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Kutasi

Dos tempos em que o futebol era uma aventura e não um negócio.

Quem teve um tio meio biruta sabe seu valor. Quem não tem, nem faz idéia do que perdeu. A minha sogra teve um de dar inveja. Chamava-se Henry Kupferstein e nasceu junto com o século em Budapest. Boníssima pessoa, mas, ou por isso mesmo, gazeteiro, boêmio, vivia de encrenca em encrenca, sua vida era a rua. Foram tantas que aprontou que branqueou os cabelos de seu pai. Entre seus inúmeros vícios havia um que era secreto: o futebol. Para não desgostar ainda mais seus amados pais arranjou um apelido: Kutasi (pronúncia-se Kútachi)

Com esse nome era conhecido em Budapest. Era mencionado nos jornais, nas rádios, mas ninguém ligava Henry a Kutasi. Só quem sabia, por ser cúmplice, era seu primo Bandi Kerekes. O primo o acobertava nos fins de semana em que sumiam com as mais variadas desculpas. Com o passar do tempo outros parentes souberam da vida dupla, mas pouparam os pais. Os dois falecerem sem conhecer a infâmia de ter um filho jogador de futebol. Henry sabia que seus pais já tinham perdoado tanta coisa, não perdoariam o ponta esquerda Kutasi.

Outros tempos, outros pais. Futebol, então, era coisa de periferia, de ralé. Mas ao menso tempo, na Hungria, o futebol começava a encantar multidões e a ser paixão nacional. Porém os jogadores ainda não ganhavam bem e eram mal vistos. Henry sofria com a discriminação e com o segredo. Para piorar, o amor pelo futebol só crescia, cada dia ele era mais Kutasi e menos Henry.

Quando a situação ficou difícil para os judeus na Hungria seu irmão Luis, avô da minha esposa, e o primo Bandi vieram para a América. Ele não quis, já tinha driblado tanta coisa na vida, achava que livrava mais essa. Mal sabia ele que o nazismo era um zagueiro maldoso, desleal, quebrador de perna. Esse foi o drible que ele não deu. Kutasi e Henry morreram juntos em Auschwitz em 1944. Já não usava a camisa 11, era um número mais longo tatuado no braço.
(publicado na Zero Hora de 25/02/2015)

26/02/15 |
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Interceptei a mensagem de um E.T.

vistos de fora, somos no mínimo engraçados!

Primeiro informe ao planeta Zorg.

Estou muito animado no meu primeiro dia no planeta Terra. Orgulhoso de ter sido escolhido para a missão de reconhecimento dessa curiosa civilização semi-inteligente.

Já posso dizer, num primeiro relance, caso queiramos entrar em contato e trazer presentes: o que eles mais precisam é de gás carbônico. Cada grande cidade possui enormes usinas fixas de produção de CO2 com gigantescas chaminés. Como isso não é suficiente, uma manobra coletiva permite uma distribuição mais eficiente a partir de pequenas usinas móveis.

Existe um ritual de solidariedade que possibilita tornar a atmosfera mais compatível com a espécie que domina o planeta. Logo que sai o sol, cada família que tem posses, pega o seu produtor móvel de CO2 e sai distribuindo fumaça em rotas aparentemente aleatórias. A solidariedade se repete perto do meio-dia e ao redor do entardecer. Os mais prestativos fazem isso em outros horários e inclusive à noite. Isso possibilita cobrir toda a extensão das cidades com uma atmosfera amigável.

É um povo de uma persistência admirável, entopem as vias e quase não saem do lugar por horas. Exceção das micro usinas, de apenas duas rodas, talvez usadas também para transporte, afinal, essas circulam.

Sem esse gás creio que eles não vivem. Por essa razão existem poucas pessoas vivendo em áreas verdes. Creio que a concentração de oxigênio lhes seja prejudicial. Talvez somente indivíduos particularmente robustos possam sobreviver em tais condições. Motivo pelo qual, eles se esforçam para derrubar as florestas produtoras de oxigênio e umidade.

