aves que o discriminaram, assim como no circo, o elefantinho orelhudo foi achincalhado pelas amigas da mãe . De qualquer maneira, esses personagens que maltratam o patinho, estão longe de ser vilões do quilate de bruxas, ogros e dragões. Tampouco encontramos a quebra de alguma interdição, que geralmente faz a virada das situações nos contos de fada.
Como dizíamos antes, consideramos que O Patinho Feio faz uma ponte entre o conto de fadas tradicional e o romance moderno, já que, na trama de Andersen, a fonte do sofrimento é também interna. Esse conto já contém uma psicologia rudimentar, coisa que os personagens dos contos de fadas podem até revelar, mas o sofrimento se dará mais em função da tragédia em si e menos no discurso do personagem. A caminhada do Patinho Feio, diferentemente do percurso dos personagens clássicos de contos de fadas, é mobilizada pelo sentimento de rejeição e pela sua vontade interna. Lembremo-nos de quando ele deixa a casa da velha, onde não estava sendo propriamente maltratado, porque não se adapta à companhia dos outros animais domésticos – uns tipos bem desagradáveis – e sentia saudades de nadar na lagoa. As dificuldades externas auxiliam nas decisões de quando partir, mas o que realmente o move é o fato de não se sentir bem recebido em determinado lugar.

A infância entre coelhos, gatos e doidos.

Numa época em que estamos mais rodeados do que nunca, mas potencialmente desamparados. Numa época em que nós e o mundo mudam de proporção aos nossos olhos o tempo todo, nada como uma história onírica cheia de animais mágicos para nos representar. Trechos do capítulo X do livro “Psicanálise na Terra do Nunca”, dedicado ao clássico de Carroll

Aventuras de Alice no país dos sonhos

Alice, seu País das Maravilhas e suas aventuras através do espelho seguem angariando legiões de fãs e estudiosos. Os leitores eruditos encontram em suas linhas todo tipo de sabedoria e maluquice: desde complexos enigmas matemáticos até não menos cabeludas patologias psíquicas. Discutem-se essas inferências praticamente desde sua publicação, em 1865. É inútil colocar mais lenha nessa fogueira, que deve ser deixada aos cuidados dos ativos membros das diferentes Lewis Carroll Society distribuídos ao redor do mundo todo, especialistas na matéria.
A história de Carroll tem a estrutura de um sonho, ou melhor, de quase um pesadelo desses nos quais se sai de uma enrascada para cair em outra. Porém, só poderíamos saber a razão de ser de cada um de seus elementos se fossemos psicanalistas do autor e a história de Alice fosse um relato feito durante uma sessão de análise. Já uma obra literária dispensa essa escuta, ela é um sonho oferecido à fruição coletiva e como tal sonha-se em cada um de seus leitores. Portanto, resta-nos apenas versar sobre os efeitos dessa história, deduzir o segredo de sua magia.
A pergunta que nos colocamos aqui é bem mais simples do que as respondidas pelos teóricos das diversas áreas que esmiúçam o conteúdo dessa obra. Seus estudos constituem uma inesgotável fonte de pesquisa para quem estiver em busca de referências históricas, da fonte de onde o autor retirou as poesias, charadas e personagens dessa história, assim como o que cada uma delas significa. Já nossa questão é: o que a faz ser tão tocante para tantos por tanto tempo? O começo da resposta também é direta e simples: o pensamento de Lewis Carroll era simpático à representação do mundo e aos sentimentos que são peculiares às crianças, gostava de exercitar-se na lógica infantil e soube descrevê-la de forma que adultos e crianças se sentissem implicados nela. Ele era grande apreciador de charadas e jogos de palavras, o que para as crianças é motivo de grande encanto.
Boa parte da graça da infância provém do jeito canhoto e literal através do qual as crianças compreendem o que se diz e faz. As cenas sociais ou domésticas constituem enigmas que elas precisam decifrar, os quais podem parecer bem estranhos aos recém-chegados nesse mundo, exatamente como ocorria com Alice em suas andanças na onírica terra das maravilhas. Brincar com múltiplas interpretações de uma palavra é fácil para aqueles que lembram bem que há muito pouco viveram na carne essas confusões, já que estão ainda familiarizando-se com a linguagem e os costumes do planeta dos adultos. Quando crescemos, junto com a maior parte das memórias da infância, perdemos a familiaridade com sua lógica, esquecemos que quando pequenos, ao nosso modo, também filosofávamos, tentávamos, de maneira rudimentar, compreender o mundo. Carroll nos devolve a conexão com esses pensamentos perdidos porque, enquanto artista e matemático, sempre os apreciou, como se fosse uma língua arcaica que ele nunca deixara de praticar. Para tanto, manteve-se próximo das crianças, ás quais contava histórias e de cujo senso de humor partilhava.

O mundo louco das pessoas grandes

Vista de fora, focada com a lente infantil, a vida dos adultos se parece com a do Coelho Branco, que corre atrás de objetivos ridículos, a mando de uma rainha ensandecida. Um mundo de loucos, já dizia o Gato de Cheshire:
“‘Somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca’,
‘Como sabe que sou louca?’, perguntou Alice.
‘Só pode ser’ respondeu o Gato, ‘ou não teria vindo parar aqui. ’
Alice não achava que isso provasse coisa alguma; apesar disso, continuou: ‘E como sabe que você é louco?’
‘Para começar’ disse o Gato, ‘um cachorro não é louco. Admite isso?’
‘Suponho que sim’, disse Alice.
‘Pois bem, continuou o Gato, ‘você sabe, um cachorro rosna quando está zangado e abana a cauda quando está contente. Ora, eu rosno quando estou contente e abano a cauda quando estou zangado. Portanto sou louco.’
‘Chamo isso ronronar, não rosnar’, disse Alice.
‘Chame como quiser’, disse o Gato.”

Nós, que já somos crescidos, parecemos ser mais sérios do que as crianças que só sabem brincar. Mas estabelecemos como certas ou erradas condutas, cujo critério é insondável à lógica – por que seria certo abanar o rabo quando se está contente e errado fazê-lo quando se está brabo? Vista de fora, nossa vida é estranha, entregamo-nos a desígnios aparentemente fúteis, que em geral não compreendemos. Afinal, por que usamos carros tão maiores do que precisamos para nos locomover? Por que nos importa tanto quantas vezes um atleta consegue colocar a bola dentro de um marco com uma rede? Para que andar de salto, se é incômodo para caminhar?
Somos tal qual o Chapeleiro Maluco, que vivia condenado a um eterno chá da tarde, ou como as Rainhas esbaforidas que percorriam seu mundo de tabuleiro com a mesma pressa inútil do Coelho. São as mesmas determinações inconscientes que regram a lógica estranha dos sonhos, as que influenciam decisivamente nas escolhas da vida e determinam o nosso modo de ser: as fobias, os preconceitos, as dificuldades bobas que nos atrapalham, as compulsões e os desejos que temos. Nossa mente é similar ao País das Maravilhas: um território imprevisível, paradoxal. Se os adultos padecem de males e têm preocupações difíceis de entender para eles próprios, imagine então como é difícil para as crianças, que em geral são levadas na corrente deles sem maiores esclarecimentos. O mundo gira e gira rápido, mas para onde mesmo vamos?
Resta aos pequenos a passividade de serem arrastados de uma cena à outra, exatamente como ocorria com Alice. Eles nem sempre sabem aonde querem ir, nem para fazer o quê, mas poderiam ser consultados, ou ao menos informados. O problema é que as crianças raramente têm claro quais são suas prioridades, resta-lhes obstruir as ordens dos adultos com alguma birra, argumentando, ou até refugiar-se em suas brincadeiras e fantasias.
Depois de muitas aventuras, há um diálogo de Alice com o mesmo gato, quando ela lhe pergunta que caminho deve tomar para ir embora, o leitor pensaria que para ela já basta de andar à deriva, saindo de uma situação absurda e caótica para entrar em outra. Parecer-nos-ia natural que ela quisesse voltar para casa, junto de sua gatinha Dinah, que não sorri, porém tampouco fica desaparecendo no ar aos pedaços. Essa dedução é resultado da angústia que esse texto causa: uma história na qual as andanças da personagem por diversos lugares bizarros, que em geral lhe são incompreensíveis e frequentemente hostis, é tão acelerada e repetitiva que até a versão de Walt Disney é inquietante. Mas não é o caso de Alice, essa viajante curiosa. Na verdade ela está em busca de novas aventuras, por isso responde ao gato que só lhe interessa chegar a “algum lugar”.
As crianças não se angustiam tanto com a experiência do desconhecimento e de ter pouco controle sobre as escolhas, pois essa é sua vida. O único antídoto contra essa deriva é a presença de algum adulto em quem elas possam confiar, mesmo que ele seja um trapalhão bem intencionado, como o Cavalheiro Branco. É uma garantia mínima, para contentar alguém tão pequeno com desafios sempre gigantescos. O caráter destemido de Alice reflete a inocente coragem natural das crianças. O tempo passa e, graças ao fato de que aprendemos com a experiência, vamos tornando-nos cada vez mais cautelosos, infelizmente ao preço de subjugarmos boa parte da curiosidade.
Mas as crianças têm seus próprios problemas: elas ficam mudando de tamanho, e isso é muito incômodo. Certamente elas crescem, porém isso não acontece de forma linear. Como Alice, elas são acometidas de surpreendentes espichos. Além disso, elas convivem com crianças de idades e ritmos de crescimento diferentes, por vezes sentem-se grandes frente aos outros, em outras situações são pequenas e, no meio dos adultos, tudo ocorre nas alturas. Os velhos para elas também constituem um enigma: sendo tão mais velhos por que não seriam enormes? Por que pararam de crescer? Ao contrário, são frágeis e não raro pequenos. Viver é mudar de tamanho o tempo todo, por isso as alterações de estatura constituem uma das poucas coisas de que Alice se queixa nas suas andanças oníricas.
Mesmo que no País das Maravilhas e atrás do espelho não se pare de encontrar criaturas de toda espécie, na prática, ao longo de suas aventuras, poucos falam com Alice. Não é que lhe sejam indiferentes, estão visivelmente interessados em contar-lhe suas histórias, expressar seus pensamentos, cantar para ela suas músicas, recitar enfadonhas poesias. Quando algum diálogo é bem-sucedido, o que é raro, isso só ocorre após muita insistência dela e cômicos mal-entendidos. Alice não cessa de se surpreender sobre o pendor daquela gente, se é que se pode chamá-los assim, para ofender-se e dar-lhe ordens. De um jeito ou outro, os diálogos persistem somente enquanto a menina escuta e obedece, mas se interrompem assim que ela opina, solicita uma informação ou favor. Essa é uma experiência própria da infância que não raro se perpetua ao longo da vida: a maior parte dos nossos interlocutores não está interessada em escutar e ajudar. Todos querem falar, ser ouvidos, mas a triste constatação é que poucos realmente escutam. São as exceções a esse quadro que fazem as grandes amizades e os verdadeiros amores, que são, como se sabe, muito poucos. Em nosso mundo ou no dela: “‘isto aqui é tão solitário’, disse Alice, melancólica; e à ideia de sua solidão duas grossas lágrimas lhe rolaram pelas faces”.

