Psicanálise
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Por que tantos peregrinaram ao ônibus da história “Na natureza selvagem”?

Qual o fascínio para os adolescentes da jornada de Chris ao Alaska?

O ônibus de “Na natureza selvagem” não está mais na natureza selvagem.
Recentemente, um helicóptero da Guarda Nacional do Exército do Alasca removeu o lendário ônibus onde Christopher McCandless encontrou o triste fim da sua jornada de filosofias e aventuras. O local tornara-se meca de perigosas peregrinações, de pessoas identificadas com sua história. Foram tantos os extraviados, resgatados com dificuldade, tendo havido inclusive casos de óbito, que as autoridades tiveram que remover esse “monumento”. O que foram tantos procurar em meio à inóspita paisagem alasquiana? Em nosso livro, “Adolescência em cartaz” dedicamos um capítulo a esse personagem, que existiu na realidade e tornou-se uma das grandes fantasias sobre a juventude. Abaixo, alguns excertos:

“Os alasquianos habitam um território no extremo dos Estados Unidos que, pela sua beleza e natureza hostil, desperta a imaginação de pessoas de outras regiões. Eles estão habituados à aparição de peregrinos e Christopher McCandless, um rapaz de 24 anos, oriundo de uma família classe média alta de Annandale, Virginia, foi mais um deles. Eles os vêm com certo desprezo, como assombrações que insistem em passar por ali, impulsionados por fantasias a respeito de si e do lugar e assim os descrevem: ‘jovens idealistas, cheios de energia, que se superestimaram, subestimaram a região e acabaram em dificuldade (…) há um bocado desses tipos perambulando pelo estado, tão parecidos que são quase um clichê coletivo.’”(…)

A região atrai todo tipo de aventureiro, em geral jovens, submetendo-se à rudeza da experiência como rito de passagem. A fibra necessária para enfrentar tal provação, os sofrimentos físicos e a superação dos medos, a solidão em que em geral essas viagens são feitas, se justificam na expectativa de consolidar uma identidade e de corroborar um valor que eles próprios possam acreditar que têm. (…)