Mesmo assim, com todo esse empenho, alguns precisam usar CO2 concentrado. Existe um dispositivo bem inteligente que permite uma dose direta. É um canudo fino, branco, que ao ser aceso em uma das extremidades, garante um suprimento para os mais débeis. Evidentemente, quem está em volta aproveita um pouco da fumaça.

Fora a necessidade extrema de gás carbônico, nada mais poderia explicar a audácia em usar tais dispositivos móveis. É visível um contraste extremamente desigual entre as usinas móveis, todas em metal rígido – apenas as rodas são macias – e a fragilidade dos humanos. Eles possuem corpos sem exoesqueleto, são constituídos basicamente de carbono e água, e o cerne é de uma quebradiça estrutura de cálcio.

O exercício da solidariedade da fumaça é perigosíssimo. Muitos perdem a vida pois a usinas são bólidos primitivos que, não raro, colidem entre si ou atropelam humanos e animais, causando danos irreversíveis. É de um absurdo “custo humano”, para usar o vocabulário local.

Não fosse CO2 o gás da vida, diria que nem entre as civilizações semi-inteligentes poderíamos classificar os terráqueos.

Vida interior

Perdido em pensamentos, na missa…

Devo à formação católica grande parte da minha vida interior. Sem as missas, não sei se teria desenvolvido a imaginação. Logo que comecei a frequentar a igreja, as celebrações mudaram do latim para o português, mas bem poderiam ter continuado assim, para mim seguiu soando grego. Como não entendia o ritual, as rezas prosseguiam alheias. Só restava me entreter com as janelas e os pensamentos.

Não sei se meu órgão da fé é avariado ou a se ideia de um deus zangado, ressentido e exigindo adoração nunca me fez sentido. O fato é que sempre estava na missa dividido. Tentava me conectar com aquela solenidade e não conseguia, então devaneava.

Experimentei várias fases de distração: a matemática, quando contava as pessoas multiplicando o número de bancos pela média dos ocupantes, ou calculava quantas lajotas havia no piso, ou ainda buscava descobrir a altura do teto comparando com animais de que conhecia o tamanho. A fase artística era difícil, pois sempre achei a iconografia das igrejas católicas com um pé no sinistro.

Exceção feita às poucas missas a que fui na catedral de Santa Maria, de belíssima decoração. Minha alma volúvel se deslumbrava com as pinturas de Locatelli e ali fui o mais próximo do bom católico, vencido não pela fé, e sim pela estética.

Tive também a fase da pura viagem, tédio total: nessa, simplesmente inventava histórias, conduzia as fantasias aleatórias para filmes mentais. Antecipava os cowboys justiceiros que me aguardavam na matinê, ou os piratas na sua procura obstinada por tesouros.

Mas por que ia à missa se resistia a ela? Porque me mandavam e eu obedecia, seguia os passos dos pais. Minha mãe dentro da igreja junto comigo e meu pai no fundo, às vezes saindo para fumar. Ficava no meio-termo, dentro como minha mãe e com a cabeça lá fora como meu pai.

Da cerimônia, gostava apenas da hora do Pai Nosso, a única oração que conhecia de cor e minha deixa para entrar de verdade na missa, sabendo que já estava agradavelmente no fim. As missas a que assistia com as minhas avós transmitiam uma sensação diferente. A fé delas parecia mais genuína e contagiante e transformava minha eventual companhia em alta e nobre missão. De qualquer forma, mesmo sem elas, nunca achei que perdia meu tempo. Afinal, aquela era a minha religião, ainda que pela metade. Eu não acreditava, só que a missa fazia parte fundamental do mundo dos meus sonhos.

Saía da igreja de alma leve, como quem tira botas apertadas, como quem lava e seca seus pecados logo cedo e a perspectiva da próxima só em uma semana. A luz forte da manhã de domingo prometia um dia livre e feliz. Havia uma inexplicável alegria extra, vá que Deus fosse tão generoso que abençoasse até os ateus distraídos.

19/01/15 |
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O silêncio dos automóveis

Se eles falassem, revelariam nosso desalmado coração.