Frankenstein: o filho queixoso

2018 encerrou, ano estranho, não por acaso ano do centenário da publicação da primeira versão de Frankenstein, escrito por uma das primeiras crias do feminismo, a jovem escritora Mary Shelley. Essa história ainda nos diz muito. Neste momento em que tantos exigem de uma figura paterna o que ela nunca pôde dar, em que tantos tomam decisões em nome dos mesmos ressentimentos que moveram o monstro, talvez seja hora de reler esse mito literário. Aqui, trechos do nosso livro “Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia”, publicado em 2010.

“Lembra-te de que fui criado por ti;
eu devia ser teu Adão,
porém sou mais o anjo caído. ”

O nascimento de Frankenstein

Tão popular como um monstro do folclore, Frankenstein nasceu na literatura, no livro Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de autoria de Mary Shelley, uma jovem inglesa de 18 anos. O fato é que decorridos quase dois séculos, todos ainda sabem quem ele é. Podem não saber exatamente detalhes da história original, pois esse personagem ultrapassou muito as páginas do romance de Shelley, mas algo de sua essência continua reverberando em uma época tão distinta daquela que o viu surgir. Isso faz dele um dos mitos literários da era individualista, ao lado de Fausto, Robinson Crusoe, Dom Juan e Dom Quixote; ou seja, são personagens que nasceram em livros, mas já habitam a imaginação popular.
Essa novela nasceu de um desafio literário realizado por um grupo de amigos: isolados pelo mau tempo durante umas férias, Mary Godwin Shelley, seu marido Percy Shelley, junto com os amigos Lord Byron e John William Polidori, lançaram-se a escrever histórias de horror para divertir uns aos outros. Dos convivas, foi a jovem Mary a que mais seriamente cumpriu a tarefa. O primeiro livro saiu em 1818, mas em na sua terceira revisão, em 1831, é que se estabelece o texto clássico tal qual foi traduzido em várias línguas.
Como era comum na literatura da época, principalmente entre aqueles romances que caíram em gosto popular, a história lança mão do recurso das cartas, misturadas ao relato em primeira pessoa do protagonista: Dr. Victor Frankenstein, estudioso de ciências naturais, o homem que descobriu como dar vida à matéria morta.
A novela começa pelas cartas do capitão de um navio que rumava para o Polo Norte para sua irmã, contando uma estranha aventura que lhe acontecera. Nessa paisagem inóspita ele se deparou com o Dr. Frankenstein, e o recolheu em seu navio mais morto do que vivo. Ele lhe contou a triste história da fabricação de um monstro e sua missão de persegui-lo e destruí-lo. Como o trajeto do navio lhe convinha e estava fraco para continuar a caçada sozinho, o doutor segue a bordo e morre após terminar seu relato. A maior parte do livro consiste nessa história, transcrita pelo capitão, do nascimento do monstro, o destino trágico de criador e criatura, finalizando com um pedido de Frankenstein de que, em caso de sua morte, alguém se incumbisse de eliminá-lo. Na cena derradeira, Walton ainda tem um encontro com a criatura que subiu ao navio para o último adeus ao seu criador. O monstro parte, prometendo dar fim à sua própria existência.
Frankenstein teria decidido revelar sua triste sina para que o navegante não se deixasse destruir pela sua ambição de atingir o Polo, como ocorrera com ele anteriormente. No derradeiro fim, aquele que, como veremos, não conseguiu ser pai para ninguém, que perdeu tudo e todos, restando só o maior dos seus erros, entra em nossa história em uma posição paterna: a do sábio que aconselha o aventureiro, tentando ensinar-lhe a viver. Enfim, como nunca antes, ele consegue fazer um derradeiro gesto de cunho paterno. A história do monstro e do seu criador, ambos conhecidos pelo mesmo nome de Frankenstein é a história do quanto esse homem sofreu para que esse simples diálogo pudesse ocorrer, nem que fosse apenas à porta da morte.
Depois de escutar Frankenstein, o capitão desiste de sua obsessão por atingir o Polo Norte. A conquista do polo, feita quase um século depois desse livro, em 1909, já era meta de aventureiros que queriam marcar seu nome na história, indo até onde nenhum homem ainda chegara. O Polo Norte tem uma mística própria, serve de símbolo do fim do mundo, de ponto de orientação, pois é para lá que a bússola aponta. Talvez seja essa mesma lógica que faz do Polo a moradia de Papai Noel, um lugar extremo e ao mesmo tempo central, orientador. Se boa parte da queixa que perpassa o livro é a de que vivemos desorientados, que não existem referências paternas sólidas, de que o pai nunca fornece um norte, não deixa de ser irônico que seja justamente próximo desse eixo do mundo que ocorra o encontro entre Frankenstein, seu monstro e o viajante que se tornará o porta-voz de sua história.
Conforme seu relato, Victor Frankenstein foi primogênito de uma importante família genebrina e aos 17 anos, quando se preparava para sair de casa e frequentar a universidade, perdeu sua mãe. Junto da família vivia Elisabeth, adotada pela família quando ambos tinham cinco anos e eles se tratavam como primos. Porém, apesar do vínculo familiar que o ligava à moça, a mãe pede em seu leito de morte que eles se casem, e é a essa noiva que o coração do rapaz estava entregue. A perda da mãe, embora já não fosse uma criança, o deixa desconsolado, com muitas questões sobre a morte e pouco disposto a aceitá-la. Victor já possuia curiosidades científicas, e uma vez na universidade em Ingolstadt, volta-se para as ciências naturais, mas com uma ênfase muito particular: seus estudos são norteados pela obsessão à qual vai dedicar a vida, que é vencer a morte. Essa sua inclinação particular o afasta dos seus pares, por isso acaba conduzindo sozinho as pesquisas mórbidas a que se entrega. Ele estuda os mecanismos da morte, a putrefação e norteia-se pela sua crença de que poderia revertê-la ou impedi-la.
Na história escrita por Mary Shelley não há detalhes sobre a fabricação da criatura, a maior parte deles foi acrescentada pelas versões posteriores, principalmente as cinematográficas, que relançaram a história em novas inflexões. Shelley apenas cerca a gênese de mistérios e de discursos filosóficos, nos faz crer que o Dr. Frankenstein domina a ciência moderna, mas não dispensa a tradição alquimista antiga. Após o frenesi que domina sua vida através de anos de pesquisas, ocorre o esperado “nascimento” de um corpo de mais de dois metros, composto a partir de restos de cadáveres. Mas o ser por ele criado, desde o momento em que abre os olhos, desafia seu criador como algo bem maior do que um experimento científico.
Paradoxalmente, ao invés de comemorar a vitória da ciência sobre a morte que ali se consagrava, a conquista do objetivo que consumira suas forças até ali, o cientista ficou tomado pelo horror. Ele considera que a origem do pavor que sentiu emana dos olhos mortiços do espantalho que acabara de animar. Após realizar os procedimentos necessarios para a animação do corpo que construira, viu “abrir-se o baço olho amarelo da criatura (…) seus olhos desmaiados, quase da mesma cor acinzentada das órbitas onde se cravavam”, descreve ele. A partir daí, o cientista caiu imediatamente em uma mistura de sono e desmaio, na qual sonhou que estava beijando Elisabeth, mas ela se transformava no cadáver decomposto de sua mãe.
Após esse sonho, acorda apenas para ver a criatura que já estava em pé, ao lado de sua cama, contemplando-o: “seus olhos, se é que assim podiam ser chamados, estavam fixados em mim”. Em uma inversão de papéis, desta vez é o criador que desperta e encontra sobre si o olhar do “cadáver demoníaco ao qual tão desgraçadamente eu havia dado a vida. Nenhum mortal seria capaz de suportar o horror daquele rosto. Uma múmia revivida não seria tão horrorosa quanto aquele destroço. Eu o contemplara antes de terminar meu trabalho; ele era feio, porém, quando aqueles músculos e articulações passaram a se mover, ele se tornou uma coisa que nem Dante poderia ter concebido”. O horror do cientista parece ser um fato naturalmente inspirado pela sinistra imagem de sua criação, cabe a nós compreender a fonte desses desencontros de olhares.
Assim que pôde, Frankenstein fugiu do local, abandonando o monstro à própria sorte, e nos dias em que se seguiram caiu enfermo, em estado de inconsciência, sendo amparado pelo seu melhor amigo que justo chegou para encontrá-lo. Por isso, a formação da criatura que vai progressivamente aprendendo a compreender o mundo, a pensar, a falar e até a ler se dará em total isolamento, de forma indireta, isenta de qualquer tipo de olhar que lhe dê suporte e reconhecimento. O monstro tudo vê, mas nunca pousaram sobre ele quaisquer olhos que não o quisessem matar. Para ele, que era um corpo inerte, abrir os olhos equivale ao nascimento, significou estar vivo. Porém, no princípio de sua existência ele provocou o desejo de que ela não tivesse acontecido. Isso é ainda pior do que ser rejeitado ao nascer, a criatura invoca no criador o horror, o impulso de negar esse fato. Victor Frankenstein renega o que fez, arrepende-se.
Desde a primeira centelha da vida de sua criatura, o cientista não lhe desejou mais que a morte. Pior, pois matá-lo talvez não fosse tão difícil, desejou que seu experimento não tivesse dado certo. Mais do que matar o monstro,Victor gostaria de eliminar sua obra, mas isso era impossível. Mesmo que a criatura tivesse sido destruida ao despertar, o cientista continuaria perseguido pelo seu feito. O rastro de violência que segue o monstro é somente a encarnação dessa culpa pela descoberta da reversão da morte. Após este ato de negação da morte, o Dr. Frankenstein não faz mais do que reencontrá-la. Aliás, a morte o persegue, encarnada no monstro, que elimina todos seus seres queridos. Enquanto isso progride, Victor não consegue matar seu monstro, em uma mistura de impotência com vacilações, como se a destruição só pudesse se alastrar após semelhante experiência.
Mas de onde vem essa mudança de rumo tão brusca? Uma pista pode ser o pesadelo que Dr. Frankenstein teve depois do “nascimento” do monstro: “… tive a impressão que segurava em meus braços o cadáver da minha mãe; um sudário envolvia-lhe o corpo, e eu via os vermes rastejando pelas dobras do pano”. Esse sonho não seria tão revelador se não estivesse ligado ao que acontece imediatamente, ele desperta e o monstro o está contemplando, tentando falar e tocá-lo. Ele se desespera e foge. Na sequência do texto há uma continuidade entre a monstruosidade do corpo da mãe, por estar morta, e a do monstro, passando de um horror a outro, e é o horror da morte que está no fundo. Em outros momentos da história já intuíamos que obsessão do cientista por vencer a morte era fruto do luto malsucedido da perda de sua mãe, e aqui é a visão da mãe morta que retorna em sonhos quando ele finalmente “vence” a morte.

