Criaturas dos pesadelos

Sobre o pesadelo e suas representações monstruosas

Freud nos forneceu uma fórmula clássica para explicar a origem dos sonhos: são fabricados a partir dos nossos desejos ocultos. Os pensamentos que não deixamos vir à consciência durante o dia encontram expressão à noite. Juntamos cacos de lembranças do dia (reminiscências diurnas) com intenções não resolvidas e aí está o sonho. Ora, uma objeção óbvia a esse esquema é: como ficam os pesadelos? Afinal, desejamos nos atormentar? O que precisamos nos dar conta é que, ao contrário do que supõe o senso comum, a possibilidade da realização de nossos desejos pode nos levar mais facilmente ao inferno do que ao paraíso. A palavra “desejo” vem associada geralmente ao prazer e isso nos confunde, mas é preciso entender o Wunsch freudiano a partir de um leque maior de significados: como aspiração, intenção, voto, vontade.

Nossos desejos mais comuns não precisam encontrar uma expressão através dos sonhos, eles nos são familiares, falamos deles, fantasiamos com isso. Não é necessário sonhar com a vizinha atraente para saber que ela desperta intenções eróticas, mas se o desejo envolver alguém da família, não há como pensar a respeito, o jeito é mesmo sonhar. São os desejos proibidos, de conotação anti-social, agressiva ou incestuosa que precisam da noite para se manifestar. Ora, se abrimos a caixa de Pandora de nossa alma é óbvio que dela sairão monstros e deles teremos muito medo. Uma reação se faz necessária e a censura onírica deforma a representação, nos apresenta charadas, mas não consegue reprimir a emoção que acompanha o pesadelo. Acordamos então apavorados, embora sem saber exatamente com o quê.

Mas essa idéia dos sonhos e pesadelos como representantes da vida interna, subjetiva, é recente. Nossos antepassados tinham hipóteses bem distintas sobre a origem do conteúdo onírico, por exemplo, uma das representações mais interessantes dos pesadelos eram os Íncubos. Aliás, Íncubo ou Súcubo, como veremos, são duas faces para um mesmo demônio. Eles seriam habitantes da noite, cuja peculiaridade é nos atacar sexualmente enquanto sonhamos. Se sua essência maligna não varia, é sua forma que vai fazer a diferença. Quando aparece sob a forma de uma linda donzela, chama-se Succubus (em latim, que deita-se ou põe-se por baixo); quando disfarçado de homem, trata-se do Incubus (que deita-se ou coloca-se por cima). Ou seja, é um ser imaterial que assume a forma humana para invadir os sonhos e consumar, no adormecido, um ato sexual.

Sua aparência não era bem definida, na iconografia tradicional geralmente era representado com uma imagem próxima ao humano, mas com algumas características diabólicas, como cascos, garras, chifres ou asas de morcego. A pintura típica trazia então um ser antropomórfico, com caracteres sexuais bem marcados, exuberantes, de maneira que o tornasse sedutor, e na ação estava sempre oprimindo sexualmente a vítima. Mas encontramos também imagens mais brandas, sendo apenas um ser do sexo oposto ao das vítimas, insinuante e impondo-se a vítima por uma suave sedução, afinal, seu objetivo seria menos apavorar do que de fato realizar o coito proibido. Em defesa do adormecido podemos dizer que a carne é fraca e estando dormindo, logo a força de vontade também fica adormecida, portanto, seríamos presas fáceis destes espectros sedutores. Vale também lembrar que em qualquer posição a vítima é passiva, afinal ela não teria escolhido esse ato sexual.

Mas a fantasia não parava por aí, acreditava-se que sua maldade podia ir além da imaterialidade do pesadelo. Esse monstro podia tomar a forma feminina e roubar esperma de um homem, para, depois, tomar forma masculina e fecundar uma mulher honesta objetivando atingi-la em sua honra. Ora, essa operação nos demonstra que quer sejam Íncubo ou Súcubo, ambos seriam o mesmo e poderiam mudar de forma autonomamente. Ou seja, é um espectro que se conforma ao objeto de desejo sexual da vítima. Como vemos, os seres das trevas possuem inúmeros caminhos para nos tentar. Essa história de fecundação pelo Íncubo também explicaria uma idéia medieval sobre por que o sêmem do diabo seria gelado, isso decorreria em função do tempo que transcoreria entre uma vítima e outra.

Embora ninguém discordasse que o Íncubo e o Súcubo fossem seres malignos, sua natureza era mal estabelecida. A versão mais corrente da época é de que eles seriam apenas mais uma das faces do diabo. Outros preferiam acreditar que fosse um ser com identidade própria, um intermediário entre os homens e os demônios, cujos domínios seriam justamente as sombras do mundo dos sonhos. Já Paracelso, alquimista medieval suíço, tinha a sua explicação para esse fenômeno: ele dizia que o fluxo menstrual produzia fantasmas luxuriosos que poderiam migrar para outros corpos causando esses ataques.