Como seria se nossos carros pudessem falar? Dizer como foram companheiros e possibilitaram muitas das nossas aventuras. Mas não é assim, eles não falam. Porém não falam por que não podem ou por que não queremos ouvir suas histórias tristes? Eu sou mais pela segunda opinião. Os carros sofrem demais, sua conversa não é animadora.

Tudo começou em 1982, quando uma Caravan bordô saiu de São Bernardo e veio para Porto Alegre. Não ficou dois dias na concessionária. Saiu de lá carregada, a família inteira veio buscá-la. Estava orgulhosa com o seu casal jovem e dois meninos. Moravam na praça Japão e tomava banho toda semana. Um aranhão leve na lataria era sanado imediatamente. Sentia que tinha encontrado seu lugar no mundo.

Mas essa vida de viagens à praia e buscar as crianças na escola durou pouco. Sem aviso, um dia qualquer, foi levada de volta a concessionária. Nunca soube por que nem pelo que foi trocada.

Sua vida mudou. Seus novos e sucessivos donos reclamavam que ela bebia muita gasolina e ia sendo passada para frente. Mal se acostumava a uma nova garagem e já estava noutra. Nem dava tempo de se apegar. Conheceu bairros mais pobres e a periferia. Seus novos donos mal trocavam o óleo. Esqueceu o que é um tanque cheio. Autorizada nunca mais, vivia de peças usadas e improvisadas. As viagens à passeio acabaram, de madrugada fazia compras na Ceasa de dia entregava ranchos.

A maior tortura era quando uma diligência pedia ir ao aeroporto. Ficava sempre perplexa, eram muitas camionetas novas, marcas e modelos que nem suspeitava que existissem. Se sentia envergonhada por estar sem calotas. As vezes imaginava que elas quisessem saber do seu passado, da sua experiência, mas estavam todas entretidas entre si e ela nunca conseguia entrar na conversa. Notava nelas uma ponta de vergonha por serem vistas falando com uma velha.

Seu atual dono, um serralheiro, soldou na capota uma espécie de gaiola de ferro para transportar os portões que conserta e entrega. Era como uma coroa, mas significava o avesso. Para seu desespero uma dessas encomendas foi na rua em que passou seus melhores dias. Podia ver dali a casa onde um dia se sentiu tão amada.

Rezava para que o serviço terminasse. Não queria ver nem ser vista. Como sempre, quanto tememos um encontro ele acontece. Sua antiga família passou numa camionete novíssima. Menos mal que não a reconheceram. Queria morrer, mas não ali. Mal conseguiu arrastar os pneus até sua casa antes de fundir o motor.

Quando fores reclamar da brevidade da nossa existência pense nos nossos amigos automóveis, esses sim tem uma vida curta e conhecem a decadência muito rápido.

(publicado em ZH, 06.01.2014, interino do Fabricio Carpinejar)

05/01/15 |
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Humor, coisa seríssima!

Como é que funciona o humor? Quais seus efeitos? Abrão Slavutzky explica e Mário Corso recomenda!

O humor é isso que todo mundo sabe o que é, desde que ninguém nos pergunte. Pois Abrão Slavutzky, autor de Humor é Coisa Séria (Ed. Arquipélago, 2014, – melhor ensaio de Humanidades Açorianos 2014) se pergunta. Quem conhece o autor sabe que ele gosta do tema, faz tempo que ele ronda com propriedade essa questão fazendo-nos pensar no assunto, mas agora chegou sua obra definitiva sobre a matéria.

Viver não é simples, nunca foi fácil e a felicidade é um artigo raro, essa é a crença dos psicanalistas, dessa premissa eles partem e pouco prometem. Como psicanalista que é, esse é o ponto de partida do autor. Sua tese é que entre as possibilidades de escapar das várias modalidades de sofrimento inevitáveis, o humor se destaca como uma das ferramentas mais úteis. Ele não é panaceia, cura para todos males da condição humana, mas está entre seus recursos um alívio para as dores inevitáveis da nossa triste sina, o que não é pouco.