A educação do monstro

Depois de ser abandonado por Frankenstein, o monstro deixa o laboratório e aprende a alimentar-se, abrigar-se e a decodificar suas percepções. Solitário e sorrateiro, sobrevive às intempéries isolado dos seres humanos, que sempre que lhe pousam os olhos gritam, fogem ou o apedrejam. Em uma ocasião, ocupa um esconderijo ligado à casa de uma família constituída por um ancião cego, seu filho e filha. Eles acolhem uma estrangeira, noiva do rapaz, e lhe dispensam uma série de ensinamentos, desde a língua e as letras, até literatura, ciência, política, filosofia. Em segredo, escondido e espiando por uma fresta, o monstro apropria-se das lições e torna-se letrado e pensante. Grato pelo que indiretamente aprendia, ele lhes dispensava pequenos favores sempre oculto pelas sombras.
Quando se sente suficientemente forte, sai de seu esconderijo e apresenta-se ao cego, seu professor involuntário, para demonstrar-lhe sua gratidão, esperando ser aceito pelo grupo. A conversação com o velho vai bem, mas se interrompe quando o filho entra no recinto, o vê, e o costumeiro comportamento de agressões e fuga se repete. Só que desta vez a criatura, que se sentia muito ligada aos seus benfeitores indiretos, sofre e se vinga, colocando fogo na casa que eles haviam deixado para trás em sua fuga.
Entre as roupas que saíra vestindo do laboratório de Frankenstein, o monstro descobre em um bolso o diário do cientista, onde se encontra narrada em detalhes a aventura de sua origem. Lê com horror: “neles está relatado tudo o que se refere à minha origem maldita. […] Encontrei minuciosa descrição de minha odiosa figura. […] Maldito o dia em que recebi a vida! Exclamei cheio de agonia. Maldito criador! Por que você me fez um monstro tão horroroso que até mesmo você foge de mim repugnado?” Mary Shelley criou nesse monstro um ser filosófico que em sua reclusão havia feito várias leituras, entre elas O Paraíso Perdido, de Milton. Portanto, ele já se comparara com Adão, ao qual invejava a proteção recebida pelo seu criador. A epígrafe do livro contém uma citação de Milton: “Pedi eu, ó meu criador, que do barro me fizesses homem? Pedi para que me arrancasses das trevas?”.
A revolta contra o criador principia-se aí, quando reflete sobre os motivos de seu desamparo e solidão. Para o monstro, ele não estava à altura do gesto de originar a uma vida e no decorrer da história o fará pagar caro por isso. A intenção de dar-lhe origem, como fica claro nessa epígrafe, partiu do criador, portanto ele precisa responsabilizar-se por ela, pois o monstro, como um filho qualquer, não pediu para nascer. Inicialmente a mágoa não mostra o potencial destrutivo que assume quando ele tem a desilusão com essa família do pai cego, pois mais uma vez é rejeitado por aqueles de quem esperava alguma filiação. Trata-se de uma renovada experiência de frustração, na qual novamente aquele de quem espera uma adoção não pode olhar para ele.
Parte então em busca do criador, a quem culpa pela sua desgraça. Tendo localizado, através do diário, a cidade onde residia a família Frankenstein, ele se dirige para lá em busca de vingança. Assim que teve oportunidade, estrangulou o irmão menor de Victor e colocou a correntinha do falecido no bolso de uma criada da família, que foi enforcada injustamente, considerada culpada pelo assassinato.
Após esse crime, ocorre um encontro entre Frankenstein e o monstro no qual este lhe conta sua história e reclama do abandono. Em troca de deixá-lo em paz, exige que lhe seja fabricada uma companheira, sua Eva. No início, o cientista chantageado, aceita, mas quando a está concluindo e se vê frente a mais uma obra sinistra, se apavora e a desmancha em pedaços, o que deixa o monstro ainda mais furioso. Mais adiante, ele também matará o melhor amigo e a amada do criador, em plena noite de núpcias. O monstro não se contenta em destruir Frankenstein, quer secar-lhe a linhagem, salgar sua terra, fazer dele alguém tão solitário e ímpar como ele próprio. No final, voltamos ao ponto de partida do romance, onde criador e criatura vão aos extremos do mundo um no encalço do outro, sem conseguir eliminar-se mutuamente. “Tu, meu criador, me detestas e me abominas, a mim que sou criatura tua, a quem te achas ligado por laços só dissolúveis pelo aniquilamento de um de nós. Pretendes matar-me. Como ousas brincar assim com a vida? Cumpre teu dever para comigo, e eu cumprirei o meu para contigo e o resto da humanidade.”
A demanda não poderia ser mais clara, é uma mágoa contra seu pai, exigindo-o a assumir a responsabilidade sobre sua presença no mundo. São centenas de páginas de exortação para que o cientista se responsabilize, de alguma forma pague pelo abandono e rejeição da sua criatura. O monstro é um filho que acredita ter direito à acolhida e orientação por parte daquele que considera seu pai: “eu aprendera pelos seus papéis que você era meu pai, meu criador. A que outra pessoa poderia eu recorrer senão a você, que me dera a vida?”
A condição irreversível da paternidade é um dos pesadelos da função. Para a mãe, o uso de seu corpo por parte do feto já se incumbiu desse trabalho de convencimento de que o filho passará a ocupar espaço para sempre na sua vida. Já o pai, irá descobrindo isso aos poucos, convencendo-se, muitas vezes de forma dolorosa, de que seu destino passou a ser inseparável daquele que gerou. Observamos que quanto mais paranoide o homem for em relação a isso, mais seu filho tenderá a tornar-se um pesadelo, um perseguidor, exatamente como ocorreu com a criatura de Frankenstein. A paternidade dita biológica, não assumida espontaneamente, comprovada por exame genético, é a versão jurídica desse pesadelo. Nesse caso, um homem se descobre eternamente ligado a um filho que ignorava, renegou ou nunca desejou.
Nas inúmeras adaptações da obra que se seguiram, inicialmente no teatro e depois nas telas, a criatura de Shelley perdeu o direito à palavra. Os longos discursos de ressentimento e cobrança deram lugar a um monstro tosco, abrutalhado e balbuciante. Mas em quase todas perdurou esse impasse inicial, no qual o cientista se horroriza frente à sua obra, desfalece e abandona-o. O monstro vaga solitário, incompreendido e acaba reagindo a tanto desamparo com raiva e sede de vingança. O cerne do mito, portanto, pode ser entendido a partir da criação e abandono de um filho, que por isso torna-se monstruoso; mas também o pânico causado pelo ato de originar um ser é uma das fontes do horror contidas nesse mito literário que atravessa os tempos.