Porém, não devemos confundir esses demônios sexuados com uma outra categoria de monstros de pesadelo, igualmente apavorantes mas sem uma conotação sexual. Quase todos os povos possuem um personagem que encarna o pesadelo na figura dum ser repulsivo que comprime, aperta ou senta em cima do peito do sonhador. As formas variam muito, podem ser gigantes, mulheres assemelhadas a bruxas, anões, porém o modus operandi é semelhante. Eles chegam para “amassar” o peito do sonhador, e somem quando ele acorda. Ou seja, também são imateriais, ou pelo menos possuem uma materialidade transitória. No Brasil antigo o nome desse ser era Pisadeira, uma velha que justamente, “pisava” o peito da vítima.

Os romanos já davam a essa sensação o nome de Nocturna Oppresio. Inclusive a palavra pesadelo provêm de peso, em referência à compressão que nos oprimiria o peito justamente sob o peso do dito ser monstruoso. Ou seja, a representação plástica dum quadro que hoje chamamos de apnéia, uma incapacidade momentânea para respirar, é o que deu nome ao pesadelo.

O fato de acordarmos cansados, suados e desgastados depois de um pesadelo era atribuído então a uma luta contra esses seres noturnos. Um pesadelo é sempre uma experiência forte, inclusive em sua forma mais angustiante pode produzir até uma sensação de morte, pois sentimos por instantes uma impotência para o movimento, podemos sofrer uma incapacidade momentânea para respirar e geralmente o coração dispara. O resultado não poderia ser outro do que acordarmos transtornados. Ora, um susto tão grande não era concebível, para nossos antepassados, sem a intervenção de seres diabólicos.

Esses demônios noturnos revelam também uma certa concepção de sonho – não como o entendemos hoje, fazendo parte do repouso do corpo e sendo uma experiência íntima – mas como uma viagem para outro lugar, ou outra dimensão. Uma das provas de que estaríamos num território estranho seria o fato dos mortos aparecerem ocasionalmente nos sonhos. Além disso, nesse inóspito lugar, poderíamos ser atacados por espectros que não têm acesso normalmente ao nosso mundo. Como esses demônios não possuem materialidade nem força para vir para nossa dimensão, eles só podem nos atacar quando nós também estaríamos privados da nossa materialidade, isto é, “fora” do nosso corpo, sonhando.

Para o pensamento tradicional os sonhos poderiam ser também mensagens provenientes do além. Ora previam o futuro, ora eram um canal de comunicação com os deuses, ou ainda, quando eram pesadelos, uma indesejada visita de seres maléficos. Foi somente no século XX que compreendemos como os nossos sonhos e pesadelos fazem parte da nossa subjetividade e que são uma expressão involuntária, mas reveladora, da nossa vida mental.

De qualquer maneira, o mais provável é que essa dupla espectral Íncubo-Súcubo, seja a personificação de nossos desejos sexuais não admitidos. Se algo necessitou expressar-se num sonho é porque foi durante o dia banido da consciência por ser impensável. Fica mais fácil atribuir a um diabrete a suposta monstruosidade de nossos desejos, se acreditarmos que o ataque vem de fora, não precisamos pensar no que ele significa. Podemos temer essa experiência sexual (ainda que virtual), mas não nos sentimos implicados, afinal não há necessidade de assumir uma intenção, para todos os efeitos, nós não queríamos relação sexual alguma, somos vítimas, fomos forçados…

O mesmo vale para os outros monstros de pesadelos, projetávamos nos demônios nossos fantasmas íntimos. Confinávamos neles nossos medos, angústias, limitações, nossa impotência e esperamos deles toda a agressividade possível pois, de certa maneira, inconscientemente, sabemos que eles são o reverso da nossa própria pulsão destrutiva. Quando mais nos concebemos como belas almas, como homens de bem, incapazes de pensamentos homicidas ou desejos sexuais fora do padrão, mais estaremos expostos a uma noite tumultuada. O sábio que conhece os abismo de sua alma, e não se ilude sobre sua pureza, dorme melhor.

O Íncubo e o Súcubo foram forjados no medievo europeu e só recentemente foram formalmente deixados de lado. A ficção contemporânea tem ressuscitado monstros que nos visitam apenas no mundo dos sonhos, o mais famoso deles é Freddy Kruger (especialista em matar adolescentes, na flor da sexualidade, enquanto adormecidos), que tirou o sono de muita gente que viu seus filmes. Ou seja, caem uns monstros e inventamos outros, parece que nos sentimos melhor mal acompanhados do que a sós com nossos sonhos e fantasias.

Publicado na revista Argumento, Rio de Janeiro, número 12
01/12/05 |
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3 Comentários
  1. Roberto Medeiros permalink

    Fazia tempo que eu procurava por um texto de qualidade como esse. Não sou psicanalista, mas fiz uma pós graduação em psicanálise e saúde mental. Adoro poder lembrar-me de meus sonhos e no dia seguine poder descobrir algo sobre eles, ou melhor, sobre mim. Mas sobre os pesadelos eu sempre tive dúvidas, e como essa noite tive um “baita” pesadelo, resolvi pesquisar algo na internet e deparei-me com esse texto. Parabéns!
    Roberto

  2. Interessante a beça o texto. Gostaria de saber onde eu poderia encontrar material com criaturas de sonhos, suas origens e suas características. Me interesso muito pelo assunto e fiquei surpreso, pois não conhecia A Pisadeira.

  3. Rodrigo santos permalink

    Rapaz esse texto

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