“Vale questionar-se sobre as razões de por que a trajetória desse rapaz tenha se tornado livro, filme, motivo de debates acalorados, assim como inspirador de identificação entre aqueles que sequer gostam de aventuras na natureza radicais na natureza. Apesar de seus desejos eremitas, o autonomeado Alex era um entusiasta contador de sua própria história e de seus ideais, deixou suas andanças documentadas, além de comentários sobre as fontes literárias em que fundamentava suas crenças. A última aventura, por ser desastrada e dramática, tomou o centro da narrativa e o ângulo pelo qual o enxergamos, mas ele foi muito mais do que isso. Sua morte trágica, por inanição no Alasca, nos legou uma coleção de enigmas. Enigmais e pistas a respeito de como teria sido o encontro do jovem com a natureza e a morte. Sua tragédia real, fortemente inspirada na literatura avizinhou-se da poesia. Por isso os escritor Krakauer, o cineasta Sean Pen e neste momento nós também, assim como tantos outros, seguimos ocupando-nos dessa história, que se tornou mítica.
São poucos os que têm coragem de fazer a experiência radical de largar a vida comum e sair ao encontro da aventura, principalmente hoje, em que há uma enorme adesão a uma vida reclusa onde pode-se viver experiências meramente virtuais. Muitos desses jovens acomodados sonham com os verdadeiros riscos e as genuínas vivências de quem abriu mão de todas as comodidades e da segurança por opção, e não em nome de uma causa ou missão, ou ainda por ter sido convocado.
O sucesso do livro não é outra coisa que combustível para essa fantasia – e isso nos revela o desejo de fuga como uma das dimensões da adolescência. Na prática pode ser a migração para outra geografia, para outra cultura, mas, em muitos casos, como neste, para fora da cultura propriamente dita, como se a natureza o fosse purificar da sua história, como se ela fosse a única alteridade respeitável. Esta é a dramática história de um jovem buscando refundar-se com o mínimo apoio possível, longe de tudo e de todos.” (…)
“O interessante em estar na estrada é viver sem rumo, o que importa é o meio não o fim, não se vai a lugar algum, apenas se vai. Talvez possa ser lido como uma colocação em ato de uma das grandes questões dessa fase: como não sabem para onde ir, o caminho se faz ao andar. Assim vivem um eterno presente, esquivando-se da pergunta que ronda: o que vais fazer da tua vida? A pergunta é simples, singela, mas para muitos ela abre uma porta de pavor, sentem-se incapazes de responder e, imaturos demais para as exigências do mundo. Fogem da questão e de quem eles supõe que a fariam.
A tarefa de tornar-se alguém começa com uma incontornável alienação à história familiar, mesmo que os pais tentem ser democráticos. Subjetivação e sujeição se confundem, parecem o mesmo movimento. Tomar nas próprias mãos o resultado do que fizeram conosco e fazer algo peculiar, é a tarefa que cabe à adolescência desde que o individualismo tornou-se dominante. A revolta contra essa marca primeira de dependência, que tinge-se de uma espécie de mágoa por ter sido submetido a eles, volta com toda força nessa idade. Na verdade, eis a fonte daquilo que os adultos estão sempre denunciando como uma ingratidão dos mais jovens: deveriam reconhecer que quando eram desamparados seus cuidadores lhes dispensaram tudo o que precisaram para crescer. Porém, infelizmente, a gratidão nesse caso viria com o preço de continuar preso dentro de casa, agora pagando a conta. É por isso que os adolescentes não sentem como legítimos os pilares em que se sustentam, precisam relativizá-los, questioná-los e fantasiar uma espécie de auto-fundação.
Sua questão é como trocar os próprios fundamentos sem que a casa venha abaixo. É uma operação complexa, que exige livrar-se dos pais da infância, na tentativa de abafar suas reais ou supostas exigências. É preciso matá-los simbolicamente e sair vivo da empreitada. Fugir de casa ou partir e deixar de dar e receber notícias é uma das tantas maneiras de desfazer-se dos pais. Essa é a escolha de Alex. Por isso, no caso dele, como no de tantas outras fugas de casa, o sofrimento dos pais não é considerado. É quase como se eles nunca tivessem existido, o propósito é exatamente esse. Com a maior parte das pessoas que Alex interage durante suas andanças repete o ciclo, encontra, faz um vínculo forte e parte sem dar adeus, sem que o outro possa proferir sequer uma palavra de despedida. Mais que ir embora, ele sumia, essa era sua marca.”(…)
