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Por que tantos peregrinaram ao ônibus da história “Na natureza selvagem”?

Qual o fascínio para os adolescentes da jornada de Chris ao Alaska?

O ônibus de “Na natureza selvagem” não está mais na natureza selvagem.
Recentemente, um helicóptero da Guarda Nacional do Exército do Alasca removeu o lendário ônibus onde Christopher McCandless encontrou o triste fim da sua jornada de filosofias e aventuras. O local tornara-se meca de perigosas peregrinações, de pessoas identificadas com sua história. Foram tantos os extraviados, resgatados com dificuldade, tendo havido inclusive casos de óbito, que as autoridades tiveram que remover esse “monumento”. O que foram tantos procurar em meio à inóspita paisagem alasquiana? Em nosso livro, “Adolescência em cartaz” dedicamos um capítulo a esse personagem, que existiu na realidade e tornou-se uma das grandes fantasias sobre a juventude. Abaixo, alguns excertos:

“Os alasquianos habitam um território no extremo dos Estados Unidos que, pela sua beleza e natureza hostil, desperta a imaginação de pessoas de outras regiões. Eles estão habituados à aparição de peregrinos e Christopher McCandless, um rapaz de 24 anos, oriundo de uma família classe média alta de Annandale, Virginia, foi mais um deles. Eles os vêm com certo desprezo, como assombrações que insistem em passar por ali, impulsionados por fantasias a respeito de si e do lugar e assim os descrevem: ‘jovens idealistas, cheios de energia, que se superestimaram, subestimaram a região e acabaram em dificuldade (…) há um bocado desses tipos perambulando pelo estado, tão parecidos que são quase um clichê coletivo.’”(…)

A região atrai todo tipo de aventureiro, em geral jovens, submetendo-se à rudeza da experiência como rito de passagem. A fibra necessária para enfrentar tal provação, os sofrimentos físicos e a superação dos medos, a solidão em que em geral essas viagens são feitas, se justificam na expectativa de consolidar uma identidade e de corroborar um valor que eles próprios possam acreditar que têm. (…)