De início o autor vai consultar a psicanálise, dever de ofício, mas se apoia em filósofos e literatos de todas as épocas para tentar cercar esse conceito fácil de perceber, mas tão difícil de explicar, que é o humor. A intuição nos diz que o humor nos ajuda, que põe óleo nas engrenagens da vida, mas como é mesmo que isso acontece e qual seu alcance, são as questões que o Slavutzky responde. É nesse ponto que o livro se mostra mais interessante, não é direcionado para psicanalistas. Embora dialogue com a psicanálise, o alvo é maior, é o público leigo que quer saber mais sobre si mesmo e sobre esse conceito. Afinal, não se trata de um recurso técnico, mas sim de um modo de ver a vida.

O autor nos lembra que a teoria inventada por Freud veio do nada e precisou criar um ar de seriedade para mostrar-se respeitável. Imagine que começou dando voz aos sonhos, às fantasias, aos desejos recônditos, falando do papel da sexualidade na vida, e pior, da sexualidade infantil. Isso já era subversão demais para o século XX em seu início, e em certos casos, segue sendo. Portanto, contra inimigos de toda ordem, a psicanálise se fez de mais séria do que era para poder ser aceita. Apesar disso, entre os primeiros escritos do mestre vienense o chiste ganhou destaque, centenas de páginas explicando sua intimidade com as manifestações do inconsciente.

Em busca de uma apresentação formal, na prática clínica dos psicanalistas com seus pacientes adultos toda possibilidade de brincar acabou ficando relegada a um plano menor. Uma interpretação, por exemplo, é uma mudança brusca de sentido: algo que se acreditava ter um significado acaba sendo lido de outro modo a partir da fala de um analista. Ora, às vezes isso provoca uma gargalhada mesmo que estejamos falando de algo grave sobre a vida do paciente. Provavelmente a intenção do analista nem era essa, mas pela peculiaridade do paciente o riso brota. É essa dimensão que o autor quer resgatar, mostrar como uma analise pode ter momentos divertidos sem que os efeitos sejam menos importantes. Em certas ocasiões, a única cura possível é rir daquilo que antes nos fazia sofrer.

Existe uma piada que fala mais da natureza da análise do que os analistas gostam de admitir. Ela é assim: um sujeito encontra seu amigo e lhe pergunta como vai. Sabe que ele tem problemas, mas que agora vai ao analista. O amigo lhe responde que tudo vai bem, que está ótimo, melhor que nunca. Ao que o primeiro lhe pergunta: deixaste então de te cagar nas calças? E o amigo responde: que nada, sigo me cagando, mas nem me importo!

A piada é precisa, fala de como muitas vezes o que muda numa análise, – e porque não dizer, na vida – não é a realidade fática, mas sim a condição de como encaramos o sintoma. O que fica diferente num segundo momento é como a realidade que nos desfavorece é recebida. Não a alteramos e sim aprendemos a conviver com ela com bom humor. Ora, uma análise pode até ser bem mais do que isso, frequentemente mudamos radicalmente comportamentos, destinos tomam rumos diferentes quando questionados. Só que isso não precisa ser grave nem triste, há ocasião para as lágrimas, mas também para o riso.  Em certas ocasiões, temos que ser sinceros, só é possível conquistar um golpe de humor sobre uma desgraça da qual não conseguimos escapar e isso já é melhor do que nada.

Não passa despercebido ao autor que o humor tem seus aspectos perigosos, especialmente quando exageramos na autocrítica, mesmo que esta tenha seu lado aparentemente bem humorado. Ele lembra que muitos comediantes que fizeram sucesso falando mal de si mesmos, desdenhando suas origens e hipertrofiando seus defeitos de maneira cômica, terminaram seus dias numa depressão ou acabaram suicidando-se. Em resumo, usado de qualquer maneira, e exagerando na dose, rir de si mesmo pode dar vazão a uma pulsão auto-agressiva letal. O humor é uma saída, mas não a única.

Abrão nos demonstra como humor é um termômetro da liberdade que existe dentro de uma família, de uma instituição, de um governo. O índice não falha, se podemos debochar de tudo, se não existem assuntos tabus, estamos num espaço livre. Os ditadores, os autoritários de todas as seitas, sabem bem do poder corrosivo do riso, por isso o proíbem.