As mutações do monstro

Mary Shelley teve um encontro feliz com uma ideia que sintetizou um feixe de fantasias muito úteis a seus contemporâneos e a muitos que ainda estavam por nascer. Assim que ela publicou seu livro, ele foi transposto para o teatro, com imenso sucesso de público. A partir dessas adaptações teatrais algumas novidades somam-se e modificam a história original. A história dessas versões demonstra, conforme Hitchcock, que “certos elementos permaneciam constantes: um ser criado horroroso e de estatura desmedida, a presença de raios e eletricidade nos acontecimentos da história e a relação psicológica íntima entre criador e criatura. Ao mesmo tempo a história já começara a agregar novos elementos, estranhos à versão de Mary Shelley, muitos dos quais vinculados tão fortemente que sempre aparecem desde essa época: um monstro incapaz de articular palavras, um assistente de laboratório desastrado, uma multidão irada em busca do monstro e um final cataclísmico no qual a criatura e o criador perecem juntos. O público devorava avidamente essa história de monstro, contada e recontada, remodelando-a muitas vezes”. Essa descaracterização tanto da solidão e isolamento do cientista, quanto, e principalmente, da criatura, que no romance é tão discursiva, não irritou a autora. Pelo contrário, ela ficou sensibilizada pela comoção da plateia, que parecia entender o espírito de sua obra. A partir de então, o livro original, que segue nas prateleiras após quase dois séculos, assim como a personagem emudecida pela sua versão dramática firmaram-se enquanto um mito literário.
Um mito não tem autor, ele pretende estabelecer a história da origem das pessoas, do mundo, dos objetos e extrai sua veracidade da provável fonte sobrenatural da narrativa. Seu uso busca amalgamar o máximo de elementos possíveis, pois ele não existe para gerar interrogações, mas sim para dar explicações, para fechar questões. Para tanto, um mito engloba em seu interior todos os elementos úteis que puder angariar: referências históricas, fantasias comuns, elementos do cotidiano de cada época. O mito é uma tentativa de dar explicações através de histórias para o que é frequentemente inexplicável, e se não se ocupasse das fronteiras do nosso conhecimento, não seria necessário recorrer a argumentos fantasiosos para dar conta do assunto. Já os mitos literários são assinados, sua fonte é humana e claramente estabelecida, porém eles possuem a mesma característica de imantar elementos de um momento histórico, da forma como se estrutura a sociedade e a intimidade dessa época, e combiná-los com fantasias atemporais, gerando uma trama que pode ser transposta a outros lugares e outras épocas. Uma história se torna mito quando ela se transforma, permanecendo ela mesma, em um aparente paradoxo.
Mitos literários, portanto, são histórias que transcendem esse ponto de partida claramente autoral, para caírem em outras mãos, porque o público consome versões que vão transformando-a a seu gosto, ele se apropria delas para fins de elaboração de suas questões e as vai transformando sutilmente. Mais do que a corrupção de um original, se estabelece uma harmonia entre um cerne essencial da narrativa que se conserva, enquanto cenários e personagens se modificam, que é justamente o que nos autoriza a pensar que estamos lidando com algo maior do que o livro de um autor.
O monstro é órfão de mãe, e filho da relação de um homem com a ciência, é a criatura incompreendida e abominada por todos, que persegue seu pai-criador até o fim da vida de ambos, essa é sua essência. Embora ele tenha sido privado das palavras que usava para acusar Frankenstein, sua imagem continua angariando pena e horror ao mesmo tempo, pois ele é a encarnação de um erro, além do retrato do abandono.
O horror provém do ato monstruoso que parece ter sido a própria criação e o desafio à morte que ela pressupõe, nisso estão igualados o cientista e seu monstro, enquanto o feito de um e seu produto resultante que é o outro. Por isso, em todas as versões joga-se com a alternância das duas personagens que, para efeitos populares, acabaram atendendo pelo mesmo nome, criador e criatura, já que o monstro fica identificado à loucura onipotente que lhe deu origem. Por outro lado, a fuga do cientista que deixa a despreparada criatura à mercê de um mundo nada acolhedor produz uma empatia inesperada no público, que acaba penalizando-se daquele que tem tudo para ser apenas rejeitado.
O livro recorre a um arrazoado filosófico, que associa o monstro ao bom selvagem, um ser ávido de receber acolhida e uma formação, ao qual a rejeição transformou em obstinadamente mau. Na obra de Shelley a empatia com a criatura é racional, discursiva: escutamos dele todos os esforços que fez para parecer-se com os humanos, que ele observava de longe e escondido, assim como seu anseio por ser admitido entre eles e o sofrimento cada vez que era reduzido a ser a abominável representação de um ato inaceitável. Ele queria ser humano, mas os maus-tratos o lembravam de que não passava de uma forma artificial de vida infundida a pedaços mortos, assustador como um fantasma. Ele buscava compreensão e só encontrava exorcismo. Já no teatro, ao ver substituídos por rudimentares balbucios, gestos e olhares os complexos raciocínios com que defendia sua essência originalmente boa, que ele acusava de ter sido corrompida pelos homens, só lhe resta a identificação com uma criança que ninguém aceita como filho, que sequer é admitida como alguém da nossa espécie, para obter a simpatia e a compaixão do público.
A imagem corporal de alguém composto de pedaços costurados, cujo resultado tem aparência monstruosa, tem precedentes na teratologia. Conforme Warner, “a monstruosidade participa do desajeitamento da irregularidade, de suas classificações e harmonias imperfeitas, e encena a aberração por não conseguir permanecer consistente nem mesmo consigo próprio”.
A falta de um olhar materno que unifique as partes desconexas da criatura é o que empresta um caráter monstruoso à sua imagem. Em menor escala, observamos inúmeras distorções na imagem corporal de sujeitos que se enxergam como disformes, abjectos, com partes que devem ser ocultadas ou corrigidas. Em geral, nesses casos trata-se de pessoas em cujas vidas ocorreu algum desencontro radical ou uma importante falta de sintonia com a mãe. Mas a dismorfofobia aparece muito frequentemente na adolescência quando um outro olhar, agora como corpo sexuado, o desafia, portanto sua causa pode estar na confirmação desse corpo que o olhar materno colou.
O livro Frankenstein foi escrito por uma órfã de mãe. Talvez por isso não surprende que a história seja a de um filho, que contando apenas com a figura paterna, só possa oferecer ao olhar alheio a imagem da falta de harmonia de seu conjunto. Mais uma vez, vemos aqui retratadas as limitações que atribuímos à Função Paterna. O pai pode nomear, mas carece do poder do olhar que unifica. Criador e criatura, portanto, fecham os olhos um para o outro.
A sobrevivência dessa história, e sua transformação em mito, está ligada ao fascínio gerado por esse ato profano de criação, que já alimentava a popularidade das histórias sobre o Golem. É uma instigante fantasia sobre a prepotência de um homem que tentou negar a morte, descobrindo um método para impingir vida à matéria inerte, que quis superar deus, a ciência de seu tempo e prescindir das mulheres para dar origem a um ser vivo. Filho de tanta pretensão masculina e de nenhuma mulher, essa criatura involuntariamente acaba representando a bancarrota da onipotência de um pai, de quem o desmaio, a fuga e o arrependimento mostram a fragilidade. Esse homem que quis tanto, negando a própria morte com seus atos, é tão mítico quanto seu enorme filho desamparado. Na verdade, um não existe sem o outro, por isso eles partilham o nome. Ele quis tudo e ficou com nada, por isso foi, no livro, totalmente destruído.
Frankenstein também é o protótipo do “cientista louco”, personagem que ganhou espaço a partir dessa época. Desde então tentamos saber o que resta da sabedoria, já que a igreja e a tradição não mais respondem por ela. Através dessa figura do cientista louco nos mostramos nostálgicos, negamos a ele a totalidade de saber e o castigamos pela ousadia. A ciência é a herdeira imediata da expectativas que depositávamos na religião: que seja fonte de segurança, antídoto contra o desamparo. Se até mesmo a fé, com toda a sua convicção, foi abandonada, por que a ciência, com suas certezas sempre transitórias, teria nossa adesão garantida?
A personagem do cientista louco, marginal em relação aos seus pares e capaz de superar o conhecimento de seu tempo, reflete nossa ambivalência. Confiamos que sua genialidade ultrapassará as fronteiras do que já se sabe, mas como a condição transgressora e revolucionária de suas descobertas é punida, é como se, ao mesmo tempo, déssemos também um voto de desconfiança. Supomos que suas invenções, que o desgarram do já estabelecido, vão produzir algum tipo de desequilíbrio: ele ficará transtornado, ou sua obra será de alguma forma perigosa, ou ainda trará algum tipo de alteração no mundo cujos efeitos serão nocivos. No caso de Frankenstein ocorreram essas três consequências de sua descoberta.
Em seguida ao surgimento do livro, e ao longo de um século, as peças de teatro foram dando contornos novos ao monstro, até que, em 1910, a criatura de Shelley encontrou um novo meio para expandir sua influência. A Edison Film Company, pioneira na história do cinema, o recrutou entre as primeiras personagens do recém-nascido cinema mudo, com direito a inéditos efeitos especiais. Mas foi a versão cinematográfica de 1931, com direção de James Whale, o momento crucial para a difusão de Frankenstein e a sua posterior transformação em mito. A imagem que vem à cabeça de todos, de um ser de cabeça quadrada com eletrodos no pescoço, cheio de cicatrizes mal costuradas, usando roupas pequenas para seu tamanho, é a do ator Boris Karloff maquiado para esse filme.
Whale estabeleceu o cânone estético e muitos dos aspectos que hoje consideramos intrínsecos à criatura. Como já era de hábito, seu monstro se limita a grunhir e movimenta-se como um grande bebê, já que o ator usava ferros nas pernas e pesos nos pés para que seu andar ficasse vacilante. Os olhos profundos e negros de Karloff, com a maquiagem pesada nas pálpebras eram frequentemente enfocados, fazendo do monstro um rosto triste a ser olhado para angariar nosso afeto. Se para o cientista, na narrativa de Shelley, o olhar de sua criatura o apavorou por serem olhos mortiços, no cinema isso foi substituído por uma expressividade que redunda no contrário: é desamparo que constatamos nos olhos caídos de uma criatura que clama por adoção. Whale também retoma a tradição teatral do ajudante corcunda e sinistro, e coloca grande ênfase no roubo de cadáveres, o que no original é apenas uma alusão.
A temporalidade indefinida em que a novela é tecida está bem ilustrada nesse caso e ajuda aos contornos míticos que a personagem ganhou posteriormente. No filme, tudo se passa em uma aldeia genérica europeia onde o passado e o presente, o arcaico e o moderno se confundem. Embora sofra as influências de seu tempo, ele é um romance não datado e mistura um saber científico de ponta com alquimia medieval. O laboratório do Dr. Frankenstein, um lugar que congrega todos os instrumentos científicos da época de Shelley, situando-os dentro de uma torre gótica, é uma boa imagem dessa síntese. Aliás, o cânone dessa imagem foi estabelecido pelo filme de Whale, mais de um século depois, pois no livro, o laboratório é apenas é um lugar sinistro.
Embora nos forneça imagens definitivas, o filme simplifica a trama. Temos no início o Dr. Frankenstein obcecado pelas suas investigações sobre a fronteira entre a vida e a morte. Ele rouba cadáveres para prosseguir suas investigações solitárias, afinal a academia não iria tão longe como suas experiências. Um erro que ele não se dá conta vai ser fatal para sua criação: enviado ao necrotério para obter uma parte fundamental da criatura, seu ajudante trapalhão rouba o cérebro errado, não de uma pessoa normal, mas de um psicopata.
Depois da criação, o ansiado resultado da pesquisa científica a que havia se entregue com tanto entusiasmo é como sempre renegado pelo criador horrorizado que adoece. Enquanto isso, o novo ser é deixado preso, aos cuidados do ajudante corcunda que o chicoteava impiedosamente. Acossada pelos maus-tratos, a criatura devolve-lhe a brutalidade e o mata. Como o monstro já nasce então fadado ao fracasso pelo seu cérebro doente, neste caso pouco se espera dele a não ser uma carreira criminosa, portanto, não há dúvidas de que ele deva ser eliminado. Quando fica consciente do seu erro, o Dr. Frankenstein e seu professor, que curioso do resultado havia comparecido para observar a experiência, concordam que ele deva ser destruído. O criador é resgatado por sua família que o recupera da saúde abalada pelos anos de esforço dedicados à ciência, enquanto se prepara o esperado casamento com Elisabeth. Enquanto isso, o professor fica no laboratório incumbido de eliminar o monstro, que já revelara sua natureza criminosa. Porém, a ciência é como uma sereia cujo canto enfeitiça o bom senso, e ele não resiste em fazer algumas últimas experiências no corpo anestesiado da criatura. Óbvio, para o bom andamento da trama, que ela acorda, mata seu algoz e foge.
Na sua escapada comete mais um crime, mata uma menina que encontrou ao acaso no caminho e brincou com ele. Desta vez, como da anterior, não há maldade: ele é inexperiente, tosco, incapaz de entender a lógica da brincadeira e comete um erro fatal: a menina jogava flores na água para que boiassem e convida-o para fazer isso com ele; entusiasmado com a brincadeira, ele atira a menina na água, para que ela também boie como as flores, e ela se afoga.
O cérebro do psicopata utilizado na construção do monstro, que supostamente teria desencadeado toda maldade não é convincente, sua carreira de assassino mais parece uma sucessão de trapalhadas do que de maldades. O monstro mata da primeira vez porque é brutalmente maltratado. Sua segunda investida é praticamente em legítima defesa, pois iria ser sacrificado e se salva matando o professor. Quanto à menina, trata-se de um mal-entendido lógico, do tipo que fazem as crianças pequenas. Elas colocam-se em risco em função da combinação perigosa de curiosidade com ignorância, tal como a que teve a criatura, que quis experimentar se a menina boiaria como uma flor. Quando a vê afundar, desespera-se e tenta retirá-la das águas de forma atrapalhada e inútil, resgatando apenas seu corpinho sem vida. O monstro porta-se como um bebê gigante, sem saber falar, sem entender direito o mundo, andando desajeitado, vaga mais perdido e digno de pena do que evocando terror.
O pai da menina leva a filha morta para a aldeia, que estava em festa, reunida para comemorar o casamento do Dr. Frankenstein. A cena da chegada do cadáver da criança, nos braços do pai desesperado, que vai estragando a festa por onde passa e transformando os aldeões em uma multidão de linchadores, é antológica da história do cinema. Quando ele chega lá todos compreendem o que aconteceu e saem à caça do monstro.
Trata-se de cinema para as grandes massas e essa história trágica precisa terminar bem: o monstro tem que ser eliminado, pois ele é um equívoco científico e o casal de protagonistas, o cientista e sua noiva, deve dirigir-se para um final feliz. As intermináveis conversas e encontros entre o monstro e o Dr. Frankenstein, que fazem o núcleo do romance de Shelley, estão eliminados. Além disso, agora ele se limita a uma visita a Elisabeth, sendo que nesse encontro, ao invés de ser assassinada apenas desmaia. Antes do cerco final, a criatura encontra seu criador e após uma luta ele carrega-o consigo para um moinho, mas o cientista escapa. O desfecho é previsível. O monstro acaba acuado em um velho moinho, em cujo interior ele é queimado vivo. Trata-se de um bem-sucedido exorcismo coletivo. Mas que demônio se expurga nessa cena?

