Kryptonita

O passado sempre continua nos apedrejando

Tive todas as oportunidades de emburrecer com a babá eletrônica. Fui uma criança apaixonada pela telinha pequena e imprecisa, em preto e branco. Ansiava muito pela hora da tevê começar e me sentia miserável ao término da programação. Dessas extensas jornadas televisivas restam muitas memórias, mas uma evocação é insistente: a Kryptonita, proveniente dos desenhos animados do Superman.

Trata-se de uma arma que era usada contra seus super-poderes pelos inimigos, a única que o colocava fora de jogo. Aproximar dele um fragmento dessa pedra, um mineral verde luminoso, deixava-o fraco, indefeso. O mais enigmático é que a Kryptonita era uma das raras coisas provenientes do planeta natal do herói, Krypton. Do mesmo lugar de onde se originaram os poderes veio o calcanhar de Aquiles. O fragmento de ficção, e da pedra, sobreviveu na memória por portar uma verdade e um alerta: há um lugar, nossa origem, que determina o que somos, mas é também de onde nossa derrota pode se insinuar.

Não posso omitir a cilada do meu inconsciente: meus dois sobrenomes, tanto materno como paterno, contém a palavra “stein” (pedra, em alemão), ou seja, meu passado é uma “pedreira”. Mas não só o meu, também o seu, o de todos. A infância, quando os outros são grandes e nós pequenos, é lugar de proteção, mas também de submissão, passividade, medos. O mundo dos pequenos é uma massa escura que não enfrentamos sem uma mão para segurar. Não é fácil lembrar disso. Tornamo-nos fortes e grandes graças ao exílio desse planeta natal da fragilidade. Só ficamos “super” porque crescemos.

Ao voltar à casa dos pais, mesmo velhinhos, sentimos a sinistra sensação de que lá o tempo congelou. Perdemos os bons modos, catamos no prato, distraímo-nos ao som da voz da mãe, testamos a força do pai, ficamos irritadiços, por vezes irreconhecíveis. Os lugares do passado são magnéticos, atraem à superfície fragmentos, cacos sobreviventes de outras eras. Atravessar a porta familiar dessa casa é como a queda de Alice no assustador País das Maravilhas. Não é porta, é portal, do outro lado esperam memórias que nos tomam de assalto. Assombrados pelos nossos outros “eus” do passado, descobrimo-nos, como Alice, viajantes surpresos num país de pesadelos, dentro de um corpo que encolhe, espicha e nunca nos abriga direito.

Faz toda a diferença como encaramos e como nos contamos as experiências que vivemos, a mesma história pode ser enquadrada por diversas lentes. Diferentes visões produzem novos efeitos. Mas nem tudo pode ser posteriormente resgatado, sempre há restos, alguma pedrinha nociva que incomoda ou obstrui. O passado é esse planeta natal, fonte de nossa força e vulnerabilidade.

2 Comentários
  1. Miriam Eluza Pires da Silveira permalink

    Muito boa tecitura de texto. Amei me reconhecer nele.

  2. Márcia permalink

    Me reconheci completamente neste texto. Quando retorno ao meu antigo lar, sinto profundamente que lá o tempo parou completamente, como se eu tivesse viajado no tempo e, finalmente tivesse retornado com lembranças vivas de medos, inseguranças, alegrias e tristezas.

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