“Antes de pensar o que o pôs a correr de seu habitat de origem, convém entendermos melhor em que direção apontava seu desejo. O andarilho Alex foi admirado não somente pela ousadia do seu desprendimento, mas sim pelo fato de que durante aqueles dois anos construiu uma existência coerente com seu pensamento romântico radical e morreu em consequência disso. Ele é visto como se fosse o herói de uma guerra pessoal, capaz de sacrificar-se pela sua crença.
Mas examinemos seu pensamento, de modo em que ele revele o que haveria de admirável para aqueles que leram sobre sua história: afinal o que um jovem buscaria na natureza? Percebemos que ela representa para ele uma alteridade radical, algo a ser conquistado, vencido. Mas por que a experiência frente a seus rigores seria capaz de funcionar como uma prova convincente? E de que valor? E para quem?
Os pais podem até ser muito generosos, mas querem ser recompensados pelos seus investimentos amorosos. Ser filho de alguém é carregar o peso da aposta que se fez em nosso nome. De alguma forma sempre vem a mensagem de que devemos pagar pelo lugar simbólico que ocupamos em uma linhagem. A força das marcas familiares que fundaram o sujeito é sentida particularmente na adolescência, é o fim do jantar e o momento de receber a conta. A cultura dos pais, seus sonhos e projetos, seus erros e acertos vão impor-se ao ser que eles criaram, querem que ele se realize nos termos dos seus valores. Muitas vezes o desejo parental pode não ser de continuidade, não é nada incomum que seja até de rompimento: vá além, faça o que não consegui, enfrente o que me derrotou, escolha melhor do que eu fiz. Outras, é de mera continuidade, mas não importa o tom, sempre soará opressivo e, quanto maiores os recursos psíquicos do jovem, menos pesada será a consciência e a desilusão de concluir que o amor dos pais nunca foi incondicional.
Já a natureza, embora na prática suas exigências possam ser cruéis, parece ser equânime e desinteressada. Estar sozinho em lugares extremos pode produzir momentos de euforia, numa comunhão íntima com a beleza da paisagem, muitos dos quais foram relatados por Alex. Isso se você estiver disposto às agruras necessárias para chegar e permanecer ali. Os que conseguem sentem-se vitoriosos, mas trata-se de uma conquista em que não se cedeu ao desejo de ninguém, não exigiu troca de favores, não se negociaram crenças nem houve medições de prestígio. As exigências de uma montanha, um deserto, uma grande onda, a imensidão do oceano, de uma floresta cheia de ciladas, serão iguais para todos os que ingressarem nelas. O que muda são os recursos com os quais cada um entra na cena. Por isso era fundamental para Alex não possuir nada que diminuísse os riscos, que amenizasse as exigências do lugar, era uma forma de aumentar a magnitude de uma experiência que ele considerava pura e essencial.
Acreditamos que, pela semelhança das experiências a que se lançaram o “personagem” McCandless e o escritor Krakauer (autor do livro responsável pelo resgate do personagem), podemos tomá-los, para efeito de reflexão, como duas vozes de pensamentos similares. A pesquisa do jornalista o levou a citar trechos dos autores preferidos do seu personagem e, entre eles, temos a seguinte passagem de Caninos Brancos, publicado em 1906 por Jack London:
“A própria terra era uma desolação sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que seu espírito não era nem mesmo o da tristeza. (…) Era a imperiosa e incomunicável sabedoria da eternidade rindo da futilidade da vida e do esforço de viver. Era a Natureza, a selvagem, a de coração gélido, a Natureza das Terras do Norte.”
O livro de London contrasta o heroísmo natural das criaturas selvagens, assim como do valor intrínseco da beleza da paisagem do Alasca, com a mesquinhez, a incompreensão dos homens corrompidos em nome do ouro. Estes últimos, segundo as críticas que Chris dirigia a seus pais e seu modo de vida, são representantes do sistema de valores erguido em torno do dinheiro. Seus pais se sacrificaram muito para subir na vida e, como acontece em todas as famílias, não deixavam de adular o valor de suas conquistas, no caso em termos de poder aquisitivo. O filho negou-se a ganhar dinheiro, insistia em que o ouro não media nem provava o valor de ninguém. Já a natureza, esta sim pareceria uma juíza legítima e a ela ele se entregou.”