Qual mito?

Se Frankenstein é um mito, a pergunta é qual seria, no sentido de sua filiação, ou então ele seria um mito novo? É claro que podemos ver traços de outros mitos nele, como o de Doutor Fausto, por exemplo. Afinal vemos uma equivalente paixão pelo conhecimento no Dr. Victor, já o monstro de Shelley lembra Mefisto pela eloquência, mas por certo essas comparações não dão conta da totalidade do tema, são pedaços de um todo mais complexo. A própria autora tenta nos convencer que se trata de um Prometeu moderno, isso está inclusive no título da novela. Provavelmente no sentido de uma insubmissão ao estabelecido, pelo roubo dos poderes e saberes celestes, e do castigo por tal ousadia, ou ainda de uma revolta contra uma autoridade despótica. Mas nada disso dá uma explicação da totalidade, apenas acrescenta aspectos. Nem a ideia de um Pigmalião sinistro, como já foi lembrado, nos traz muita luz, é apenas uma referência.
Certas interpretações colocam Frankenstein na categoria do Duplo. Parecem certas, pois não faltam elementos que apontem nessa direção: a criatura, como não tem nome, acabou sendo conhecida então com o nome de seu criador. De certa maneira, eles compartilham o significante, sugerindo que redundem no mesmo significado que se desliza entre eles, se completa. O monstro não tem infância, ele nasce adulto, possui quase a mesma idade de seu criador, não há uma geração que os separe e o fim de ambos é desaparecer no Polo Norte.
A criatura só se reporta ao seu criador, suas conversas são o centro do drama. Só o Dr. Frankenstein praticamente vê seu monstro. Cada um à sua maneira, os dois estão fora do sistema, ele não é aceito pela comunidade científica, por suas crenças, enquanto a criatura é fora de tudo, de uma genealogia, de um lugar no mundo. Os dois têm sérios problemas com a alteridade que o sexo coloca, são celibatários, os casamentos não se consumam, pois um mata a noiva do outro. Existe a espera de uma mulher, mas ela nunca chega de fato. Ou seja, nada de sexo, nem para nascer nem para nada. Os dois acabam ilhados em si mesmos, um fixado na destruição do outro.
Se de fato essa história pode nos dar então uma radiografia dos dilemas de uma alma partida, ela nos deixa sem respostas a uma questão central do romance: tanto a criatura pede o tempo todo que seu criador seja um pai para ele, que lhe dê um lugar e lhe diga por que o fez, quanto Dr. Victor foge várias vezes por não se mostrar à altura dessa empreitada. Nesse quesito a questão do duplo nos deixa sem respostas, não faz sentido ver apenas um homem acusando a si mesmo por não conseguir encontrar sozinho respostas para suas inquietudes. Como alguém pode acusar-se de abandonar a si próprio, de não ter cuidado de sua infância e educação? Existe uma reiterada denúncia da falta de ascendência, da falta de transmissão de uma educação efetiva. O monstro pede um lugar e pede para ser amado, é por ter esses direitos negados, dos quais ele se julga merecedor, pois não pediu para nascer, que se torna malvado.
Mas o que a criatura pede a Dr. Victor? Sem nome para se fazer valer, em outras palavras, sem origem ou, ainda, sem um passado para reivindicar, o monstro é um sujeito pós-revolução francesa. Filho da ciência nascente, ele é mais um herói do individualismo, afinal ele é único e ilhado, não tem pares, é inédito, desenraizado e intelectualmente muito lúcido.
As interpretações em que lançamos a ideia do duplo são onde o drama se desenvolve quando a um aspecto da personalidade não é permitido aceder à consciência do sujeito. É a cisão da personalidade que cria o duplo, ou seja, uma parte não quer saber da outra, o duplo é o outro de si mesmo. Como no caso clássico de Dr. Jekyll e seu duplo, o monstro Mr. Hyde, o qual, como diz seu nome, é a encarnação da face escondida do médico. Ou ainda como temos em Oscar Wilde no Retrato de Dorian Gray onde apenas no retrato a face narcisista da personagem envelhece. O que ele não suporta da alteração que o tempo faz a seu corpo está jogado para fora, não é reconhecido. Essa questão de uma suposta cisão da personalidade não é o aspecto mais relevante em Frankenstein, embora de fato caiba ao seu monstro o trabalho sujo do mal. Entender o monstro como a parte recalcada de uma suposta agressividade homicida, ou a personificação da sua melancolia renitente, ou ainda uma tendência antissocial é uma possibilidade, embora não abarque todo o sentido da obra.
A nosso ver, o aspecto central de Frankenstein é a procura por um pai, no sentido de alguém que forneça um lugar na sociedade e na genealogia, pois justamente estava-se em um momento histórico em que o lugar de onde provem a autoridade paterna sofria profundas mudanças. Na época do nascimento desse mito, início do século XIX, a Europa assiste ainda aos desdobramentos imediatos das revoluções industrial e francesa, à queda de várias monarquias, enquanto a autoridade da igreja começa a sofrer fissuras. Além disso, a autora, Mary Woollstonecraft Godwin Shelley, é filha de dois importantes pensadores dessa época, sendo que sua mãe, falecida em consequência de seu nascimento, foi uma das primeira feministas da história. Educada por seu pai com uma liberalidade inédita para seu tempo, sem uma mãe para identificar-se, a jovem escritora tinha todos os motivos para compreender os sofrimentos de uma criatura ímpar, inédita e sem referências palpáveis no mundo em que vivia.
Ora, o pai, ou melhor, sua função na estruturação de cada indivíduo, também é marcado por isso. Em um tempo de tantos rompimentos, apenas ser filho de alguém já não possui o sentido de antes. O sujeito da modernidade não se faz mais pelo nascimento, por quem seria seu pai, mas pela sua trajetória, pelas suas escolhas, pelo que ele consegue fazer de sua vida. Somente no seguinte sentido poderíamos compreender pai e filho como duplos um do outro: irmanados no desamparo, eles se repetem no sofrimento do pai que se sente órfão do próprio pai, do filho que acredita ter um pai insuficiente, no desencontro entre o desejo e a realidade que caracteriza a função paterna.
Há uma lição que é repetida inúmeras vezes nos mitos: um homem não pode fazer o que é atributo dos deuses. Criar um ser do nada, fazer algo vivo da matéria inanimada ou ressuscitar mortos é atributo divino, se os homens assim procederem, com certeza farão isso de modo imperfeito e seus resultados serão monstruosos e se voltarão contra o criador. Temos com Frankenstein uma versão agora científica deste mito de criar ou prolongar a vida. Frankenstein é o mito da onipotência da ciência, transposta para uma suposta onipotência paterna. É o fracasso atribuido àqueles que hoje responsabilizamos por apontar a direção que devemos tomar. Em seu encalço caminharemos até o Polo Norte.

Aventuras na vida privada de uma incrível família de super-heróis

(o capítulo IV do nosso “Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia” chama-se “Uma família amorosa”, abordando várias histórias familiares já classicas da cultura pop: A Família Addams, Os Simpsons, De Volta para o Futuro e Os Incríveis. Reproduzimos aqui o trecho relativo à incrível família de super heróis, que trouxe para o cinema, para a cultura infantil e para nossas vidas a intimidade destes personagens, antes mesmo de que o filão virasse febre. A continuação das aventuras dessa simpática e conflitiva família é ocasião para retomar essas reflexões)

