Cortázar, que faria cem anos amanhã

Homenagem ao grande Cronópio através do qual aprendi a me sonhar.

Nos anos cinquenta, em Paris, um escritor anonimamente espera um tempão, sentado num bar, o suposto aparecimento do seu ídolo um pouco mais velho. Como previsto, pois era seu hábito, o enorme homem surge e ocupa sua mesa para trabalhar. O admirador conta: “Fiquei vendo ele escrever durante mais de uma hora, sem uma pausa para pensar, sem tomar nada mais do que meio copo de água mineral, até que começou a escurecer na rua e ele guardou a caneta no bolso e saiu com o caderno embaixo do braço como o escolar mais alto e mais magro do mundo.”

No excelente ensaio Último telefonema para o Cronópio, na revista Piauí de agosto, seu autor, o prolixo e debochado Reinaldo Moraes, é que narra esse episódio. Júlio Cortázar, o Cronópio que faria cem anos amanhã, é o aludido grande (em todos os sentidos) escritor dessa cena parisiense. Já o referido silencioso admirador, que fica esperando para ver o outro escrevendo, era nada menos que Gabriel García Márquez, mestre colombiano do Realismo Mágico, que perdemos neste ano, marcado por sucessivos lutos literários.

Parece um jogo de espelhos de escritores: Moraes conta, de uma ocasião em que Márquez observa enquanto Cortázar escreve. O grande Cronópio teria gostado dessa confusão. Na verdade, Gabo e Cortázar depois tiveram oportunidade de verdadeiro encontro, de modo que ele aprimorou a descrição anterior: “Era o homem mais alto que se podia imaginar, com uma cara de moleque sapeca dentro de um interminável sobretudo preto que mais parecia a sotaina de viúvo, e tinha os olhos muito separados, como os de um bezerro, e tão oblíquos que poderiam ser os do diabo se não estivessem submetidos ao domínio do coração” (Piauí, Pg.88)

De ambos, Cortázar e Márquez, tenho roubado sonhos ao longo da vida. Visitei Macondo, cidade imaginária de Cem Anos de Solidão, mais de uma vez. Mas nunca pretendi escrever ficção. Sou pobre de imaginação, tão chata que até meus sonhos são burocráticos: cumpro tarefas ou me martirizo por tê-las esquecido, perco objetos, digo bobagens, isso nos piores pesadelos. Nos melhores sonhos, dos quais raramente me lembro, faço percursos pueris. Tem quem sonha sagas, que dariam filmes de ação, terror, ficção científica, amantes que se desencontram ou se seduzem. Invejo-os.

Mais do que Reinaldo Moraes, autor do ensaio e ele próprio um ótimo escritor, e de Gabriel García Márquez, seria eu que teria motivos para assistir a essa cena do ato da criação literária, desabrochando em plena luz, com fervor. De certo modo faço isso quando meus pacientes brindam nosso trabalho com seus sonhos, nos presenteiam com pequenas peças de ficção dignas do País das Maravilhas, através das quais percorremos juntos os melhores caminhos das suas análises.

Talvez por essa mente burocrática à qual sou presa, admiro tanto quem torna nossas bobagens cotidianas em fantasia e encontro uma saída onírica para tomar emprestada no universo fantástico cortazariano. Para ele, a realidade está sempre à beira do sinistro: um sujeito pode morrer sufocado dentro da própria blusa, quando o ato de vesti-la pela cabeça torna-se uma tortura letal, como se a peça de roupa guardasse más intenções; o relógio que mais do que medir controla o tempo da nossa vida, deixa sua possessão bem clara através das marcas de pequenos dentes que ficam no pulso quando retirado; alguém sente-se incomodado por involuntariamente vomitar coelhinhos brancos num apartamento emprestado, eles constrangem o sujeito, menos por vomitar esses roedores fofinhos, o que ele trata como se fosse natural, e mais porque está bagunçando um pouco o ambiente pelo qual deveria zelar; de tanto observar um peixe estranho num aquário publico, pelo qual o visitante havia desenvolvido certa obsessão, um dia o curioso descobre-se preso do lado de dentro do vidro, havia se fundido com seu objeto de interesse; os admiradores de uma atriz famosa se organizam e a liquidam para que não decline do auge da carreira, em pleno palco, provando o caráter demoníaco dos fãs; poderia contar muitas mais histórias de Cortázar, algumas são brincadeiras lógicas, outras de linguagem, mas em boa parte delas a fantasia nos prega uma peça.

Os mais controlados de imaginação são medrosos, como eu. Tememos cair no Maravilhoso poço de Alice e de lá nunca mais voltar. Estou entre os que são demasiado atentos à fragilidade da vida, ao cotidiano sempre a ponto de colapsar, e para deixar-se sonhar livremente há de conhecer-se os abismos, mas também os meios de sair deles. Os escritores de verdade têm em sua arte as cordas, escadas, balões mágicos e tudo de que precisam para sair e sobrevoar mesmo as paisagens oníricas mais assustadoras. Meus heróis intelectuais são os que não temem a loucura, deixam que lhes brotem Macondos, tiram coelhos brancos da cartola da voz. Vou passar o resto da vida como Gabo, sentada àquela mesa, observando maravilhada o ato da criação.

25/08/14 |
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Um Comentário
  1. Naor permalink

    Lindo texto!

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