Como vai se chamar a cinderela do novo século?

Texto sobre mulheres guerreiras e imagens da mulher na ficção

 Já era tempo do reinado de Cinderela chegar ao fim. Cinderela representava o sonho de todas as mulheres por ser o único possível, só lhes restava esperar que um homem, um príncipe, viesse para  levá-las ao altar. Vida de mulher consistia em sair do jugo paterno para o jugo matrimonial e as que conseguiam isso ainda podiam considerar-se abençoadas. O mundo mudou e os sonhos mudaram, timidamente aliás, pois os sonhos parecem ter uma inércia maior do que a realidade.

Se Cinderela está se aposentando como vamos chamar a nova forma do ideal feminino? Que padrão vamos oferecer a crianças e adolescentes como espelho para sonhar? Aposto num nome: Lara Croft, se não for ela não vai ser alguém muito diferente. Para quem ainda não a conhece, trata-se de uma aristocrata, criada como filha de Lorde, que tinha tudo para, mesmo nos dias de hoje, transitar do berço para o casamento tranquilamente. Neste trajeto uma fatalidade: seu avião cai no Himalaia onde ela, única sobrevivente, aprende a depender apenas de sí mesma para salvar-se num ambiente hostil. Dali em diante compreende que não mais poderá levar uma vida pacata, torna-se arqueóloga, escreve livros e, de posse de seus dotes físicos generosos, luta contra uma série de inimigos no “Tomb Rider”, game em que em que vive, para delícia de seus jogadores habituais. Lara Croft é uma boneca virtual, forte como Rambo, curiosa e ousada como Indiana Jones, intelectualizada como um enciclopedista, atraente e tantas coisas mais…. 

Cinderela sai das cinzas, da feiura do ambiente doméstico, para brilhar no baile. Neste espaço social permitido, podia incumbir-se da única função pública que lhe cabia: arranjar marido. A escolha do príncipe arrebata-a da miserável cozinha, ressurge de suas cinzas agora princesa ou rainha.

Lara também passa por provações, mas anda em sentido contrário, ao invés da imobilidade do destino feminino, a errância geográfica; ao invés da fragilidade, as qualidades de guerreira; ao invés da busca da segurança do amor e do ambiente doméstico, o desprezo por tudo o que signifique qualquer tipo de dependência. Levamos um ideal conosco para transpor o milênio, entramos com Cinderela, saímos com Lara. Mas não é nada tranquilo manter esta imagem.

Já fazem na verdade mais de 100 anos que a outra metade dos habitantes da terra, as mulheres, clamam por ocupar plenamente os espaços que nossa inteligência propiciou: o saber, a tecnologia, a política. Não é uma batalha, é uma longa guerra na qual ainda estamos envolvidos, e cada mulher sabe como o fantasma da “Amélia” ainda ronda seu ser, uma espécie de alter-ego, algum tipo de passado que cada mulher possui.

A mulher mudou, na sua esteira a ficção tem que se moldar a ela,  velhas histórias que traduziam o ideal feminino precisam ceder lugar a novas versões, queremos ser como Lara, mas o fantasma de Cinderela assombra a vida até mesmo das mais independentes.

Cinderela representou como ninguém a alma feminina clássica: beleza, virtude, resignação, mão caprichosas e a esperança de servir um homem. Ela deixava o egoísmo narcisista às tão desajeitadas filhas da madrasta, a verdadeira mulher não ostentava. Basta lembrar do dito “por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher”, para notar que à mulher restava ser grande apenas na sombra. O universo de realização de uma mulher podia até ser público, mas como celebração do privado: o casamento que fundava a família.

 A heroína virtual é uma caricatura, trata-se de uma boneca de computador, mas ideais são assim, toscos e irrealizávieis, por isso podemos usar Lara Croft como representante do novo sonho feminino.