Ao terminar de ler o livro, o que nos fica é uma ideia de que o bom humor é um estilo a ser cultivado, uma estratégia de sobrevivência. Há um caminho para uma existência menos penosa e passa por ele. Não é pouca coisa neste nosso tempo viciado em antidepressivos, que tem a tristeza como bicho-papão. A ambição do autor tem dois vetores, primeiro é nos ganhar para o lado terapêutico do bom humor na vida cotidiana. Segundo é desfazer a ideia de que a verdade obtida pelo humor seria menor. São milênios de desdém sobre o humor e suas consequências, o título é bem explícito – vamos levar o humor a sério. Mas é claro que para isso, se o paradigma do humor for mesmo incorporado e entendido, dentro de sua lógica paradoxal, ninguém precisa ficar tão sério assim!

05/01/15 |
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Ladrões de cavalos

Todo mundo foi nobre no passado, mas Luiz Corso sabia desmontar essa pretensão com muita graça.

Poucas coisas divertiam mais meu pai do que falar talian, o dialeto vêneto que se sobrepôs aos outros dialetos tornando-se uma língua comum aos nossos ítalo-descendentes. Sempre que podia encontrava com os conhecidos para gastar a nostalgia da sua língua mãe. Como tantos, aprendeu português na escola. Meu avô no fim da vida esqueceu o português e só falava talian, azar de quem não entendesse. Uma das minhas bisavós jamais aprendeu o português, todos que lhe interessavam falavam talian, para que falar outra coisa? Uma densa pátria cultural e afetiva comum unia essa comunidade.

Nessas tantas rodas de fala, sempre alegres, descontraídas, havia apenas um momento em que a conversa tomava um rumo que desagradava meu pai. Não lembro se ele nomeava esse fato de alguma maneira, eu hoje chamo de “nobreza retroativa”. O fato é que, vez que outra, lá pelas tantas, alguém puxava o assunto: o que tua família fazia na Itália? E então eram lembradas tradições, profissões, terras e uma pompa tal, que de forma alguma combinavam com os imigrantes que aqui aportaram. Mal comparando, sabe aquele papo de reencarnação, em que todos foram nobres ou distintos na outra vida e ninguém foi escravo nem camponês?

Ora, a esmagadora maioria de quem veio para este, na época, fim de mundo, era pobre. Não tinham terras nem posses, só esperança, às vezes um ofício e força para trabalhar. Vieram lutar contra a miséria e foram vencedores. A meu pai soava falso esconder a pobreza dos antepassados. A dureza da chegada na América fora heróica e terrível, muito sofrimento e trabalho duro. Na opinião dele, dessa epopéia deveríamos nos orgulhar, não da pátria perdida onde não tínhamos lugar, onde a crise despejou os mais vulneráveis.

Quando chegava a vez do meu pai falar da sua família na Europa, fazia um anticlímax dizendo que se perdia nos séculos desde quando, de geração em geração os Corso seguiam no mesmo negócio, todos aprendiam com os pais os segredos do ofício e de como essa tradição os unia e identificava a família na comunidade. Mas “esquecia” de falar a profissão dos antepassados, ao que um da roda insistia: mas afinal, o que faziam? A resposta era seca: “Roubávamos cavalos!” A piada desmontava o clima da nostalgia pela perda de uma Itália de fantasia.

Eu montando a cavalo sinto falta do mouse, dos botões, do retrovisor, dos pedais. Decididamente não fomos feitos um para o outro, minha intimidade com eles é pouca. Mas como nunca soube o que realmente fazíamos na Itália, meu pai era lacônico a respeito, tenho receio de que possa não ser piada. Peço então que não me convidem para conhecer seus cavalos. Tenho medo de ser assaltado por uma força atávica e, mesmo que desajeitado, sumir com a tropa. Afinal, é tradição de família!

13/12/14 |
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Tatuagens

O corpo ilustrado, visto por um destatuado.