“Vale questionar-se sobre as razões de por que a trajetória desse rapaz tenha se tornado livro, filme, motivo de debates acalorados, assim como inspirador de identificação entre aqueles que sequer gostam de aventuras na natureza radicais na natureza. Apesar de seus desejos eremitas, o autonomeado Alex era um entusiasta contador de sua própria história e de seus ideais, deixou suas andanças documentadas, além de comentários sobre as fontes literárias em que fundamentava suas crenças. A última aventura, por ser desastrada e dramática, tomou o centro da narrativa e o ângulo pelo qual o enxergamos, mas ele foi muito mais do que isso. Sua morte trágica, por inanição no Alasca, nos legou uma coleção de enigmas. Enigmais e pistas a respeito de como teria sido o encontro do jovem com a natureza e a morte. Sua tragédia real, fortemente inspirada na literatura avizinhou-se da poesia. Por isso os escritor Krakauer, o cineasta Sean Pen e neste momento nós também, assim como tantos outros, seguimos ocupando-nos dessa história, que se tornou mítica.
São poucos os que têm coragem de fazer a experiência radical de largar a vida comum e sair ao encontro da aventura, principalmente hoje, em que há uma enorme adesão a uma vida reclusa onde pode-se viver experiências meramente virtuais. Muitos desses jovens acomodados sonham com os verdadeiros riscos e as genuínas vivências de quem abriu mão de todas as comodidades e da segurança por opção, e não em nome de uma causa ou missão, ou ainda por ter sido convocado.
O sucesso do livro não é outra coisa que combustível para essa fantasia – e isso nos revela o desejo de fuga como uma das dimensões da adolescência. Na prática pode ser a migração para outra geografia, para outra cultura, mas, em muitos casos, como neste, para fora da cultura propriamente dita, como se a natureza o fosse purificar da sua história, como se ela fosse a única alteridade respeitável. Esta é a dramática história de um jovem buscando refundar-se com o mínimo apoio possível, longe de tudo e de todos.” (…)
“O interessante em estar na estrada é viver sem rumo, o que importa é o meio não o fim, não se vai a lugar algum, apenas se vai. Talvez possa ser lido como uma colocação em ato de uma das grandes questões dessa fase: como não sabem para onde ir, o caminho se faz ao andar. Assim vivem um eterno presente, esquivando-se da pergunta que ronda: o que vais fazer da tua vida? A pergunta é simples, singela, mas para muitos ela abre uma porta de pavor, sentem-se incapazes de responder e, imaturos demais para as exigências do mundo. Fogem da questão e de quem eles supõe que a fariam.
A tarefa de tornar-se alguém começa com uma incontornável alienação à história familiar, mesmo que os pais tentem ser democráticos. Subjetivação e sujeição se confundem, parecem o mesmo movimento. Tomar nas próprias mãos o resultado do que fizeram conosco e fazer algo peculiar, é a tarefa que cabe à adolescência desde que o individualismo tornou-se dominante. A revolta contra essa marca primeira de dependência, que tinge-se de uma espécie de mágoa por ter sido submetido a eles, volta com toda força nessa idade. Na verdade, eis a fonte daquilo que os adultos estão sempre denunciando como uma ingratidão dos mais jovens: deveriam reconhecer que quando eram desamparados seus cuidadores lhes dispensaram tudo o que precisaram para crescer. Porém, infelizmente, a gratidão nesse caso viria com o preço de continuar preso dentro de casa, agora pagando a conta. É por isso que os adolescentes não sentem como legítimos os pilares em que se sustentam, precisam relativizá-los, questioná-los e fantasiar uma espécie de auto-fundação.
Sua questão é como trocar os próprios fundamentos sem que a casa venha abaixo. É uma operação complexa, que exige livrar-se dos pais da infância, na tentativa de abafar suas reais ou supostas exigências. É preciso matá-los simbolicamente e sair vivo da empreitada. Fugir de casa ou partir e deixar de dar e receber notícias é uma das tantas maneiras de desfazer-se dos pais. Essa é a escolha de Alex. Por isso, no caso dele, como no de tantas outras fugas de casa, o sofrimento dos pais não é considerado. É quase como se eles nunca tivessem existido, o propósito é exatamente esse. Com a maior parte das pessoas que Alex interage durante suas andanças repete o ciclo, encontra, faz um vínculo forte e parte sem dar adeus, sem que o outro possa proferir sequer uma palavra de despedida. Mais que ir embora, ele sumia, essa era sua marca.”(…)
“Antes de pensar o que o pôs a correr de seu habitat de origem, convém entendermos melhor em que direção apontava seu desejo. O andarilho Alex foi admirado não somente pela ousadia do seu desprendimento, mas sim pelo fato de que durante aqueles dois anos construiu uma existência coerente com seu pensamento romântico radical e morreu em consequência disso. Ele é visto como se fosse o herói de uma guerra pessoal, capaz de sacrificar-se pela sua crença.
Mas examinemos seu pensamento, de modo em que ele revele o que haveria de admirável para aqueles que leram sobre sua história: afinal o que um jovem buscaria na natureza? Percebemos que ela representa para ele uma alteridade radical, algo a ser conquistado, vencido. Mas por que a experiência frente a seus rigores seria capaz de funcionar como uma prova convincente? E de que valor? E para quem?
Os pais podem até ser muito generosos, mas querem ser recompensados pelos seus investimentos amorosos. Ser filho de alguém é carregar o peso da aposta que se fez em nosso nome. De alguma forma sempre vem a mensagem de que devemos pagar pelo lugar simbólico que ocupamos em uma linhagem. A força das marcas familiares que fundaram o sujeito é sentida particularmente na adolescência, é o fim do jantar e o momento de receber a conta. A cultura dos pais, seus sonhos e projetos, seus erros e acertos vão impor-se ao ser que eles criaram, querem que ele se realize nos termos dos seus valores. Muitas vezes o desejo parental pode não ser de continuidade, não é nada incomum que seja até de rompimento: vá além, faça o que não consegui, enfrente o que me derrotou, escolha melhor do que eu fiz. Outras, é de mera continuidade, mas não importa o tom, sempre soará opressivo e, quanto maiores os recursos psíquicos do jovem, menos pesada será a consciência e a desilusão de concluir que o amor dos pais nunca foi incondicional.
Já a natureza, embora na prática suas exigências possam ser cruéis, parece ser equânime e desinteressada. Estar sozinho em lugares extremos pode produzir momentos de euforia, numa comunhão íntima com a beleza da paisagem, muitos dos quais foram relatados por Alex. Isso se você estiver disposto às agruras necessárias para chegar e permanecer ali. Os que conseguem sentem-se vitoriosos, mas trata-se de uma conquista em que não se cedeu ao desejo de ninguém, não exigiu troca de favores, não se negociaram crenças nem houve medições de prestígio. As exigências de uma montanha, um deserto, uma grande onda, a imensidão do oceano, de uma floresta cheia de ciladas, serão iguais para todos os que ingressarem nelas. O que muda são os recursos com os quais cada um entra na cena. Por isso era fundamental para Alex não possuir nada que diminuísse os riscos, que amenizasse as exigências do lugar, era uma forma de aumentar a magnitude de uma experiência que ele considerava pura e essencial.
Acreditamos que, pela semelhança das experiências a que se lançaram o “personagem” McCandless e o escritor Krakauer (autor do livro responsável pelo resgate do personagem), podemos tomá-los, para efeito de reflexão, como duas vozes de pensamentos similares. A pesquisa do jornalista o levou a citar trechos dos autores preferidos do seu personagem e, entre eles, temos a seguinte passagem de Caninos Brancos, publicado em 1906 por Jack London:
“A própria terra era uma desolação sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que seu espírito não era nem mesmo o da tristeza. (…) Era a imperiosa e incomunicável sabedoria da eternidade rindo da futilidade da vida e do esforço de viver. Era a Natureza, a selvagem, a de coração gélido, a Natureza das Terras do Norte.”
O livro de London contrasta o heroísmo natural das criaturas selvagens, assim como do valor intrínseco da beleza da paisagem do Alasca, com a mesquinhez, a incompreensão dos homens corrompidos em nome do ouro. Estes últimos, segundo as críticas que Chris dirigia a seus pais e seu modo de vida, são representantes do sistema de valores erguido em torno do dinheiro. Seus pais se sacrificaram muito para subir na vida e, como acontece em todas as famílias, não deixavam de adular o valor de suas conquistas, no caso em termos de poder aquisitivo. O filho negou-se a ganhar dinheiro, insistia em que o ouro não media nem provava o valor de ninguém. Já a natureza, esta sim pareceria uma juíza legítima e a ela ele se entregou.”

o crime de Woody Allen

Na leitura crítica e na fuição estética, vale a obra e não a biografia… mas algumas biografias acabam dando o que pensar, a de Allen é uma.