Diferente de Lara, que é sem contradições, a mulher pós-cinderela é uma metamorfose ambulante. Sua complexidade pode ser sistematizada em três aspectos: primeiro, é uma verdadeira guerreira, tal qual um homem seria, mas é no amor que ela consagra sua vitória; segundo, torna-se legítima herdeira da tradição familiar, com uma filha mulher já é uma possível a continuação de uma linhagem; terceiro, é órfã de mãe, sua progenitora ou não compreende seu pensamento, ou tampouco pode guia-la por não ter mais parâmetros do que a filha.

O século XX, século denso e plural como poucos, será conhecido por muitas coisas no futuro, mas certamente também vai ser conhecido como o século da mulher. O acesso à educação tímidamente começou antes, mas foi nestes cem anos que as conquistas começaram a ser massivas. A mulher, até então, tinha três destinos: casar, ser religiosa ou prostituta. Esta classificação simplificada, revela que a identidade feminina estava nas mãos do amor de um homem ou, caso este faltasse, sempre restava o casamento com Jesus. O movimento feminino do privado ao público inicia tímidamente com nosso século. Inicialmente vestida de homem, a mulher explora, estuda, discursa. Foi preciso esperar que os homens fossem à guerra para que as saias pudessem colorir fábricas, universidades, laboratórios, protestos, meios de transporte, enfim a rua.

            Não faltaram em tempos anteriores mulheres diferentes, aquelas que dedicaram vidas a causas humanitárias, científicas, religiosas ou políticas. Estas aventureiras do destino feminino, outrora exceções, tornaram-se hoje a regra. Hoje os caminhos para a mulher são menos marcados, a reivindicação já não é tanto de novos espaços, mas que mais e mais mulheres possam ter liberdade de escolher a causa em nome da qual dedicar sua vida, seja ela social ou doméstica, pública ou privada, amorosa ou celibatária.

            Os contos de fada, que tantas gerações escutaram antes de dormir, precisam ser incluídos na bagagem da nova mulher, mas não mais daquele jeito. Já não são mais só contados, agora necessáriamente possuem imagens, o cinema faz parte desta transmissão de histórias.

            Existe um filme recente que tenta uma saída para Cinderela, chama-se: “Para sempre Cinderela”. No filme descobrimos que ela não era boba e submissa como pensávamos e sim inteligentíssima e letrada. A jovem orfã teve tempo de ser introduzida não só ao gosto pela leitura por seu pai, mas também ao uso das espadas, o resultado é uma moça muito moderna, cujo único problema é que talvez não possamos chamar de Cinderela tão simpática personagem.

             É preciso preparar as mulheres para a complexidade de seu novo papel, aí mais uma vez o cinema faz sua parte. Às mulheres principiantes este último ano foram oferecidos dois filmes: Mulan (estúdios Disney) e o menos comentado A Espada Mágica (estúdios Warner). Trazem trama similar: duas jovens são forçadas a percorrer um destino de guerreiras e o fazem com mestria. Mulan salva toda a China da dominação Mongol e a outra salva um rei que não é outro senão Arthur. Ambas passaram por revezes no começo, pois revelavam-se inadequadas para o casamento e as tarefas do obscuro papel destinado às mulheres. Antes de demonstrar seu surprendente desempenho na terra dos homens, afinal não há espaço mais masculino do que a guerra, passaram por um estado extremamente incômodo no qual não eram aceitas em nenhum dos mundos. Mulan é uma lenda chinesa da qual não conhecemos muitos paralelos no ocidente, apenas para situar em termos de literatura brasileira, temos nossa Diadorim passeando os impasses da nova mulher pelo Grande Sertão Veredas.

                A mulher tem seu próprio método para ir à guerra, não canta para espantar o medo, ela se apavora, desce ao abismo e sobe com consciência de seus limites. Curiosamente, sua recompensa para além da pompa e da glória, provém acima de tudo do amor. Assistimos pasmados à jovem Mulan sobrepor  em importância o amor de um jovem guerreiro e o perdão de seu pai pela travessura, à própria consagração de sua coragem na Praça Imperial. A glória por ela conquistada seria suficiente para inebriar qualquer homem, mas para a mulher nada significa sem o amor. Toda ovação popular só é audível quando o guerreiro que conquistou seu coração atravessa o portão da casa paterna para pedir sua mão.É digno de nota que este amor é o por ela escolhido, não o designado pela rigidez da tradição.