Depois que meu cachorro se foi fiquei sozinho no quesito tatuagem. Todos são tatuados na minha casa. Inclusive me pressionam para fazer uma. Sinceramente, eu passo. As minhas razões são simples, coisa de geração, de idade. Um dos lugares onde mais me sinto à vontade é entre os da minha safra. Olho com entusiasmo as gerações que chegam, acredito serem melhores que a minha, mas fico no meu posto.

Nunca se precisou tanto do corpo para se fazer um eu. Sempre fomos desde um corpo, mas ele não precisava de tanta evidência, tanto protagonismo. Essa onda de tatuagens é similar à das academias, dos corpos esculpidos, das plásticas, dos cuidados extremados com saúde e alimentação. Hoje precisamos ser lindos, sarados e bem aprumados. Como cultivar a alma não anda em alta, apostamos as fichas no corpo. Por isso não creio que seja um modismo. Em resumo: como agora somos mais dependentes do corpo para obtermos uma significação, para sermos alguém, ilustrá-lo faz parte. Recebo pacientes cujas tatuagens foram decisivas para certas significações que de outra forma seriam difíceis.

Além disso não saberia o que tatuar. Geralmente as tatuagens são cicatrizes de uma significação, uma tentativa de fazer algo valer mais do que vale. Ou então desenhamos na pele algo que não queremos esquecer, que é nosso, mas de certa forma tem uma exterioridade. Enfim, algo que se situa na borda, está no corpo mas não entra. Como sempre ando em conflito com minhas identificações, teoricamente seria útil sublinhar alguma delas na minha pele, mas no meu caso, não tenho esperança que esse uso vá ajudar.

E há ainda a questão estética. Na minha infância tatuagem era algo marginal e transgressivo. Sem problema, eu achava isso bacana, mas acima de tudo elas eram cafonas, para usar a palavra da época. Vocês não sabem como as tatuagens melhoraram, algumas são praticamente obras de arte, enquanto as primeiras eram padrão cadeia. Mal desenhadas, mal acabadas, já nasciam tortas e desbotadas. Essa primeira impressão nunca me abandonou, tanto que emocionalmente elas me remetem primeiro a uma precariedade.

Mas a questão mais importante é a ideia de transitoriedade. Eu sei que não vou escutar as mesmas músicas a vida inteira. Meus gostos e referências mudam. Não tenho certeza que seguirei com as mesmas opiniões. Talvez as tatuagens sejam para ancorar certezas necessárias e não me sinto à vontade para tanto. Ou, pegando pelo lado da imagem, vocês já se viram em fotos antigas com roupas em que nos achávamos arrasando e hoje nos parecem cômicas? Sempre penso na tatuagem como uma roupa indespível, uma espécie de prisão a um conceito. Decididamente, a ideia de não poder ficar pelado ou retirar um signo passageiro me incomoda. Invejo quem tem o conforto de algumas permanências.

06/12/14 |
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GPS Gaudério

Nos caminhos do Rio Grande, o Fagundes, GPS Gaudério, te leva a qualquer lugar!

Adoro novidades. Sabendo disso uns amigos que desenvolvem aplicativos me deram para testar o GPS Gaudério. Para quem ainda não sabe, GPS é um aparelho, parecido a um telefone celular, ou instalado em um, que fornece a rota por onde passamos. Além da tela com o mapa, ele fala avisando as manobras que temos que fazer para chegar a um objetivo.

O GPS gaudério é mais que um aparelho e uma ajuda, é uma presença dentro do carro. A Gabriela, minha antiga voz, era uma copilota xoxa, tinha o entusiasmo de um tropeiro de lesma. Já o Fagundes, como ele se apresenta, tem uma voz que me lembra o saudoso Noel Guarany. Soa forte, decidido, é quase um comando onde deveria ser uma sugestão.

­Afrouxa o trote que tem pardal a menos de légua ­– é ele falar e já vamos tirando o pé do acelerador. Para quem não é do campo ele pode soar rude. Esses tempos fiz dois erros em sequência e ele me saiu com: Vou ter que recalcular a rota de novo animal! Para pra tomar um mate. Tu tá dormindo? É duro, grosso, mas alerta o índio sonolento e evita o pior.

