Kutasi

Dos tempos em que o futebol era uma aventura e não um negócio.

Quem teve um tio meio biruta sabe seu valor. Quem não tem, nem faz idéia do que perdeu. A minha sogra teve um de dar inveja. Chamava-se Henry Kupferstein e nasceu junto com o século em Budapest. Boníssima pessoa, mas, ou por isso mesmo, gazeteiro, boêmio, vivia de encrenca em encrenca, sua vida era a rua. Foram tantas que aprontou que branqueou os cabelos de seu pai. Entre seus inúmeros vícios havia um que era secreto: o futebol. Para não desgostar ainda mais seus amados pais arranjou um apelido: Kutasi (pronúncia-se Kútachi)

Com esse nome era conhecido em Budapest. Era mencionado nos jornais, nas rádios, mas ninguém ligava Henry a Kutasi. Só quem sabia, por ser cúmplice, era seu primo Bandi Kerekes. O primo o acobertava nos fins de semana em que sumiam com as mais variadas desculpas. Com o passar do tempo outros parentes souberam da vida dupla, mas pouparam os pais. Os dois falecerem sem conhecer a infâmia de ter um filho jogador de futebol. Henry sabia que seus pais já tinham perdoado tanta coisa, não perdoariam o ponta esquerda Kutasi.

Outros tempos, outros pais. Futebol, então, era coisa de periferia, de ralé. Mas ao menso tempo, na Hungria, o futebol começava a encantar multidões e a ser paixão nacional. Porém os jogadores ainda não ganhavam bem e eram mal vistos. Henry sofria com a discriminação e com o segredo. Para piorar, o amor pelo futebol só crescia, cada dia ele era mais Kutasi e menos Henry.

Quando a situação ficou difícil para os judeus na Hungria seu irmão Luis, avô da minha esposa, e o primo Bandi vieram para a América. Ele não quis, já tinha driblado tanta coisa na vida, achava que livrava mais essa. Mal sabia ele que o nazismo era um zagueiro maldoso, desleal, quebrador de perna. Esse foi o drible que ele não deu. Kutasi e Henry morreram juntos em Auschwitz em 1944. Já não usava a camisa 11, era um número mais longo tatuado no braço.
(publicado na Zero Hora de 25/02/2015)

26/02/15 |
(0)
Nenhum Comentário Ainda.

Comente este Post

Nota: Seu e-mail não será publicado.

Siga os comentários via RSS.