Os Incríveis: Uma família que vence unida

Um menino e uma menina, irmãos envolvidos em uma aventura na qual acabam de escapar de um ataque inimigo, travam o seguinte diálogo: a mais velha diz ao menino – “eles estão em perigo”; – “nossos pais?” pergunta ele; – “não, pior, o casamento deles!”. Essas falas são do filme infantil de animação Os Incríveis (2004, direção Brad Bird, um dos envolvidos na criação dos Simpsons), no qual uma família é levada a uma missão de resgate uns dos outros, do valor do pai e do amor do casal.
Essa história poderia ser considerada uma boa revanche, um antídoto contra todos os pais inúteis, principalmente se comparados com seus filhos geniais. Embora pais idiotas cheguem a ser amados, no final das contas, como é o caso de Homer, não há esperanças de que ele possa algum dia valer alguma coisa. Nesse caso trata-se de um filme infantil com toques de humor, porém sem nenhum sarcasmo, e temos uma família onde todos os membros são dotados de poderes, principalmente o pai. O chefe dessa família é um expoente, até mesmo entre os super-heróis, graças à sua força imensurável, por isso seu nome: Incrível. O resto da família tampouco é, digamos, “normal”: a esposa, também uma super-heroína, é a Mulher Elástico. Os filhos nasceram poderosos, cada um com um dom diferente que os habilitaria para o combate ao mal. Parece um ótimo ponto de partida, afinal, que mal poderia afetar uma família tão abençoada pela “genética”?
O drama se origina porque temos, mais uma vez, como no caso dos monstros, uma família estranha ao modo de ser dominante, e com suas inevitáveis dificuldades de adaptar-se a ele, além de serem discriminados por uma sociedade que lhes é hostil. Enquanto parecia compreensível que os membros das famílias monstruosas não encontrassem aceitação social, fica difícil entender por que isso afetaria àqueles que seriam o retrato de nossos melhores sonhos: bonitos, poderosos, invencíveis e ainda admirados por todos graças a seus feitos heróicos. Certamente, Incrível e a Mulher Elástico ao se casarem só podiam prever um destino de glória.
Mas o mundo é mesmo complicado, e Incrível é processado por um homem a quem salvou, privando-o de se suicidar. Ele é julgado culpado, dando origem a uma onda de processos nos quais aqueles que haviam sido salvos se queixam de terem sido prejudicados pela brutalidade dos super-heróis e exigem indenizações. Junto com o restante dos super-heróis, ele entra em um programa de proteção do governo, no qual abre mão do uso de seus poderes e passa a viver oculto, restrito a uma identidade secreta, providenciada como forma de protegê-lo.
A obsessão jurídica da sociedade americana aparece como o vilão que amarrou as mãos até dos seus heróis. Trata-se justamente de uma consequência indesejável do controle social sobre todo aquele que possui responsabilidade sobre os outros. Embora ainda convivamos com abusos de todo tipo e com uma corrupção endêmica, as democracias se instalam em uma base de saudável desconfiança sobre toda instância de poder. Hipoteticamente, governantes, administradores, empresários, cientistas, policiais, juristas, jornalistas e profissionais de saúde, assim como os pais e professores encontram-se submetidos à estrita vigilância por parte de várias instâncias, governamentais ou civis, que podem vir a julgar a procedência de seus atos, se são benéficos ou prejudiciais àqueles que dizem atender ou cuidar.
Não poucos excessos foram evitados ou punidos graças a essa vigilância social, mas ela tem, como tudo, sua face problemática. Algumas obras de ficção têm abordado o tema desse controle incidindo justamente sobre aqueles que, em uma visão simplista, seriam os bons. A mesma vertente dessa trama sobre heróis aposentados pelo controle da sociedade, foi precedida por um clássico das histórias em quadrinhos: Watchmen, uma série lançada em 1983 (de Alan Moore e David Gobbons). Nesses quadrinhos, após uma revolta da população contra esses vigilantes, acusados de atuar acima da lei, a maior parte deles abandona suas atividades. Há uma frase, que é uma espécie de mote dessa obra, que traduz muito bem a problemática que abalou a vida dos Incríveis e dos super-heróis dessa história em quadrinhos: “quem vigia os vigilantes?” Na mesma linha, temos o Homem Aranha (de Stan Lee e Steve Ditko, criada em 1962), o qual é um super-herói que vive tendo que fazer escolhas dolorosas para minimizar os danos infringidos pelos seus inimigos em seus seres queridos. Um dos precursores dos heróis angustiados e sofridos das histórias em quadrinhos, Peter Parker, o Homem Aranha, é consciente de que “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Essa é uma de suas frases e a consciência disso faz de seus poderes um peso difícil de carregar.
Mesmo aqueles que julgam estar salvando, beneficiando aos que correm perigo, não estão isentos de serem julgados, condenados e tornados inúteis pelo imenso coro dos queixosos. Parece não há mais lugar para homens enormes e protetores, que tomem as atitudes que lhes pareçam necessárias para proteger os mais fracos. O que são os super-heróis senão a recordação infantil do pai de uma criança pequena, esse herói forte e atento, que a levantará em seus braços no momento em que estava prestes a cair ou ser esmagada?
A novidade de nossos tempos é que o controle social impõe também vigilância sobre os poderes dos pais. Com medo de errar, eles optam por gestos medidos ou ausentes, já que qualquer atitude poderá ser considerada um abuso, causadora de perigosíssimos traumas e inibições nos filhos. Nesse clima de desconfiança, as escolas sempre julgam mal os pais de seus alunos, assim como as famílias têm uma postura constantemente acusadora e insatisfeita frente às instituições em que seus filhos estudam. Ninguém se sente habilitado a se responsabilizar, serão considerados incapazes principalmente aqueles que fizerem parte da vida familiar, melhor deixar as crianças aos cuidados dos profissionais: professores, psicólogos, autores de livros de autoajuda para pais. Sob risco de serem julgados prejudiciais e danosos, os pais se minimizam. Lasch observou: “A indústria da saúde assumiu a maior parte da responsabilidade pela criação dos filhos, deixando ao mesmo tempo a maior parte da culpa aos pais”.
Em sua identidade secreta o Sr. Incrível vê-se obrigado a levar uma vida civil medíocre, ocultando seus poderes e abstendo-se dos feitos heróicos que fizeram sua glória no passado. O trabalho que lhe conseguem é de funcionário de uma companhia de seguros. Assim como a função de Homer Simpson é de supervisor de segurança de uma usina nuclear, o que é uma piada frente à sua total incapacidade de zelar pela integridade de qualquer coisa, o trabalho do Sr. Incrível é também uma metáfora eloquente. Ele é pago para fazer parte de um sistema de tortura burocrática, conduzida de tal forma que os beneficiários não recebam o que a apólice prometia. Para ele isto é mais que absurdo, pois o mesmo sistema legalista que o condenou ao ostracismo obriga-o a tornar-se agente dessa engrenagem perversa. A alma boa do super-herói nega-se a isso e acaba sendo despedido.
Na banalidade da vida do Sr. Incrível, o quadro da depressão se aprofunda. Ele torna-se um homem triste, alienado em um cotidiano insignificante, em um trabalho burocrático e aviltante. Em família é um pai distante, comporta-se como se seus filhos valessem tão pouco como ele mesmo, já que são obrigados a viver escondendo os poderes com que nasceram. Violeta, a mais velha, é uma adolescente capaz de ficar invisível e de criar um escudo de segurança; Flecha é um garoto absurdamente veloz; enquanto do bebê da família não se sabem os poderes ainda, e existe a suspeita que ele teria nascido sem dons. Ao longo do filme descobrimos que o pequeno é um diabinho, que pode assumir várias formas, como um monstrinho, ou virar uma chama, atravessar paredes, voar, enfim, revela-se um bebezinho bem difícil de cuidar. A Mulher Elástico faz apelos ao marido, procurando interessá-lo um pouco pela vida doméstica, os quais ele evita, refugiando-se em um quarto onde guarda seu velho uniforme e as lembranças dos dias de heroísmo.
Evidentemente que ele sonha com a volta do seu prestígio e surge um convite para um novo trabalho que parece ser a redenção. Na verdade, essa missão secreta que lhe promete tal perspectiva, o leva diretamente para dentro de uma cilada armada por um antigo desafeto. Em um primeiro momento, quando o novo emprego parece um sonho de retorno aos velhos e bons tempos, Incrível emagrece, fica feliz, é atencioso com os filhos e mostra-se apaixonado pela esposa. Estava de volta ao que ele gostava de ser, só que nada revela à sua família sobre a missão, e omite o fato de ter sido despedido. A Mulher Elástico desconfia que ele lhe esconde algo, só que suspeita que ele a esteja traindo e parte para a investigação. Aquela que parecia ser uma crise conjugal acaba sendo uma aventura de resgate do amor do casal, da vida do marido, e do orgulho de todos os membros da família que acabam reconciliando-se com os dons que possuíam, uma vez que esses voltam a ser valorizados.
As crianças embarcam clandestinamente no avião onde a Sra. Incrível partiu para uma ilha, onde supunha que encontraria seu marido envolvido em uma aventura extraconjugal. A dona do fio de cabelo loiro que ela encontrou na roupa do marido é, na verdade, a secretária do inimigo, e é ele que constitui o verdadeiro perigo a enfrentar. Quando jovem, o vilão que agora ameaça a vida de seu marido, atendia pelo nome de Gurincrível, era um antigo fã que se julgou desprezado pelo seu herói. Em mais um caso de genialidade infantil, ele tornou-se o dono e criador da paradisíaca ilha onde Incrível é chamado para a missão-cilada. Gurincrível enriqueceu criando e vendendo armas, porém, apesar do sucesso, sua obsessão era provar que com suas invenções poderia tornar todos os super-heróis obsoletos. Para tanto, construiu um robô capaz de possuir todos os poderes, que só ele, rebatizado com o nome de Síndrome, pudesse controlar. Sua ideia é que alguém que não nasceu com poderes, teria condições de se sobrepor aos agraciados com essa benção, pelo uso da tecnologia que sua inteligência pudesse criar.
O inimigo era na verdade um serial killer de heróis aposentados. Ele foi matando sucessivamente todos os que descobrira na clandestinidade e copiava seus poderes para incorporá-los ao seu robô. Síndrome, o nome de super-herói que ele escolheu não deixa de ser eloquente: sugere uma espécie de insanidade em sua obsessão, assim como que ele é composto de um conjunto de poderes que se somam para formar um herói, como uma síndrome é a soma de sintomas que constituem uma doença. Em sua cruzada anti-heróis, seu antigo ídolo, o Sr. Incrível era a cereja do bolo, o mais importante e difícil de superar, mas não bastava apenas absorver seus poderes, também era fundamental exibir para ele a pujança de suas conquistas tecnológicas. Espécie de filho bastardo imaginário, Síndrome precisava fazer o Sr. Incrível pagar muito caro por não tê-lo reconhecido como ajudante, discípulo e admirador.
Síndrome é mais um dos queixosos que imobilizaram o herói, só que não basta desvalorizá-lo, ele quer também a vingança, quer ver sua morte e a superação dos seus poderes. Uma das particularidades do filme é reservar um lugar de grande importância para o prestígio do pai, por isso Síndrome não se conforma com relegar seu herói ao ostracismo, deixá-lo entregue à tristeza de ser uma personagem do passado. Esse admirador desde criança precisa medir forças com o Sr. Incrível para mensurar seu próprio valor. Para tanto, não lhe serve um herói derrotado, fora de forma, deprimido. Não por acaso lhe proporciona o emprego que o faz recuperar a autoestima perdida, arranca-o do cotidiano tedioso, devolve-lhe o prestígio e somente depois disso é que vai combatê-lo.
Aparentemente contraditória, a postura dessa espécie de filho imaginário do pai-herói é a de todos nós, que precisamos que haja algum tipo de figura paterna que nos infunda respeito para tentar enfrentá-la e superá-la. Para ser alguém não basta ser amado, como se espera que as mães façam, é necessário um pai que nos desafie a ser mais que isso. É ele que nos instiga a fazer-nos valer no mundo exterior ao lar, longe dos olhos da mãe. Ele é alguém em quem se inspirar e a quem se contrapor, para melhor poder identificar-se. Quando saímos das entranhas, dos braços, do aconchego do olhar materno, é ele que nos aguarda do lado de fora. Na verdade, ele também está à espera da mulher, de que se rompa a bolha formada em torno da mãe e seu bebê, para que ele possa entrar, e com ele o resto do mundo.
Como representante de uma figura paterna admirável, Incrível foi vencido por reivindicações que estavam além das suas forças. Gurincrível fantasiava tornar-se seu “sócio”, mas atrapalhava nas missões colocando-se em risco com as engenhocas que inventava. O importante para ele era ser valorizado pelo seu herói. A função clássica do super-herói, de ser forte e ágil suficiente para evitar o mal, passa a ser pouco frente à tarefa de administrar outros dilemas, como o do menino que exige atenção, o suicida que acredita que a morte é uma escolha, um ato ao qual ele tem direito. Essas duas situações, pelas quais nosso super-herói paga tão caro, revelam a complexidade do que é exigido dos pais: dilemas morais, éticos, reivindicações amorosas e o difícil trâmite de ajudar um filho a construir uma identidade fazem parte dessa missão impossível.
O tema do suicídio, em particular, é tocante, pois cabe a um pai zelar pela vida do filho inculcando-lhe que ela é um bem maior, um compromisso com todos os outros conectados com ele. Um suicida lida com sua existência como se fosse um bem que só a ele compete, e com o qual pode dispor como bem lhe aprouver. Entre as múltiplas causas que levam alguém a se matar, algumas dizem respeito à incapacidade de suportar a dor de seguir vivendo, mas há algo mais: o suicida é o único que fica realmente com a última palavra. Esse ato, forma terminal de autonomia, é uma maneira radical de libertar-se de todo tipo de dependência: não será objeto do amor de ninguém, nem obra da vida de outrem, será obra acabada de sua própria determinação. A autoridade paterna impõe, a princípio, o dever da vida aos filhos. Um pai deve proibir que o filho se mate, nos disse certa vez um amigo psicanalista. Por isso, o pai desta família é um salvador de vidas e tem entre seus inimigos um suicida (aquele que o processou por ter sido impedido de se matar). Esse, expressão de uma vida que não reconhece a dívida de existir, foi mais efetivo em imobilizá-lo que o gênio, filho queixoso, que se crê bastardo do super-herói, mas que de alguma forma o enaltece como pai.
A Sra. Incrível era, antes de ser uma simples dona de casa, a Mulher Elástico, em uma simpática metáfora dos inúmeros papéis e tarefas aos quais precisa dedicar-se uma mulher contemporânea. Ela fora uma heroína muito posicionada e feminista, mas a vida civil lhe negou qualquer pretensão: passou a limpar, cozinhar e cuidar de filhos como uma dona de casa sem nenhum valor público. Na verdade, na intimidade atribulada dessa mãe heroica, é preciso ter muita força para criar filhos poderosos, pois os seus são capazes de meter-se em confusões bem maiores do que as crianças normais. Flecha é rápido e eficiente para fazer tumulto; Violeta é muito conflitada, já que toma ao pé da letra esse problema que as adolescentes têm de sentirem-se invisíveis; enquanto o bebê, como qualquer um de sua espécie, exige de sua mãe que seja uma mulher muito “elástica”.
Além disso, para preservar a identidade secreta, essa família é obrigada a mudar-se o tempo todo, fugindo de contratempos criados pela existência dos poderes e pelas dificuldades de adaptação, principalmente por parte do chefe da família. Porém, ao contrário do marido, ela parece mais forte, dedicando à família a mesma perseverança e coragem dos tempos de combate ao mal. Mais uma vez, embora a tarefa de cuidar e conduzir uma família seja penosa, de tal modo que os pais sentem-se insuficientes para ser exitosos nela, as mulheres parecem menos frágeis e mais à vontade do que seus parceiros, como nas histórias que analisamos anteriormente.
Talvez a força dessa heroína nos elucide mais uma das razões do melhor prestígio das mães do que dos pais nessas famílias tão criticáveis da ficção infanto-juvenil e do humor para todas as idades. Para um pai, o valor dentro de casa depende mais do prestígio público do que da dedicação doméstica. A ele cabe a função de orgulhar-se, ou até de envergonhar-se de si e dos seus perante o mundo, intermediando a relação entre os espaços público e privado. É claro que as mães também participam da disputa de prestígio entre seus rebentos e os filhos das outras, mas é próprio da maternidade o fato de que ela amará seu filho como a si mesma, pois ambos se confundem no princípio, por isso diz-se que o amor de mãe é cego e infalível. Já o vínculo entre pai e filhos é uma conquista de ambos os lados, já que eles não partem da premissa simbiótica da gestação, da amamentação e de toda a fusão que os cuidados maternos primários impõem às mães e seus bebês.
É preciso que o pai e seus filhos se reconheçam em seus papéis, que se valorizem enquanto tal, assim como é necessário que a mãe seja intermediária desse encontro, atribuindo a ambos os lados a legitimidade que merecem. A Sra. Incrível sabia quão elástica teria que ser para garantir o funcionamento de uma família composta de gente tão estranha, administrando segredos e enormes forças que precisavam ser contidas, mantendo em pé os ânimos sempre abalados de seus heróis clandestinos. Ela não ignorava que sua vida privada já era uma missão de árduo desempenho. “Retraída pelas debilidades de um sujeito em sofrimento, (a família) foi sendo cada vez mais dessacralizada, embora permaneça, paradoxalmente, a instituição humana mais sólida da sociedade. À família autoritária de outrora, triunfal ou melancólica, sucedeu a família mutilada de hoje, feita de feridas íntimas, de violências silenciosas, de lembranças recalcadas. Ao perder sua auréola de virtude, o pai, que a dominava, forneceu então uma imagem invertida de si mesmo, deixando transparecer um eu descentrado, autobiográfico, individualizado, cuja grande fratura a psicanálise tentará assumir durante todo o século XX.” Tais são os desafios que requerem tanta elasticidade por parte da mãe desta e de todas as famílias.
Os filhos também viviam nessa berlinda de não poder valer nada fora de casa, Flecha era proibido de fazer esportes, para que sua velocidade não se tornasse visível e Violeta havia transformado seu poder de invisibilidade em um expediente para não ser vista pelo garoto que amava. Na vida pública, os membros daquela família estavam longe de ser “incríveis” e eles só pareciam ter valor, quando muito, aos olhos da mamãe.