O dono do mundo

Ele que tinha tão nada, era louco de pensar que possuía tudo… (sobre psicóticos na rua)

Passeava com minha filha na Cidade Baixa e encontramos o dono do mundo. Pelo menos era o que ele gritava aos passantes, desde a calçada onde estava estirado. “– O dono do mundo sou eu, não são os americanos, não são os japoneses, não são os alemães, eu sou o dono…” Além de reclamar para si a posse do planeta, xingava a todos, delimitando sonoramente seu reino. Passamos reto, pisando leve em seus domínios. Nós sabíamos do que se tratava, já trabalhamos com pessoas assim. Discutimos se ele estaria melhor num hospício.

A abertura dos manicômios trouxe para as ruas uma população que permanecia oculta. De uns anos para cá aumentou o número de loucos de rua entre os mendigos habituais. Nossa reação automática é pensar que isso foi um erro, na rua eles estão sem ajuda, sem terapia, sem medicação. Estão misturados ao lixo, com que provavelmente estão identificados, ocupando um lugar de dejeto social.

O certo é que não estavam melhores antes, mesmo se internados numa das poucas boas instituições, e se esse abrigo fosse dotado de bons profissionais. Os antigos manicômios eram museus de peças humanas falhadas ocultas do nosso olhar. É duro reconhecer uma impotência, mas nós não temos uma resposta a não ser paliativa para certos desistentes da nossa sociedade. Nesses casos extremos tratamentos que visem abordagens corretivas são inúteis. Para ajudá-los só nos resta acompanhá-los e tentar fazê-los sentir-se considerados, como outro cidadão qualquer.

Sua postura no mundo, sua doença – pessoalmente prefiro evitar essa palavra pois não dá conta do problema – é recusá-lo em bloco. Eles desistiram de nós. Para tanto fundam um novo mundo, uma nova lógica. Nesse espaço imaginário eles vencem. Querer convencê-los do contrário é tão contraproducente como impossível. É mais fácil convencer alguém são de que seria louco, do que arranhar minimamente esses sistema delirantes.

O único motivo para mantê-los institucionalizados seria para não tropeçarmos neles e nos depararmos com as fronteiras sinistras da condição humana. A internação era boa para nós, pois a loucura nos constrange e desconcerta. Encerrados eles definham ainda mais, são privados dos cenários do mundo e de nós. Eles não recusam nossa presença, é da nossa lógica que eles prescindem. Gostam de circular nesse mundo, mesmo sabendo que perderam a guerra de impor seu sentido.

Se você duvida sobre minha opinião e testemunho (conheci muitos dos antigos hospícios) recomendo o livro Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex (Ed. Geração, 2013). Obra para estômagos fortes, conta histórias de internados. Esses mesmos que hoje estão nas ruas. Depois me diga o que é pior.

Oráculo de Delfos

A verdade é que as perguntas são mais importantes e reveladoras do que as respostas.

No mundo grego antigo, histórico e mitológico, os impasses se resolviam consultando um oráculo. O mais famoso foi o de Delfos. De lá, por uma boca humana, mas inspirada por Apolo, saíam os vaticínios que resolviam as questões.

Calhou poder visitar Delfos. Sério, escrevo desde a Grécia. Tenho uma antiga paixão pela cultura helênica, devo ter sido batizado com água benta fora da validade, minha reverência ao sagrado sempre foi pagã. Quis o destino (já que estamos no tema), que saísse um safari cultural para cá com um bônus extra. Vim com o amigo, exímio caçador de mitos e domador de histórias, Cláudio Moreno.

Infelizmente os deuses abandonaram Delfos, mas a marcas da sua passagem foram o suficientes para me deixar comovido. Ainda existe engastada nas pedras das ruínas resto de uma força mágica perturbadora. Os gregos acreditavam que lá era o umbigo do mundo, a visita me fez concordar.

Quando ficou certo que a viagem sairia, comecei a brincar com os amigos: inquiria o que eles queriam que eu perguntasse ao oráculo em seu nome. Alguns, que entravam no jogo, revelavam o que de mais sério lhes afligia: devo ficar com fulano? Sigo nesse curso, ou vou fazer o que gosto? Ainda dá tempo de largar esse emprego chato e fazer outra coisa legal? E assim por diante.

Nada do que eu não esteja acostumado. A psicanálise tem muito de oráculo. Afinal, é assim que muitos pacientes nos chegam, numa encruzilhada, precisando de orientação. Claro, eu e meus colegas psi não somos guias. De fato não sabemos o que é melhor para ninguém, mas ajudamos a suportar a dúvida, propiciamos o tempo e o diálogo necessários para pensar juntos saídas para o impasse.

O oráculo faz pose de quem indica o caminho, mas, se formos examinar as suas mensagens, vemos que sempre foram enigmas, charadas, frases oblíquas que podem ser lidas de qualquer forma. Cabe a quem que o consultou interpretar o que lhe é dito. Voltamos ao ponto inaugural: a verdade não está fora do sujeito. Há uma solidão incontornável quando lidamos com nossos desejos e indagaçōes. Ninguém pode nos poupar de escolher uma direção e ser responsável por esse passo.

Mas não é essa a essência do humano: atravessar a vida em busca de repostas? Se não vendemos a alma para algum discurso que promete a verdade, passamos a existência pastoreando incertezas. No que ajuda então um oráculo?