Nenhuma editora quer publicar a autobiografia de Woody Allen. Este é mais um capítulo de um processo de isolamento do diretor. Ele está em litígio com a Amazon, por esta ter encomendado um trabalho e desistido após as acusações de sua filha voltarem aos noticiários. De qualquer forma, tampouco algum ator iria quer trabalhar com ele. O cerco se fechou.
Para quem não lembra, o diretor foi denunciado por abusar da filha em 1992, quando ela tinha apenas sete anos. Na época, dois processos de investigação paralelos foram abertos e ambos desacreditaram a denúncia. Na idade adulta Dylan Farrow volta a acusar o pai, sem efeitos legais, apenas morais, e conseguiu derrubá-lo.
A melhor versão sobre o caso é do filho Moses Farrow. Adulto, tornou-se terapeuta e por isso consegue descrever com mais riqueza os dramas de uma família dividida e com ódios não cicatrizados. Ele foi testemunha contra o pai e, quando adulto, conta suas razões: como foi coagido pela mãe a mentir.
Mas então, se não houve abuso, segundo vários peritos e segundo Moses, que insiste na impossibilidade de isso ter acontecido – ele estava lá na ocasião da alegado abuso – como alguém leva Dylan a sério? A questão é que ela acredita e isso a torna convincente. Ela alucinou um abuso e a vida dela marcha como se fosse real, sendo os efeitos quase tão danosos quanto se tivesse acontecido.
Mas por que ela fantasiou, e por que tantos acreditam nisso, passando por cima das evidências? A razão é simples: Woody Allen casou com a irmã dela, filha adotiva da sua mãe, do relacionamento anterior. Tecnicamente não há incesto, mas simbolicamente sim. Houve um embaralhamento das gerações e dos laços de parentesco.
A questão clínica que coloco: Dylan teria fantasiado a cena de abuso, com essa certeza psicótica, sem o relacionamento de Allen com Soon-Yi? Estamos no território da ficção, mas eu apostaria que não. Imaginem a cabeça de uma criança: ele transou com a minha irmã, por que não faria isso comigo?
E no pensamento das pessoas que hoje o condenam, será que o execrariam se não tivesse casado com a enteada? Ora, se ele não respeitou esta regra basilar, ele poderia não respeitar outras, então o abuso seria possível. Para meu juízo, ele está sendo condenado, não pelo motivo alegado, mas pela trama criada.
Legalmente falando, Allen é inocente, mas foi moralmente incestuoso. Mia, como qualquer mãe que casa-se novamente, tendo filhos do relacionamento anterior, precisa confiar em que o padrasto veja as enteadas com as mesmas reservas que um pai tem para com seus filhos.
Um dos dramas do gênios é acreditarem-se acima da lei. Já fomos mais tolerantes com estas faltas, Allen está tendo que lidar com novos tempos. Agora, boicotar sua obra, parece um castigo mais para nós do que para ele.

Frozen Gay

A princesa do filme Frozen, por emprestar novos horizontes às meninas, sofre difamações que seriam cômicas se não fossem perniciosas.

A última da sinistra Damares, aliás, ministra, é um vídeo onde ela nos alerta que a princesa Elsa, do filme Frozen, seria gay. Ela viveria em um mundo gelado, de onde espera sair para dar um beijo na Bela Adormecida.
O que há de novo na princesa Elsa é que ela prescinde de um príncipe para ser quem é, essa é a sua revolução. Os príncipes do filme não ajudam, um é um pateta, outro um traidor interesseiro. Creio que aqui está a pedra no sapato de quem quer um mundo tradicional, como nos velhos tempo, quando as mulheres só existiam socialmente com aval masculino. Como assim, os machos não serem protagonistas na vida de uma mulher?
Mas o passo a mais, a questão gay, só existe na cabeça torta de quem enxerga rastro do diabo em cada manifestação que não seja os estereótipos de gênero. Elsa é apenas uma heroína, bem feminina aliás, que resolve os problemas de sua saga sem um príncipe. Isso não nos diz quem ela vai amar, ou como vai desejar. A mensagem é: meninas, não esperem um homem para resolver sua vida, vá e faça, vocês têm poder.
O que sim existe é um pedido dos fãs que sugeriram, na anunciada continuação do filme, que Elsa assumisse ser gay. Seria então a primeira princesa nessa condição. Se os estúdios Disney darão esse passo é pura especulação. Não há nada no filme tenda a isso. O certo é que a mera possibilidade já desperta desconforto. E se ela viesse a ser gay, qual o problema?
Para Damares, uma personagem gay, instalaria na cabeça das crianças uma espera para que ela também pudesse se comportar assim. A questão é que vir a ser homossexual é uma questão complexa que ninguém descobriu como se dá. Envolve genética, o que a família projetou para o bebê, o acaso de suas experiências de vida, a oscilação hormonal durante a depois da gestação, enfim, é multicausal, portanto sem gatilho único. O que já sabemos é não ser da ordem da escolha.
Passei dez anos, junto com a minha esposa, estudando os mecanismos de eficácia dos contos de fada e das histórias infantis, disto resultaram dois livros. Estou acostumado aos argumentos, que não se sustentam, do suposto perigo das histórias infantis como indutoras de “maus” comportamentos. As histórias infantis são uteis, dilatam a imaginação, dão contornos e nomes para sensações que assaltam as crianças, ajudam a representar sentimentos íntimos que elas pensam ser as únicas a ter, proporcionam um ensaio emocional para o mundo adulto, é uma das portas para a diversidade da cultura humana, mas elas não conseguem, e nem se quiséssemos torcê-las para tanto, modelar a sexualidade de ninguém.
Uma eventual personagem gay, no mundo das histórias infantis, só faria a alguém que já pressente em si algo assim, embora na infância isso muitas vezes nem esteja decidido, a não se sentir tão diferente.