            O amor romântico, a livre escolha amorosa é uma conquista importante. Sejamos sinceros, não é só para as mulheres que o amor funciona como contraponto das conquistas pessoais a que cada indivíduo contemporâneo se lança, o ser amado é um espelho que dispõe de respostas eficazes a todos os impasses identitários. Se amado sabe-se quanto se vale e para quem. Assim, a mulher não busca o repouso do amor por ser mais fraca e dependente do que o homem, mas porque é o ideal romantico que funciona como contraponto à solidão nestes tempos de individualismo.

             Amantes modernas, as mulheres da geração de Lara também são filhas especiais.  Os pais das heroínas de que nos ocupamos, por exemplo, não tinham gerado filhos homens. Sabemos que este sempre foi mais um dos desafios masculinos: fabricar seu sucessor. A filha mulher traria possibilidades apenas através do casamento. Os dias que correm propõe um uso mais interessante a fazer com a filha mulher do que casá-la. É enquanto filha, mais do que enquanto amante que a mulher disputa em novos territórios. Os revezes da vida de seu homem seja ele pai ou marido não mais selam o destino da mulher, assim como a falta do filho homem não mais encerra o poder de uma família.

            A liberdade das novas mulheres traz a dolorosa consciência da condição pantanosa do chão que pisamos: os patriarcas fraquejam, envelhecem, vacilam, os amados já não são também futuros respeitaveis senhores de bigode. À mulher independente corresponde um homem sensível, cujo melhor modelo é o rapazola romântico de Titanic. Perdida a ilusão da fortaleza masculina a mulher encontra novo tipo de fragilidade, frente a esta está só, como Lara Croft, sobrevivente, dependente apenas de suas habilidades para seguir adiante.

            A menina que cresce hoje não deixa de ser delicada e romântica, apenas detesta limitações. A velha versão do conto de fadas jogava com a contradição entre a boa mãe, encarnada pela finada e a fada (versões da mãe da primeira infância) e a madrasta-bruxa ( representante da mãe da adolescente), que deixa de cuidá-la para disputar no mesmo território, invejosa e envelhecida. A versão que tenta resgatar Cinderela, encontramos uma mãe mais do que má, retrógrada, incapaz de entender a vastidão dos destinos de uma mulher, só pode oferecer velhas fórmulas. A outra mãe era ótima, mas morreu. Trata-se de uma ou várias gerações de mulheres órfãs de mãe, não que não as tenham, mas estas tampouco tem respostas, apenas questões, dúvidas, culpas, problemas de agenda, dificuldades para encaixar seus múltiplos papéis. Já não mais modelo, agora parceira de aventuras, descortina-se um espaço interessante de convívio, falta porém a figura da guia.

            As novas meninas precisam encontrar desde cedo os modelos em que pautar esse jeito nada apagado de ser, o conto de fada contemporâneo, ou seja, o cinema, é um lugar privilegiado aos modelos que vieram em substituição da velha e submissa Cinderela, da desfalecente Bela Adormecida ou da ingênua Branca de Neve.

            Nos produtos culturais dedicados à infância e aos adolescentes, capturamos nossa organização social em seus ideais. Para os mais jovens buscamos sintetizar o que cremos ter de melhor, ou talvez o que consideramos essencial. Às meninas estamos contando de onde vem as mulheres e apontando para o que de melhor consideramos que o feminismo pôde legar: queremo-las guerreiras, independentes, femininas e desejáveis ao mesmo tempo. Parece impossível, mas é nesta exata corda bamba que se equilibra cada mulher do quase findo século XX. Conforme constatamos, não é pouco o que queremos das mulheres, para dar conta de um ideal destes só mesmo armadas até os dentes, como Lara Croft.

Publicado no Correio da APPOA, número 70, Ano VII, julho de 1999
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