A questão, difícil de entender num primeiro momento, é que quase sempre a pergunta é mais importante que a resposta. São as dúvidas que nos movem, mais que as certezas. Essas raramente chegam e nem por isso deixamos de viver, aliás, exatamente por isso seguimos nosso curso. A certeza é terminal, fecha questões. Só a humildade da ignorância é vital. Avança no território da existência quem sabe circunscrever melhor o seu impasse, quem intui o que quer saber, quem pondera das vantagens e desvantagens de cada caminho. A bússola da vida são as boas perguntas. Os oráculos e seus sucedâneos, incluindo os psicanalistas, têm a sabedoria de apenas relançar a questão para que a aprimoremos.

Nomeando o sofrimento

Resenha do “Livro Negro da Psicopatologia”, sobre o caráter inclassificável do sofrimento psíquico.


Em 1992 Richard P. Bentall escreveu um artigo para o Journal of Medical Ethics, seu intuito era propor que a felicidade fosse reconhecida como um transtorno psiquiátrico e enquadrada nas futuras classificações. Afinal, segundo ele, esse estado é estatisticamente anormal, sendo acompanhado por alguns sintomas, entre eles uma disfunção cognitiva, no sentido de uma percepção distorcida da realidade. As pessoas afetadas apresentam um quadro caracterizado pelo estado de euforia sem uma contrapartida real, o que pode ser uma desvantagem adaptativa. Não raro, nota-se uma relação elevada desse estado com comportamentos maníacos, obesidade e ingestão de álcool. Talvez, argumenta o doutor, seja reflexo de uma anomalia do sistema nervoso central, um estado neurobiológico de desinibição. O fato dessas pessoas não se considerarem doentes é irrelevante, pois é assim em muitos casos, nos quais os pacientes geralmente não têm crítica de seus estados patológicos. Por fim, exorta seus colegas a encontrar tratamento adequado a esse estado mórbido que quer chamar de: major affective, pleasant type.

Bentall utilizou em sua argumentação, para enquadrar a felicidade como distúrbio, o mesmo método que funda as categorias psiquiátricas que estamos acostumados a usar. Talvez esse artigo irônico seja o melhor meio para contestar a fragilidade conceitual que alicerça a nosografia que usamos.

As classificações das doenças mentais surgiram para que os profissionais das áreas da saúde mental pudessem falar entre si sobre os pacientes e para, de alguma forma, poder prever certa evolução. Ou ainda porque um raciocínio dessa natureza se tornou necessário para efeitos sociais: como para fazer estatísticas, pensar políticas públicas, ou ainda normatizar coberturas por planos de saúde. O dilema é que essa busca por uma classificação científica inclinou os esforços da psiquiatria numa direção pouco produtiva no sentido da evolução da cura.

De fato, atribuir um nome ao sofrimento não necessariamente ajuda a combatê-lo. Embora seja fundamental que o profissional de saúde mental esteja sempre atento ao quadro com o qual está lidando e trabalhe em consonância com suas hipóteses clínicas, um diagnóstico preciso (considerando que isso seja possível), ao contrário de todos os quadros somáticos, não é imprescindível para um bom tratamento. Um diagnóstico aproximado é uma bússola suficiente, até porque deixa o profissional mais atento para sutilezas e mudanças bruscas. E por uma outra razão central: é simplesmente impossível enquadrar e classificar descritiva e meticulosamente as formas de sofrimento humano, podemos apenas ter aproximações, nada mais.

Esse espírito classificatório induziu, mesmo que os idealizadores dessas descrições não pensem com essa estreiteza, para uma visão essencialista da doença mental: passa a idéia que se alguém tem certa doença está fadado a um funcionamento daquela ordem; que o quadro seria uma forma de ser daquele sujeito, que cada sofrimento teria uma forma standard de se manifestar. Os diagnósticos na verdade são aproximações provisórias de formas de funcionamento mental, e não raro são mutantes. Embora muitos pacientes mantenham certa lógica por um tempo, outros funcionam de uma maneira agora e outra amanhã e o quadro de ontem não necessariamente era um desses dois. Um diagnóstico seria mais uma forma de “estar” não de “ser”, por isso a fluidez faz parte. O melhor é usar um diagnóstico como se usa um andaime numa obra, aquilo não faz parte realmente e será retirado no fim. Apenas ajuda (ao terapeuta, e raro ao paciente, enquanto uma direção medianamente confiável) durante o processo de cura em curso.