Machismo na cozinha

Essas condutas incivilizadas não conseguirão reconduzir as mulheres a escravas de cama e mesa, nem as crianças a seres amedrontados e passivos!

Valentina é uma menina que ganhou notoriedade pelo programa MasterChef Júnior. Ela tem a aparência de sua idade, 12 anos. Veste-se de forma adequada, sua fala e expressões são as de uma púbere comum. É graciosa, como  muitas meninas nessa fase. Mas o protagonismo que ganhou deve-se a manifestações agressivas de cunho sexual de que foi vítima na internet. A questão é: o que a fez uma garota, participante de um programa de culinária, ser alvo dessas agressões? Se alguém conseguiu ver nela qualquer tipo de insinuação, essa pessoa é um prodígio de desconhecimento de si, afinal, toma como de fora o que lhe brota de dentro.

Certos homens, por uma insegurança básica de sua masculinidade, acreditam que toda e qualquer exposição feminina que existe, ou que eles supõem que exista, como nesse caso, é para lhes provocar. Como se elas estivessem apenas esperando o seu olhar. Uma vez que se acreditaram provocados, devem agir, demostrar sua macheza, mostrar de que falta de fibra são feitos. É uma típica atitude erotomaníaca, no sentido de projetar seu desejo e suas fantasias no outro. Frente a esse tipo de atitude, de sentirem-se convocados a uma cena que não lhes diz respeito, temos duas possibilidades: os primeiros não necessariamente são abusadores reais, ficam fantasiando e agindo nas sombras, na internet, por exemplo. As redes sociais são o paraíso para os covardes, desse e de todos os tipos, lá não há uma responsabilização direta sobre as agressões. E no espaço virtual começa e termina sua ação constrangedora. Seu dano não é pequeno porque cria uma atmosfera de violência sexual, uma cultura do abuso.

Mas vamos aos piores, o abusadores, os pedófilos. Eles não fazem proselitismo, não latem, eles mordem, por isso são quietos. O que apreciam é a ingenuidade da vítima. Seu gozo necessita dessa assimetria de posições, não é só de força física e de idade, mas principalmente de experiência. Eles querem sentir-se como mestres, iniciadores, a inocência e a surpresa da vítima aumentam-lhes o efeito prazeroso: quanto mais frágil seu objeto, maior o gozo. Arriscam, em termos legais, para não arriscar-se onde sentem-se realmente frágeis: na entrega erótica, não têm peito de enfrentar alguém em pé de igualdade. A escolha de objeto diz muito de nós, pois há uma certa identificação com o parceiro. Por isso pode-se dizer que o abusador procura parceiros onde parou sua maturidade sexual. A sexualidade adulta põem a maioria dos pedófilos a correr, sem um poder tão grande, como ele consegue com uma criança, eles ficam sendo os fracos e impotentes que sua equação sexual particular requer.

A lógica da proteção de que se Valentina não estivesse na TV nada disso aconteceria é a lógica da burca. Esse tipo de cerceamento da circulação social de meninas e mulheres pressupõe que sua presença produz uma inevitável e incontrolável mobilização do desejo masculino. Na sua selvageria auto-complacente, eles exigem que as mulheres fiquem presas para não serem perturbados. Promovem o exibicionismo da macheza por temor dos efeitos impactantes que o corpo feminino lhes produz. Esse tipo de agressor tem medo das mulheres e reage com a violência das feras acuadas.

Talvez a televisão, assim como a internet, sejam uma forma de exposição forte para alguém pequeno, porém, as crianças gostam de ver-se protagonistas de suas atrações. Seria triste se a televisão só mostrasse adultos. É claro que os critérios têm que ser rigorosos, mas já tivemos muitas experiências de exposição erótica de adolescentes no passado da TV e MasterChef Júnior está longe de ser uma delas.

O programa de que Valentina participa não é como os realities shows da versão adulta, onde a humilhação e a concorrência ao estilo dedo no olho parece ser parte integrante do show. A versão mirim é adequada à infância, com mais carinho e elogios do que outras coisas. Não classificaria o programa como educativo, mas que ele coloca questões sobre como criamos nossos filhos. A ideia de proteção da infância é correta, mas muitas vezes exageramos na dose, deixando as crianças fora das experiências da vida, meros espectadores do mundo adulto.

Crianças na cozinha, sempre que supervisionados, me parece uma grande ideia. A comida deixa de ser mágica, elas descobrem o trabalho que qualquer coisa dá, o esforço requerido. A arte culinária pede uma boa dose de concentração, uma sincronização da inteligência motora com a intuição, com a percepção sensorial, é preciso pensar quantidades e tempos de preparo, enfim, não é uma ciência fácil. E deve ser bem mais fácil ensinar química, física e biologia para quem já pilotou um laboratório simples, que é uma cozinha, do que para quem nunca entrou nela.