No final vence o amor

O amor materno, com seu afeto inquestionável, parece ter conservado melhor prestígio do que o reconhecimento paterno do valor de um filho. Ser escolhido pelo pai como legítimo herdeiro, o que se dá quando este reconhece seus traços, valores ou gestos no filho, é algo que se desvalorizou junto com as genealogias. Cada indivíduo pretende-se uma obra inédita e acabada, quando na verdade somos apenas parte de um processo. Ainda que nos tornemos protagonistas importantes em nosso momento histórico, papel reservado para poucos, somos fatos passageiros no contexto de uma história maior. Hoje, cada ser humano gosta de imaginar-se autogerado em seus dons, e o que herda da família costuma ser mais um problema do que uma solução. No processo de individualizar-se, pensar-se como elo de uma trajetória familiar que nos precede e continua, pode ser pensado como um fardo, um peso do qual é melhor aliviar-se.
Aos olhos da mãe enamorada da primeira infância, um filho é uma projeção da perfeição que ela deseja para si mesma. Para ele, basta ter nascido; para ela, basta sabê-lo dela. É mais fácil acomodar-se a esse afeto, embora pareça alienante, que nos ama simplesmente por existir, do que entrar em uma disputa com todos os outros seres humanos, os quais também são, ou almejam ser, um tesouro para suas mães. O amor materno, portanto, é um refúgio muito especial, já que nega a importância de fazer algo para provar a que se veio, importante mesmo, para ela é que o filho chegou quando ela o convocou. Obviamente, essa satisfação da mãe com o filho cobra seu preço, pois ele nunca consegue ser tudo e que ela espera dele, mas sempre tenta. A valorização das mães, ou o fato delas terem sido poupadas das duras críticas que se destinam ao pai, pode provir da exaltação desse tipo de vínculo, onde o laço amoroso prevalece sobre a identificação, que é o tipo preferencial de ligação que se faz ao pai.
Contentar-se com a satisfação materna é uma cilada, como a que se meteu o pai desta família. Para o Sr. Incrível, tão charmoso, musculoso e bem-sucedido, bastava usar os dons com os quais nasceu, até que sua força deixou de agradar o público. Àqueles a quem ele salvava, só restava agradecer-lhe e admirá-lo, afinal, não eram poucos os que lhe deviam a vida. A chegada do herói em uma situação de perigo era sempre triunfal e na sua partida sempre era acompanhado pela glória.
“Restou aos indivíduos a identidade amorosa, derradeiro abrigo em um mundo pobre em Ideais de Eu.” “O indivíduo contemporâneo perdeu os suportes tradicionais de doação de identidade e é levado a se redescrever constantemente para se reassegurar do que, em si, é digno de inclusão na imagem do eu (Solomon, 1994, p. 199-208). Essa insegurança constitutiva da subjetividade moderna encontra no amor um lugar de repouso. Na relação amorosa, mais do que em qualquer outra, ganhamos um tipo de certeza que pacifica a inquietude da reconstrução de si sem garantia de amanhã.” Estas palavras, escritas pelo psicanalista Jurandir Freire Costa, permitem-nos compreender as circunstâncias nas quais aposta-se no vínculo amoroso como forma de constituição e manutenção dos nossos parâmetros, álibis e formas de sustentação pessoal.
É por isso que, como referíamos anteriormente, os irmãos parecem mais preocupados com a manutenção do amor dos pais do que com a sobrevivência dos membros da família. A questão é que uma decorre da outra: enquanto o casal permanecer vinculado, desejando-se e admirando-se mutuamente, é possível que todo o grupo familiar possua algum valor. Hoje os filhos não são resultado de uma imposição ou convenção social, são fruto de uma fantasia amorosa, na qual representam uma aposta de um casal em sua perpetuação. Uma vez falido o projeto amoroso dos pais, será necessário que eles encontrem na relação com cada um o sentido de sua continuidade enquanto resultantes de um sonho abandonado. O amor materno, em sua capacidade de buscar respostas na relação com um objeto amoroso, o filho, é o que melhor se presta para dar forma ao que compreendemos como amor, fonte das poucas certezas que ainda podemos tentar coletar.
Em resumo, a vida privada era insuficiente para que essa família de heróis deixasse de sentir-se mais uma família monstro. A luta entre Síndrome e Incrível, a retomada do amor do casal no contexto dessa aventura, aponta para a necessidade de que o reconhecimento, e a constituição da identidade transcendam os limites da escolha amorosa.
O olhar condescendente de Margie não faz de Homer um herói, tampouco a memória da Mulher Elástico, dos tempos de glória do casal, é suficiente para que os filhos sintam-se orgulhosos de seus poderes. O amor encontra, nos dias de hoje, seu grande desafio e também seu limite. Transformando as palavras do Homem-Aranha, poderíamos dizer que “com grandes amores vêm também grandes responsabilidades”, e as relações sofrem com esse fardo.
Muitas separações e sofrimentos amorosos provêm das enormes expectativas que se depositam sobre esse vínculo que, infelizmente, não pode dar mais do que ele é: uma escolha de dois indivíduos para serem, entre si, o olhar privilegiado de quem se espera obter o valor que nem sempre os outros estão dispostos a lhes atribuir. O desejo sexual, assim como a fidelidade e o companheirismo, são o tanto que se exige que os amores possam prover. Não é difícil de compreender por que convivemos com tanta insatisfação, busca e fantasias sobre o que o amor pode nos oferecer. Ser sexualmente desejado, nesse contexto, funciona como prova física da importância que podemos ter para o próximo. Pode não ser durável, mas é forte o efeito de ser considerados objeto de satisfação de alguém.
Quer seja através de renovadas e incansáveis fantasias românticas, ou mesmo como resultado de intensos e inquietos anseios sexuais, para as muitas perguntas que nos fazemos o amor parece sempre uma potencial resposta. Não admira, portanto, que Flecha e Violeta tenham se lançado na missão de resgate do amor entre seus pais; nesse quesito as crianças são sábias.