Atribuir um nome ao sofrimento acarreta ainda outro efeito colateral negativo: quem sofre geralmente passa por uma crise de identidade, portanto se alguém, numa posição de poder social, diz que ele é tal coisa, é bem provável que ele adira ao rótulo independente da adequação deste à sua realidade. Afinal, é melhor ter um nome para uma doença do que nada. Embora a nomeação forneça um ganho rápido aplacando a angústia, a falta de significação para sua dor, logo após faz resistência aos outros passos, ancorando o paciente numa formação imaginária de sentido, e acaba atrapalhando a evolução da cura. Já a recusa a dar um nome ao sofrimento, quando isso é possível, lança o sujeito numa busca própria por definir quem é, o que de fato está acontecendo, e qual seu caminho para sair da crise.

As formas do sofrimento são diferentes porque os humanos são extraordinariamente diversos, o que torna a empresa classificatória desanimadora. Não obstante, certos profissionais seguiram em frente, mas para conseguir lograr uma lógica operante tiveram que retirar variáveis dessa equação, especialmente os vetores históricos e sociais. Por exemplo, pense em entender o sofrimento atual sem levar em conta os fatores como a mudança no equilíbrio de poder dos sexos e das formas de gozar, que retirou todas as (falsas) certezas que nos apoiavam até meados do findo século XX; a família, fonte ancestral de apoio psíquico, sofreu uma revolução que esfarelou as formas tradicionais em apenas duas gerações; o outro arrimo que era a religião perdeu muito de sua força, ou ainda a invenção da adolescência que tomou a sua forma no pós-guerra e coloca num limbo provisório, e em pé de guerra, uma parte da população. Sem falar do culto ao corpo e à saúde, ou ainda a busca da felicidade a qualquer preço, que se constitui no andar debaixo do momento de forte drogadição que vivemos. Suprimindo variáveis como essas, o resultado é uma visão de homem onde ele se parece a uma máquina neural, como se fosse possível uma forma de ser atemporal, apenas uma natureza básica imutável que apenas adapta-se à força das ondas. Visando a objetividade apagou-se a fala, pergunta-se apenas por comportamentos, humores, por sintomas visíveis e dessa massa de informações tenta se extrair um diagnóstico.

Desnecessário lembrar que esse tipo de raciocínio tende a ser fortemente adaptativo, pois, se perdemos a crítica da sociedade e das instituições onde estamos inseridos, é como se todos devêssemos ou pudéssemos nos adequar a qualquer sociedade em qualquer momento. Longe de ser um desvio epistemológico, esse ethos classificatório é a expressão direta da forma utilitarista e mercantilista de pensar o homem, ou seja, ele que se adapte e seja útil, que cumpra sua função na engrenagem social.

O elo que falta dessa lógica é a medicação. Reduzido a doença mental a um cérebro problemático, ela foi traduzida como um déficit químico, portanto basta descobrir um remédio específico para cada quadro. Recém começa a ser desvelada a verdadeira força da indústria farmacêutica nesse atual panorama, vendida como ciência de ponta, o envolvimento dos pesquisadores com tal indústria deixa muito a pensar o quanto se expressa a força de um lobby e onde começa mesmo a ciência. A medicação trouxe benefícios inestimáveis para todos, mas seus verdadeiros benefícios são superdimensionados. Aliás, se o ganho com as medicações fossem realmente revolucionários, viveríamos um momento de declínio dos quadros de sofrimento, quando estamos constatando é um aumento de todas patologias. Algo não anda bem nas nossas estratégias e no setor de armamentos, estamos perdendo a guerra.