A culinária entrou na moda quando a classe média, incluindo os homens, tiveram que cozinhar. Enquanto isso era coisa de empregados e mulheres era algo menor. Só que agora as mulheres abandonaram a vocação unívoca para as panelas e, por causa das legislações trabalhistas, este ofício tornou-se oneroso. A consequência, ótima aliás, é que a alienação culinária é menor até entre os adultos mais abastados, como todos têm que se virar um pouco no fogão, cozinhar tornou-se chique.

Na ocupação da cozinha por homens e crianças encontramos a inversa do machismo que confina a feminilidade à vida privada. Elas saíram, eles entraram. As crianças, por sua vez, conscientizadas de que a alimentação é algo no qual se pode ser ativo, deixam de comer como quem mama, o que se lhe puser na boca. Assim a obesidade e as doenças decorrentes da alienação do ato de comer certamente diminuirão. Essas condutas incivilizadas não conseguirão reconduzir as mulheres a serem uma escrava de cama e mesa, nem as crianças a seres amedrontados e passivos. Vivemos um momento de reação a essas conquistas, mas elas são irreversíveis.

A invasão zumbi

Zumbi, você ainda vai ser um… na melhor das hipóteses.

Uma dinastia pode estar chegando ao fim. Depois de reinar absoluta durante todo o século XX a primazia dos vampiros no uso da ficção de terror encontrou um adversário à altura: os zumbis chegaram. O começo foi tímido, na década de 30, quando nasceram no Haiti, e seguiram obscuros até os filmes de Romero nos anos 60, mas depois disso ganharam um impulso irresistível e crescem sem parar. Hoje o zumbi é o personagem mais usado para filmes, séries de terror e para imaginar cenários pós apocalípticos. Mas ele é muito mais do que isso, sua marca ganhou nossa imaginação: o zumbi está em games, quadrinhos, existem as “marchas zumbis” em inúmeras cidades, recentemente ganhou uma excelente revista digital: ZumbiGo! Acreditem, até comédia romântica com eles já temos (Meu namorado é um zumbi), ou seja, nenhum cenário de Halloween estará completo sem sua presença. De qualquer forma, a comparação com o vampiro não é sem interesse, afinal, sai um morto-vivo para entrar outro.

Os fanáticos por zumbis vão odiar que eu misture os passivos escravos que eles foram quando nasceram no Haiti, apenas mortos que voltavam à vida pela magia de um feiticeiro para serem usados como força de trabalho barata, aos misteriosos e organizados Caminhantes Brancos de Guerra dos Tronos. Mas estou mais interessado neste momento em suas semelhanças do que nas nuanças que os categorizam. Pois uma questão é comum, e é dessa que quero falar: eles estão mortos mas vivem, e isso partilham em comum com os vampiros.

A questão que devemos nos fazer é o que esses mortos-vivos dizem de nós? Se estão tão em voga, talvez sejam eco de recônditas questões que não nos atrevemos a pensar, e por isso elas abrem espaço na nossa consciência via fantasia.

A morte perdeu espaço na modernidade, sua antiga forma pública foi encerrada dentro de hospitais. Da mesma forma, falamos menos da finitude, e tememos o envelhecimento como crianças temem o bicho papão. Espichamos o tempo de vida, mas encolhemos a reflexão sobre a existência. Portamo-nos de forma ambígua: nos cuidamos para durar mais, mas não encaramos o fim como natural. Desprendida das antigas convenções tradicionais e sem acreditar numa transcendência, a modernidade nos confinou na hipertrofia do presente, por isso a reflexão sobre a morte não prospera. Porém somos, ainda que contra vontade, seres para a morte, a condição humana passa por isso. Se não houver reflexão sobre o tema, ele voltará para nós como sonho e pesadelo. Esses zumbis somos nós, em uma forma lúdica e rebaixada de filosofar sobre nosso destino.

O zumbi fala não só da morte como de sua fronteira: a temida velhice. Os zumbis também representam os velhos, sua incomoda lentidão, seus passos pesados, seus movimentos em câmera lenta. Se a morte nos aguarda, na melhor das hipóteses esse pesadelo vem junto com outro: ficar velho, com o corpo corrompido pelos anos. A contaminação é inevitável, todos seremos zumbis.

Qualquer plataforma mítica comporta múltiplos significados, justamente seu sucesso demostra essas camadas de possibilidades. O corpo decaído é a marca zumbi por excelência. Ora, nosso tempo nos pede um cuidado exaustivo com o corpo. Ele deve ser modelado, malhado, adequado a padrões exigentes. A forma zumbi expressa nosso cansaço com essa demanda de mimar um corpo que inevitavelmente vai decair. É como se disséssemos: vamos ser feios de uma vez, chega de privações e de trabalho forçado, essa casca de pele não vale o esforço exigido! Nesse sentido o corpo zumbi é a recusa do corpo disciplinado e diz que seguimos vivos se não o temos. O zumbi é  o protesto contra nossa vaidade excessiva e o culto a saúde.

Um fato difere categoricamente os vampiro dos zumbis: os primeiros são aristocratas e os segundos são plebeus. Certamente outro fato que o zumbi expressa é a massa. O vampiro está no topo da cadeia alimentar, literalmente se alimenta de todos e ninguém se alimenta dele. O fenômeno zumbi é a revolução francesa no território da ficção, a plebe angariando fatias de prestígio. Nossa ideologia prega a individualidade, devemos ser únicos, afinal, ser confundidos com a massa, ser ninguém, é o grande horror. O fenômeno zumbi sugere um cansaço também com essa ideologia individualista, nos aponta a luta inglória e sem sentido para despontar na multidão, como também a força dos excluídos. O mundo dos vampiros é para eleitos, o mundo zumbi é a verdadeira democracia, aceita a todos, todos seremos zumbis.