A sociedade como um pai onipresente

Como se pode observar, o pai tal como representado nas histórias para crianças e adolescentes já não é o mesmo: a admiração por ele cai a níveis muito baixos, mas não o amor. Existe uma queixa tênue, mas ele sempre é perdoado, compreendido, aceito e resgatado das confusões em que se mete, mesmo depois de seus reiterados fracassos. Sua antiga função, de ser uma bússola moral e um exemplo a ser seguido, já não funciona. Os filhos se habituaram a seguir com ele ao lado e não na frente, mas que consequências isso traz? Em um raciocínio rápido podemos pensar em uma sociedade menos opressiva, afinal, o tirano não está mais presente a agora nos vinculamos de forma direta e não idealizada com um pai que sabemos que é de carne e osso.
Mas quem observar com cuidado nossa sociedade contemporânea pode não encontrar uma mudança tão significativa assim. As exigências sociais de rendimento escolar, com a competição por notas e prestígio já começando no jardim de infância, a demanda por ser esportista e ostentar um corpo saudável, magro e bem vestido, a obsessão pelo sucesso revelam uma sociedade extremamente exigente e impiedosa com quem sai da norma, ou melhor, da forma. Trata-se de uma sociedade superegoica, cruel com os ditos fracassados. Aliás, o exército dos que se consideram fracassados é cada vez maior, à medida que mais inclementes tornam-se os parâmetros de silhueta, popularidade, desempenho esportivo e sexual, posse de objetos e outros atributos dignos de serem exibidos. Sentir-se marginal em relação a um padrão dominante de comportamento é hoje um sentimento democraticamente muito bem distribuído, todo mundo tem ou teve direito a seu quinhão.
Porém, mesmo que amado e perdoado, como Homer e o Sr. Incrível, o pai contemporâneo é alvo de incessantes críticas: ele não impõe limites e é acusado de todos os problemas de comportamento de seus filhos, dos quais as escolas e instituições tanto se queixam; seria fraco, relapso, hedonista e os deixa sem parâmetros, pois se exime de ou simplesmente ignora como educá-los. Ele próprio compara-se com o próprio pai, considera-se menos poderoso e acusa seus filhos de serem sem qualidades porque ele não lhes exigiu tanto quanto supostamente o avô deles fazia com ele. Os defeitos de seus filhos são contabilizados pelos pais de hoje na conta de perda de sua autoridade e poder, porém eles não têm a mínima intenção de encarnar o papel do patriarca, nem saberiam como fazê-lo e sentem-se sempre incômodos quando se veem obrigados ao exercício de qualquer tipo de severidade, que já não lhes parece natural.
Philippe Julien nos lembra que essa figura, hoje mítica, do pai como soberano e criador, figura idealizada por aqueles que são pais, como fosse algo que eles deviam ter sido, corresponde a um desejo de cada filho de responsabilizar outro alguém pelo que se é, afinal, precisamos culpar alguém pela nossa imperfeição. Ele se refere ao “pai mítico”, que é “a imagem do pai como soberano, isto é, correspondente ao desejo da criança. […] A esse pai criador tem-se, sem dúvida, muitas críticas a fazer, por não ter realizado tudo, tudo o que poderia fazer, se ele o quisesse”.
Convém lembrar que é mais comum que as coisas mudem de lugar do que desapareçam, o famoso “nada se perde, tudo se transforma”. Assim ocorre com a figura do pai que nos cobra nada menos do que a perfeição, parâmetro imaginário com o qual precisamos nos medir, para motivar-nos a querer viver e ser mais do que conseguimos até então. Nessa fantasia do que deveria ser um pai de verdade, alguém poderoso a ponto de fazer-nos perfeitos, à semelhança de suas expectativas superlativas, coisa que nenhum homem consegue encarnar, vê-se o jogo de empurra-empurra do ideal e da cobrança, mediante a qual, ninguém está à altura do seu papel, nem de pai, nem de filho.
Constatamos o deslocamento de exigências que outrora eram atribuídas ao pai para um lugar maior. Boa metáfora para entender esse movimento, pode ser encontrada em um dos episódios do filme Contos de Nova York, de 1989, dirigido por Woody Allen. Essa história trata de um homem que tinha uma mãe tão opressiva, que não o deixava viver. Certo dia, para sua felicidade, ela magicamente some de sua vida. Porém, após um breve alívio, ela reaparece, só que agora ela já não é mais de carne e osso: a mãe transformou-se em uma entidade gigantesca que paira sobre o céu da cidade demandando as mesmas coisas que antes, mas agora é imensa, onipresente e pior, tece seus comentários inadequados em alto e bom som, em pleno firmamento de Nova York, constrangendo o pobre filho acuado frente a todos. Com o pai aconteceu algo análogo: desbancamos o pai que fumava cachimbo na sala, a encarnação do poder doméstico, mas ele reapareceu em todos os lugares exigindo o máximo de nosso desempenho, a eficiência das nossas condutas e o alinhamento militar de nossos corpos.
Não é somente sobre o filho que pesa essa difusa e onipresente exigência de performance, o pai também vive sob sua opressão. Ela se exerce sob a forma da comparação com uma figura paterna improvável: um pai próximo, dedicado à família, priorizando-a sobre todas as coisas, mas que ao mesmo tempo angariasse grande reconhecimento público. Esse pai tem que impor respeito sem ser autoritário, e ainda ser respeitável como um adulto, mas colocar-se próximo do filho como se fosse um amigo, em suma, um verdadeiro homem elástico.
São frequentes os filmes, em geral comédias infanto-juvenis, nos quais um medíocre marido e pai de família tem uma personalidade secreta, na qual é um incrível espião ou super-herói. Essas duas personalidades, a doméstica de pai próximo e abnegado, e a pública, de aventureiro, corajoso e bem-sucedido, são obviamente incompatíveis, por isso se alternam; quando uma aparece ofusca a outra. No entanto, espera-se que cada pai as unifique, e cada homem exige isso de si mesmo ao tornar-se pai. Não surpreende que frente a tal desafio a maior parte dos homens sinta-se aquém, ou, na pior das hipóteses, até desista.
Não bastasse a derrocada de qualquer idealização possível da condição humana, um novo desafio nos espera. Outrora, a dissociação entre a vida privada e a pública produziu muitos descaminhos, muita hipocrisia, mas também algumas facilidades. As mulheres presas entre lençóis, fogões e fofocas podiam até almejar e fantasiar com aventuras no mundo lá fora, mas não precisavam enfrentá-lo. Já os homens podiam ser como um rei em seu lar e tratar a esposa e os filhos como súditos, sem precisar explicar-se pelo que faziam lá fora, enquanto trabalhadores e cidadãos. Além disso, no mundo externo ninguém estava interessado em saber se um homem era bom pai e marido compreensivo, se no lar comportava-se de modo democrático e sensível. Hoje, o pai é, ou deveria ser, reflexo do cidadão e vice-versa. De certa forma, é uma queda das máscaras. Apesar de adorarmos dizer que habitamos um mundo de aparências, acreditamos que não é bem assim. Claro que vivemos para parecer algo, mas hoje não serve o enchimento do paletó, é preciso que o homem tenha músculos por baixo. Quanto à mulher, que podia restringir-se a ser mãe e imaginar-se executiva, intelectual, artista, cientista, e isso não passava de um sonho impossível, hoje tem como desafio a possibilidade de realizar essas fantasias. Frente a isso, passa a pensar que se quiser valer algo dentro de sua família terá também ela que chegar em casa carregando seus louros.
Para os criadores dos Simpsons não há muitas saídas: as inquietudes devem ser afastadas ou abafadas com algum tipo de anestesia mental. Os adultos dessas histórias abusam desses recursos. Há um alinhamento nas posições de pais e filhos, que se comportam como se pudessem ignorar tamanhas e inclementes exigências sociais de performances de sucesso. Comportando-se como a raposa da fábula, que despreza as uvas que não consegue pegar, as diferentes gerações tentam alinhar-se em um posicionamento hedonista, infantil e alienado, como se fosse possível ignorar os rumos que estão sendo tomados pelo mundo em que vivemos e nosso papel nessa condução.
Homer é o mesmo medíocre como pai e como cidadão: tenta ser o mais omisso possível e quando sua intervenção é inevitável, procura livrar-se imediatamente dessa demanda insuportável. A conduta de Lisa, cidadã consciente e crítica, capaz de dedicar-se a uma tarefa de transformação na qual ela acredite, é justamente o contraponto com essa paixão pela alienação de seus pais, do irmão e dos habitantes de Springfield. Por outro lado, essa omissão dos pais e cidadãos por vezes é uma forma de defesa a uma vida pública opressiva, que deixa quase nenhum espaço para a privacidade, que abomina a solidão e confunde reflexão com depressão e timidez. Impossível ter saudade do pai patrão, das casas que pareciam reformatórios, porém, os adultos que precisam tornar-se e manter-se pais parecem ter colado na testa uma mensagem jocosa que pode ser vista em alguns carros: “não me siga, também estou perdido”. Enquanto isso, nas imagens e textos midiáticos, como um firmamento virtual, alguém recita instruções precisas sobre o que se deve ser e parecer, como uma voz paterna. Talvez se trate do grande irmão, diria Orwell.