Começaram sair livros e artigos que desafinam o consenso da psicopatologia atual. Destaco o livro recém lançado cuja leitura resumo nas linhas acima: O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea (Ed. Via Lettera, 2011) de Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik (orgs.) Nove autores brasileiros, nove argentinos, uma mexicana e uma francesa, trazem sua experiência com as categorias psiquiátricas. Entre outros, escrevem Maria Rita Kehl, Ricardo Goldenberg, e aqui, de Porto Alegre, contribuem Nilson Sibemberg e Ana Costa. O sofrimento humano dá muito que falar, mas nem sempre a minúcia descritiva e classificatória lança luz sobre um campo obscuro.

Publicado no ZH Cultura, 24.09.2011

Lacan, que hoje faria 110 anos

sobre o legado lacaniano


Lacan nasceu com o século passado (13 de abril de1901, viveu até 9 de setembro de 1981) e viveu as contradições desse atribulado período. Originário de uma tradicional família católica, formou-se em medicina. Depois se encaminhou para a psiquiatria e do encontro com essa, passando pelo surrealismo, chegou na psicanálise, que nunca mais foi a mesma.

Podemos dizer que como a histeria estava para Freud, a paranóia esteve para Lacan. Sua tese de doutorado foi baseada no caso de uma paciente que tentara assassinar uma atriz (caso Aimée). Tocado pelo tema da loucura, na época ainda buscou explicações para um crime que mobilizou a França: as irmãs Papin, duas criadas, mulheres aparentemente pacatas, que assassinam e desfiguraram suas patroas.

Seu texto sobre o “Estádio do espelho”, onde examina com mais atenção a contribuição do olhar do outro para a formação do eu, foi fundador de suas próprias teorias. Esse mesmo eu é, para Lacan, uma espécie de ficção, eixo de ilusão do que acreditamos ser, portanto peça chave do nosso narcisismo e centro da nossa alienação.

Porém, seu lado mais polêmico incluía uma crítica às instituições psicanalíticas, herdeiras da tradição freudiana. Ele julgava que importantes aspectos teóricos estavam sendo esquecidos, especialmente que a psicanálise era a cura pela palavra. Seu estilo provocador e irreverente, aliado a algumas maneiras não ortodoxas de atender os pacientes, especialmente na questão do tempo da sessão, lhe valeram a expulsão da Sociedade Psicanalítica de Paris, ligada a IPA. Não lhe restou outro caminho do que, com alguns alunos (como Françoise Dolto, Serge Leclaire, Maud e Octave Mannoni, François Perrier e Mostapha Safouan entre outros) fundar outro centro de referência, a Escola Freudiana de Paris. Essa questão não é mero folclore de uma personalidade rebelde. O que Lacan sempre quis nos transmitir era que a psicanálise para operar necessita de certa ruptura com o estabelecido, e as sessões de mesma duração poderiam acomodar o discurso. Os vários relatos dos seus inúmeros analisandos nos mostram sempre o desconcerto a que ele os submetia, contribuindo para que eles se reposicionassem frente ao que diziam. Arriscado, mas Lacan nunca fazia as escolhas fáceis.

Seu estilo de ensino tomava o mesmo caminho. Adorava frases bombásticas como: “a relação sexual não existe”. Só queria chamar a atenção para algo bem simples, que teimamos em esquecer: não nos relacionamos sexualmente com o outro; de fato estamos em presença do outro, mas cada um traz sua fantasia sexual para a cena. Quando as fantasias se alinham temos a ilusão dessa relação, mas de fato é um jogo ao mesmo tempo solitário e compartilhado. Por isso há tantos desentendimentos em relação à sexualidade.

A psicanálise nunca está pronta, por isso coube a Lacan dialogar com o saber do seu tempo, como Freud havia feito. As pessoas mudam, a família não é a mesma e, portanto, as formas de organização e sofrimento tampouco. Como Lacan acreditava que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, os seus principais interlocutores teriam que ser os lingüistas da época, no caso, Saussure, Jacobson e Benveniste. Sua obra também foi bastante marcada pelo estruturalismo de Lévi-Strauss, com o qual insistiu na importância do registro do simbólico como determinante da nossa condição.