Porém a forma pejorativa de ser massa também se expressa no zumbi. Ele começou como escravo e ainda tem muito dele. Um ser sem vontade e sem cérebro, talvez por isso goste tanto de comê-lo, quem sabe ingerindo comece a ter algo dele. A civilização mecânica e burocrática, onde o pensar não tem vez e consumir é a meta, nos faz zumbis. Embora pareça na contramão de qualquer organização social, a toxicomania na sua forma mais acentuada nos deixa zumbis. Drogados são seres para os quais o mundo se esvaziou de sentido, afinal, só se interessam pelo seu objeto, sua substância mortífera. Ou alguém tem dúvida que as cracolândias não são habitadas por zumbis? O zumbi expressa tanto a obsessão nociva da droga como a anorexia do desejo, essa apatia tão comum, mas que corriqueiramente se confunde com depressão.

Zumbi rima com apocalipse, geralmente ele aparece em cenários distópicos. O mundo zumbi é inóspito. Mais por sorte do que por mérito, apenas uma família e amigos se salvam, o resto é inimigo. O olhar político nesses casos beira o simplório: nosso mundo não tem conserto nem esperança, só resta seguir vivendo numa pequena comunidade que se cuida e evitando todos os outros, já que o mundo é, de fato, muito perigoso.

Enfim, o zumbi chegou e terá uma longa vida pois possibilita expressar inúmeras ideias soltas e pensamentos que buscam uma forma. Nada nos mostra que caminhamos na direção de uma convivência mais pacífica e harmoniosa com a morte e com nosso corpo. O pensamento burocrático impera, a crença em objetos mágicos (químicos) que nos adormecerão a vontade também. O mundo nos aparece como mais perigoso e violento. O horizonte político não entusiasma. As condições são propícias para aparições zumbirescas e outras assombrações. E pior, se um zumbi não morder você, um dia teu próprio espelho o fará.

Sherlock Holmes das grandes causas

De detetive excêntrico a super-herói: as transformações de um personagem que foi convocado a salvar o mundo.

As crianças gostam de contos de fada pois eles lhe transmitem uma confiança no mundo: tranquiliza-as a certeza de que no fim tudo que descarrilhou voltará ao normal. Não importa o quanto o herói sofra, quantas perdas tenha, haverá uma reviravolta que colocará tudo outra vez em equilíbrio. Crescemos e seguimos pedindo à ficção garantias que a justiça triunfará, que os bons serão recompensados e os maus pagarão suas faltas. No romance policial o mal é rasteado, esquadrinhado, compreendido e finalmente vencido. Como já não temos o olhar onisciente de um deus sobre nossas faltas, criamos a ideia de que a ciência e seus métodos, aliados a homens especialmente inteligentes, descobrirão tudo. O que nos amedronta virá a luz e será eliminado. Graças a essa linhagem de homens brilhantes e implacáveis seria impossível esconder um crime, assim como era enganar os deuses. O romance policial é o conto de fada dos adultos e o detetive é seu deus decaído. Essa ficção cria um cosmo onde os fatos no princípio não fazem sentido, mas que um olhar esperto juntas as pontas soltas, desvela a maldade e a domina. Não sabemos bem qual é a face do mal, nem o número seus demônios, mas ele é vencível. E mais, o mundo não é caótico, não é som e fúria gratuita, sabendo ler os fatos ele teria um sentido.

Consideramos Edgar Alan Poe o criador do romance policial, mas o maior detetive, arquétipo de todos os que seguiram, nos foi dado por Conan Doyle com seu impagável Sherlock Holmes. Esse detetive transcendeu seu criador e a obra que o originou. Como outras personagens que se tornaram ícones, ganhou contornos de um mito contemporâneo. Por isso muitos se apropriam dele para lhe atribuir novas aventuras. Um mito é um instrumento que ajuda a pensar, uma fantasia a serviço da subjetividade de cada época. Ele muda ao sabor das transformações dos modos de ser e de conceber o mundo e revela um pouco de nós mesmos, de nossos anseios e angústias.

Por ser o melhor, Holmes possui todas as características que distinguem e definem o detetive. Além das óbvias, como inteligência aguda, rapidez de raciocínio, conhecimento enciclopédico, excentricidades aleatórias, eles tendem a ser assexuados. Os grandes detetives não têm família, não se envolvem com namoradas, ou então são passageiros seus affairs. Possuem uma misoginia difusa, tudo indica que as mulheres atrapalham a concentração, essa atitude retoma na modernidade a antiga ideia que sexo e pensamento sério não andam juntos. As mulheres seriam mundanas demais e por isso atrapalham os voos mais altos do pensamento. Como na antigas religiões, é preciso estar puro para ascender ao sagrado e a verdade.

Um dado que pouco nos damos conta é a revolução do pensamento que Conan Doyle nos propõe, e talvez essa seja uma das razões não explícitas de seu sucesso. O modo de pensar comum na virada do século XIX para o XX era partir do todo e então deduzir o particular. Doyle pega no ar a mudança em curso de paradigma e nos demonstra, de forma acessível, a possibilidade de chegar à verdade através de pequenos indícios, pistas infinitesimais em que antes não reparávamos. Hoje é fácil, depois do DNA, acreditar que as pequenas coisas têm assinatura, no começo do século passado era apenas uma intuição.