Claro, eu programei uma fala para homem, se programares o Fagundes para uma mulher dirigir é outra fineza. A minha filha fez o mesmo e ele disse: Oh guria! Assim vamos dá mais volta que bolacha em boca de velho!

As vantagens são inúmeras, qual outro aparelho que indica postos que têm água quente para reabastecer a térmica? Não só aponta todas as churrascarias por onde passamos como até palpita, às vezes um pouco preconceituosamente, é verdade, mas com argumento. Exemplo: Esta diz que é churrascaria, mas serve pizza também, sei não…

Dentro da cidade é perfeito. Apenas tem que se acostumar que ele toca o hino rio-grandense quando passa na frente do Laçador, do monumento ao Bento Goncalves e perto do parque Harmonia. Às vezes, de inopino, num engarrafamento, declama uns versos do Jayme Caetano Braun pra modo de não perdermos a paciência com as agruras duma paisagem sem campo, sem verde, sem horizonte.

Sempre tem bons conselhos, quando sente que estamos muito rápidos nos pergunta: Que apuro é esse cuera? Esses tempo buzinei forte na frente de um hospital e ele me saiu com essa: Cem cavalos no motor e um na direção!

O que teria que ser corrigido é uma certa fixação por Uruguaiana. Cada manhã eu ligo o carro e ouço: Tu estás a 624 quilômetros de Uruguaiana. Parece que o destino primordial, o marco zero no qual esse GPS se baseia é o obelisco de Uruguaiana.

Esses dias indo para Garopaba, indiquei o nome da cidade e ele setou Uruguaiana. Corrigi, ele desconfigurou e me remeteu de novo para Uruguaiana. Na terceira desliguei o xirú. Sei a estrada, era pelas dicas. Não é que quando estou sobre a ponte do Mampituba o GPS se liga sozinho e me diz com voz preocupada: Tu tá saindo do país, tchê!

01/11/14 |
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Gosma

Precisões linguísticas da metereologia do sul do país: os estados (ou melhor, o estado) da Gosma.

Esses tempos, o nosso poeta Nei Lisboa afirmou que no Rio Grande do Sul temos cinco estações: Primavera, Verão, Outono, Inverno e Gosma. É por essas coisas que não se pode deixar ciência na mão de artista. Qualquer gaúcho percebe a imprecisão conceitual, o descaso pelo detalhe. Ele não faz a clara distinção que existe entre Gosma Quente, Gosma Fria e Instabilidade Gósmica.

Como talvez seja lido por estrangeiros, explico o que é Gosma. Claro que existe a umidade, mas ela é um estágio anterior, mais tênue, da Gosma. A umidade aumenta a sensação térmica, a Gosma a multiplica. Logo, a Gosma é quando realmente a coisa pega. Dizem que nos dias de Gosma se poderia deixar os peixes soltitos fora do aquário, só não recomendo porque ainda não testei.

O nome vem dos efeitos. Tudo, e quando digo tudo é tudo mesmo, fica recoberto por uma camada fina e pegajosa, uma fase anterior ao bolor, um bolor líquido. Você lava o cabelo e duas horas depois parece que não o lava há uma semana? É dia de Gosma. Dói a cicatriz do nono? É Gosma. Nosso corpo sua mesmo que esteja muito frio? Gosma na certa.

Talvez outro conceito que atrapalhe os não nativos seja o conceito de Instabilidade Gósmica, que é quando o clima não se decide pela modalidade Gósmica e deixa o vivente indeciso entre bota ou alpargata. São os dias que o clima faz que vai, mas não vai e acaba indo na direção contrária a que pensamos. A Instabilidade Gósmica, também chamada de Gosma Oscilante, é o momento Gósmico bipolar em que as Gosmas freneticamente se alternam.

Portanto, se você quer entender o nosso clima tem que partir do básico: temos sete estações no estado. E elas sucedem como em todos os lugares, mas aqui que podem rodar várias no mesmo dia, quando não todas.