Fora da psicanálise Lacan foi um crítico duro do século XX, considerava, por exemplo, a ciência uma ideologia da supressão do sujeito. Não desprezava seus avanços práticos, mas apontava para ciladas, particularmente quando usada nas ciências humanas. Para ele, a neutralidade é impossível, acedemos ao objeto de um estudo permeados por nossos desejos e fantasmas, nossa subjetividade está sempre em jogo. Fica difícil, assim, assumir uma posição neutra frente aos problemas. Aliás a neutralidade foi uma atitude inexistente para esse homem, que imprimiu seu estilo irriquieto, personalista e criativo por onde passou. A melhor forma de homenageá-lo é herdar sua inquietude.

13/04/11 |
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Criaturas dos pesadelos

Sobre o pesadelo e suas representações monstruosas

Freud nos forneceu uma fórmula clássica para explicar a origem dos sonhos: são fabricados a partir dos nossos desejos ocultos. Os pensamentos que não deixamos vir à consciência durante o dia encontram expressão à noite. Juntamos cacos de lembranças do dia (reminiscências diurnas) com intenções não resolvidas e aí está o sonho. Ora, uma objeção óbvia a esse esquema é: como ficam os pesadelos? Afinal, desejamos nos atormentar? O que precisamos nos dar conta é que, ao contrário do que supõe o senso comum, a possibilidade da realização de nossos desejos pode nos levar mais facilmente ao inferno do que ao paraíso. A palavra “desejo” vem associada geralmente ao prazer e isso nos confunde, mas é preciso entender o Wunsch freudiano a partir de um leque maior de significados: como aspiração, intenção, voto, vontade.

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01/12/05 |
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A cena primária do psicanalista

Hipótese sobre se existiria uma cena primária que predisporia alguém a ser um analista

O que faz alguém querer ser psicanalista? Essa sempre foi uma pergunta difícil, e certamente sem uma resposta padrão, provavelmente teríamos que tomar a questão de forma individual, um a um. Mas uma pergunta que poderíamos nos colocar é: existiria algum fator especial que predisporia alguém, além duma neurose tenaz é claro, a ser psicanalista?

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18/03/05 |
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Ora direis ouvir os sonhos…

Comentários sobre Interpretação dos Sonhos

Não é um livro fácil e não sei se é um livro para todos. Explico-me: julgo que a resistência ao livro vem pelo estilo de clínica que é implementada. Acredito que a grande contribuição da Interpretação dos Sonhos é este estilo de intervenção. Não é difícil desdobrar desses inúmeros relatos de sonhos num savoir faire clínico. Uma compreensão que o afazer do psicanalista está na sutileza da escuta do significante, está na dureza das letras, está em rastrear as poucas pistas que o inconsciente nos deixa. Quem nunca interpretou um sonho seu, quem não lembra deles, quem não consegue se conectar com o seu material onírico não vai se conectar com o livro.

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19/01/00 |
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Dificuldades inerentes ao tratamento da psicose

Inventário dos problemas enfrentados por quem atende psicóticos

O título pode não ser muito feliz nem muito poético, mas é transparente, é sincero, é exatamente o que quero desenvolver, ou seja, o que faz resistência à direção da cura na psicose. Tanto no cotidiano clínico quanto os aspectos sociais envolvidos num tratamento.

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10/01/00 |
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Andarilhos, mendigos e loucos

Reflexões sobre a subjetividade dos andarilhos e mendigos

Jairo Sette, 41 anos, ex-bailarino, vagueia há seis anos pelas cidades de São Paulo, sem lugar fixo, vivendo como mendigo. Não tinha uma vida fácil, não é fácil viver da dança; mas para quem é fácil a vida? Um dia saiu dizendo que ia viajar e nunca mais foi visto. A família, posteriormente, o localizou vivendo como mendigo nas ruas de São Paulo mas ele rejeitou a aproximação. Outras pessoas também tentaram, mas ele rejeita qualquer aproximação, diz que abraçou a miséria e tem que continuar assim.

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30/04/98 |