Mas o que a última versão de Sherlock, os dois filmes de Guy Ritchie, mantêm do original? Ainda é o nosso Holmes? Creio que sim, as características da sua personalidade foram mais mantidas que as do gênero policial. Os filmes estão mais próximos dos romances de aventura. No romance policial o crime já está dado, basta decifrá-lo, enquanto na aventura o mal está em curso e cabe ao herói alterar seu curso. Além disso, o Holmes de nossa época pede um equilíbrio maior entre corpo e cérebro. Hoje um herói de poltrona, sem músculos e agilidade seria impensável. O mesmo se dá em relação a Watson que passa a ser mais esperto e participativo, nosso tempo anti-aristocrático não suporta parcerias tão assimétricas.

Quanto aos objetivos, Holmes alargou seu horizontes: agora as grandes causas lhe interessam. Ao invés de assassinos pérfidos isolados, roubos e intrigas, na sua versão atual a meta é a estabilidade política da Inglaterra e evitar a primeira guerra mundial. Repaginado, ele sai da esfera policial e chega na política, agora é um herói mais elevado e politicamente correto. Sua inteligência está a serviço do bem de todos, portanto, podemos dormir mais sossegados.

publicado na revista Carta na Escola, março de 2012

18/04/12 |
(2)

Geração Harry Potter

por ocasião do lançamento do último filme da série, artigo para a Revista Carta na Escola.

O observador desavisado pode pensar o fenômeno Harry Potter apenas como um investimento bilionário da indústria cultural. De fato foi, mas só depois de ter trilhado um caminho solitário, com tropeços e sem outro incentivo que não o de ter tocado o coração dos seus primeiros leitores. Foi na base de uma difusão boca a boca que esse livro, de uma autora estreante, conseguiu seus pequenos admiradores.

Claro, depois da história se provar viável, a mídia investiu forte e fez dela o que é: marco literário da ficção para jovens. Podemos inclusive falar que existe uma “geração Harry Potter”. São jovens que estão hoje ao redor dos seus 20 anos, que nasceram em torno da década de 90 e pegaram a onda quando chegavam à puberdade ou no começo da adolescência. Em razão de que outras marcas ideológicas entraram em declínio, tornou-se comum as pessoas se referenciarem e identificarem na condição de consumidoras de certas obras literárias. O universo que J.K. Rowling criou é sem dúvida uma delas, mas esse fenômeno é partilhado por fãs, até então mais velhos, de sagas como Star Trek, O Senhor dos Anéis ou Star Wars, a galáxia distante de George Lucas. As crianças que celebrizaram o bruxinho de Rowling, além de habitar esse complexo reino mágico, o acompanharam enquanto ele nascia, com cada livro e filme aguardados ansiosamente. Ou seja, trata-se de uma geração e uma série que cresceram juntas.

Mas o que podemos aprender com o fenômeno Harry Potter? Se ele realmente fez eco em tantos é impossível que não traduza questões que estão postas para esses jovens. Uma resposta para esse encontro feliz entre obra e geração está no mais óbvio: a busca da magia, mas entender o que significa essa magia é algo que requer um esforço a mais.

Max Weber notava que a marca mais forte da modernidade foi o desencantamento do mundo, no sentido do pensamento mágico que revestia o cotidiano, a cultura e o raciocínio dos antepassados. O declínio das religiões e o avanço do pensamento científico reposicionaram o homem ante o cosmo. Mas, infelizmente, as promessas do iluminismo, da ciência, da razão, falharam.

Acreditávamos num mundo racional, no qual, graças ao avanço das ciências, as paixões humanas perniciosas estariam dominadas, mas o que realmente vivemos foram duas guerras mundiais que devastaram a Europa, supostamente o lugar mais avançado. Acrescentem-se a isso Hiroshima, Auschwitz, totalitarismos e a Guerra Fria, com sua possibilidade de um desastre nuclear em que todos perderiam. O século XX é um cemitério de promessas, como então seguir confiando em tais ideais? Assim, o apelo ao mágico dessa série ganha contornos de uma crítica nostálgica ao nosso tempo. A sobrevivência da barbárie tornou inegável que ainda existem fatos obscuros nos homens e na sociedade, que a ciência e a razão não conseguem explicar suficientemente. Representando uma forma lúdica de lidar com esse lado sombrio, a literatura nos restou como o único espaço possível da magia.

Acompanhando os acontecimentos do mundo dos bruxos e as batalhas de Potter, fica claro que Rowling está em busca de circunscrever o mal. Afinal, uma das questões que está em aberto é sobre a essência do mal. O que ele seria? Como entendê-lo e principalmente, como contê-lo? Haja feitiços suficientes para neutralizar e tentar reparar um século tão trágico como o XX!

Especialmente no Brasil, temos uma dificuldade com a ficção de inspiração mágica. Nossa literatura é essencialmente realista, com poucas exceções, e nosso pensamento político lhe faz eco. A ideia de fundo é: como, com tantos problemas sociais, poderíamos reforçar o pensamento mágico, já que este nos afastaria da nossa difícil realidade?

Por sorte os jovens não aceitaram essa prevenção absurda, que não capta a essência das possibilidades da fantasia. O mundo fantástico permite outra forma de apreensão da realidade e não um afastamento. Quem imagina o mundo encantado de Rowling como refúgio idílico onde encontraremos as bondades do Papai Noel vai se sentir traído: ele é mais assustador e perigoso que o nosso. Não existem concessões, meio termo, nem ilhas de sossego. O que encontramos lá é uma luta política contínua, com traições, mortes e golpes baixos a todo o momento. Os heróis dessa saga sofrem sem tréguas e a mensagem é que só o engajamento e a disputa corajosa podem resolver seus destinos e os daquele reino.