Difícil é fazer os outros nos entenderem. Sabe aquele desânimo que bate quando um amigo de fora está para vir e nos pergunta: o que que levo de roupa? A gente tem que dizer: tudo! Claro, existem parâmetros básicos: não precisa de japona em janeiro, como não é preciso trazer Havaianas (aquele chinelo de borracha brasileiro que infelizmente pegou por aqui) em julho, mas fora isso, vai que é uns dias de Gosma, melhor estar prevenido. Em resumo, vem moda, sai moda, o que não muda é que gaúcho se veste como uma cebola, em uma sucessão de camadas que podem ser retiradas e recolocadas ao longo do dia.

É equivocado dizer que o Cléo Kuhn não acerta. Ele acerta, apenas não se rende aos conceitos locais. Ele se sente no dever de usar o vocabulário comum, da meteorologia tradicional, utilizada no resto do mundo e não afina a sintonia do vocabulário correto para nosso estado. Dissesse ele: “olha gente, hoje vem muita Gosma”. Nem precisaria dizer qual, a gente já entende que é para se precaver para tudo.

23/10/14 |
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Tema atrasado

Os temas atrasam, mas professores marcantes sempre chegam em boa hora!

Só havia uma coisa pior do que ouvir o som do Fantástico anunciando que o fim de semana acabou, era lembrar que eu não tinha feito o tema de casa. Minha procrastinação com temas era crônica, mas com as redações eu levava essa autotortura ao máximo. No meu tempo de ginásio era costume, os professores de português pediam a maldita redação semanal. Eu a escrevia mergulhado na angustia do ocaso dominical, com um olho na TV e a orelha no futebol do rádio.

O resto da lição de casa era difícil, mas ao menos era objetivo: faça isso responda aquilo, calcule a circunferência da tangente da hipotenusa e dos seus dois filhos, os catetos. Mas redações tornavam o pior momento da semana em um inferno ainda mais quente: era necessário criar do nada. A letra crescia para ocupar as trinta linhas requeridas. Lançava a mão de parágrafos a cada momento, sabendo bem paragrafar dava para comer até duas linhas. Eu tinha inúmeras artimanhas. Já não sabia se estudava português ou matemática de tanto contabilizar espaço. Sabia de cor uma espécie de tabuada do trinta: fiz doze faltam dezoito.

Quando larguei da fórmula: começo meio e fim e das trinta linhas regulares aconteceu o momento mágico em que a tarefa virou. Comecei a gostar de escrever. A escrita não nasceu comigo, estas linhas que você está lendo existem graças à perseverança escolar e à insistência e correções dos meus professores.

Cada época tem a sua ideologia, um sistema de crenças que não nos damos conta. É invisível como o ar que respiramos, e a vivemos como se fosse a essência da natureza humana. Uma das atuais é o “eu me fiz por mim mesmo”. Ideia que esconde o quanto somos produto de uma história feita da dedicação de nossos pais, parentes, do acaso feliz de bons amigos e colegas. Somos o que somos graças aos outros.

Claro, em certo momento tomamos nas mãos o que fizeram de nós e fundamos uma trajetória. Mesmo assim seguimos com apoio, empurrões e elogios, mas tendemos a esquecer o que recebemos e adoramos dizer que desde cedo pegamos no facão e fizemos sozinhos o nosso caminho na selva. Minimizamos o que ganhamos e superestimamos nossos feitos. Não há maldade nisso, ninguém está mentindo, é assim que hoje nos concebemos. Isso é um subproduto do viés individualista que dá o tom do mundo atual. Lembramos dos outros só quando damos errado, então somos infelizes vítimas de cuidadores opressivos ou relapsos.

Eu tive a felicidade de ter bons mestres e hoje escrevo para agradecer a eles atrasado. O dia dos professores era ontem, mas entreguei tantos temas depois do prazo e eles aceitaram. Vão me perdoar o parabéns com um atrasozinho de nada. Prometo da próxima vez entregar na data. Prometo mesmo. Juro!

18/10/14 |
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