Apesar de usar o acervo mitológico clássico com tempero gótico, é muito provável que o cerne mítico que está embutido em Harry Potter seja indissociável da experiência europeia com o nazismo. Filosoficamente, a Segunda Guerra é uma ferida não supurada, ainda não a entendemos em todos os seus mecanismos. Acredito que a geração de agora, por meio dessa obra, a recebe de maneira indireta e mítica, por ser a primeira que não foi tocada diretamente pelos seus tentáculos de horror, perplexidade e luto.

Harry Potter trilhará o mesmo caminho de Peter Pan, Pinóquio, Alice, Dorothy e tantos outros, figurando entre os heróis infantis de todos os tempos. Seu sucesso provavelmente não se repetirá com tanta força nas próximas gerações, primeiro porque tem o sabor do ethos da que passou e também porque, por se tornar um clássico, essa história será conhecida e recomendada pelos adultos. As crianças gostam de compartilhar com seus pais as histórias que as encantaram, mas também gostam de ter um universo onde elas saibam mais, onde elas sejam mestras dos caminhos. Para a primeira geração, foi uma experiência de independência: seus pais não eram iniciados nos assuntos do bruxinho, já para os filhos desta, talvez ele se torne personagem de uma história familiar.

Há algumas décadas, Umberto Eco ponderava sobre o que aconteceria caso um professor universitário pedisse a seus alunos que fossem tão dedicados a um assunto qualquer quanto eles eram devotos ao mundo enciclopédico de Tolkien. Ele não seria seguido e certamente arranjaria uma briga e tanto. Talvez, o que possamos dizer sobre isso é que esses universos mágicos nos apaixonam também porque não somos obrigados a entrar. A porta está aberta e espiamos por suspeitar que ali vamos nos divertir, nos assustar e ter contato com dimensões do humano que só a literatura nos proporciona.

Publicado na Revista Carta na Escola

14 setembro 2011

Ainda o Dr. House

Análise desse personagem da série de TV homônima

Duas semanas atrás, a jornalista Cris Gutkoski escreveu sobre o seriado House neste caderno. Não é réplica nem espero tréplica, é apenas continuação. Gostei do artigo, gosto da série, então emendo umas linhas que espero estejam à altura dele. Não tenho o mesmo entusiasmo de fã com a série que a Cris, mas, como ela, penso que o seriado dá mesmo o que falar.

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12/12/09 |
(2)

Pornografia dos abismos da alma

Sobre o filme Anticristo

A impressão de Anticristo de Lars von Trier é que os demônios foram conjurados à toa. Eles comparecem, assombram, mas dizem pouco. As cenas são magníficas, e algumas inesquecíveis, a questão é que o enredo não convence. O filme produz mal estar, mas realmente não nos faz pensar numa direção diferente, é um sofrimento gratuito, uma pornografia dos abismos da alma para render pouco.

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10/10/09 |
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Torcida na platéia: Nada vai nos separar

Postado por mário

Ontem, sexta-feira, dia 21 de agosto estreou o filme: Nada vai nos separar – Os cem anos do S. C. Internacional. Tive a sorte e o prazer de ver na pré-estréia (mais sorte ainda de sentar atrás do Valdomiro).
Fui bem recomendado para levar lenços para as lágrimas. Não levei e nem foi necessário, eu me seguro (mas se você é do tipo que chora em casamentos, filme de animais e propaganda de margarina leve, uma toalha de banho), porém meu coração parecia num eletrocardiograma de esforço. Colorados cardíacos devem evitar o filme.

Basicamente temos a história sucinta do time, na boca de historiadores e depois de torcedores e jogadores que marcaram época. Entremeado, é claro, nos gols e momentos decisivos. Simples, mas a genialidade foi em como juntar tudo isso. A quantidade de informação é extraordinária, é um primor de montagem. São inúmeros planos e o espectador não se perde, o filme vai deixando esperas para reatá-as logo em seguida. O acerto está no equilíbrio, na concepção de clube que a equipe que fez o filme tem, ou seja, mostrou a história da interação do clube e do time com a sua torcida. É a história de uma paixão centenária, o resto é decorrência.

Você já tentou escutar um desses discos que são um apanhado dos clássicos mais famosos, uma espécie de pizza 24 sabores de música só com o recorte dos allegros de cada peça. É um saco! A música sem os andantes e os adágios não funciona. O Fischer, o roteirista, sabe que nada seria mais enjoado e raso do que uma coleção ufanista de gols, por isso as conquistas e os gols estão no contexto do momento. Eles não nos pouparam dos momentos duros do time, da década perdida (anos 90), das grandes derrotas, mas só nos recordam para preparar o clima, para revivermos os últimos títulos praticamente com a emoção engasgada que estávamos naquele momento.

Mas a comparação do filme com uma sinfonia não é por acaso, as músicas escolhidas, o hino tocado em vários arranjos, de diversas formas, ajuda na construção do clima. Dois dias depois e a trilha sonora não me sai da cabeça.
Vá com a bandeira, a emoção é de fim de campeonato.

Postado nos blogs Rolo Compressor e Terra do Nunca em agosto de 2009

19/08/09 |
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