Livro e circo

Escrever é vingar-se do desejo que nos coloniza.

A quem ocorreria montar um circo onde um povo se reunisse para falar de um ato íntimo, individual, tranquilo e reflexivo como a leitura? Pois há 32 anos pareceu plausível à professora Tânia Rösing organizar um grande evento de literatura, no interior do Rio Grande do Sul. Ela contou com o apoio de um grupo muito especial de malucos, dispostos a viajar até Passo Fundo em época de vestir poncho. Capitaneados por Josué Guimarães que comprou essa idéia aparentemente inviável, escritores importantes de todo o país se engajaram no projeto, que foi crescendo, crescendo, até ocupar uma lona de circo! Abaixo dela discute-se sobre livros, tendências literárias, mas principalmente escuta-se os escritores falando de suas obras e processos criativos.

Se escrevermos qualquer coisa que torne necessário perguntar o que se quis dizer ali, provavelmente está mal redigido. Um bom texto prescinde da tradução oral. As letras precisam mostrar plena autonomia, abandonar seu autor como filhos que crescem, como um animal ferido do qual se cuidou e é devolvido à natureza, precisam partir sem olhar para trás. Para que então escutar os escritores, se suas obras já dão conta do que havia para ser dito?

Certamente não é para esclarecer sobre o que ele realmente “quis dizer”. Talvez ele nem saiba. Provavelmente nem se importe com isso. A fantasia não obedece às intenções do autor, é ele que se submete a ela. Mas depois que a idéia surge, o trabalho da escrita é uma lapidação suada, em busca da forma. O escritor constrói sua própria voz, um jeito peculiar de contá-la inserindo sua marca, sua assinatura. É assim que ele tenta se vingar da fantasia que o colonizou anteriormente, o estilo vira o jogo.

Curiosamente é também assim que acontece com nossos desejos, essas vontades ou tendências que mandam na nossa vida. Uma idéia se impõe, por vezes de forma explícita, por outras de maneira subliminar. Pensamos estar fazendo escolhas, enquanto as escolhas estão nos fazendo. Sucessos, falências, desvios de rumo, a trama da nossa vida por vezes parece ter sido escrita por um autor secreto que nos submete aos seus caprichos, que move os fios daquilo que queremos ter e ser.

Do mesmo jeito que os escritores, tentamos um ato de rebeldia sobre esses sonhos que se realizam em nós: vamos suar para lhes imprimir nosso estilo, nossa voz. Escutar os escritores serve para descobrir como esses bruxos das letras lidam com suas histórias, das quais são igualmente autores e protagonistas. Aprendemos como eles as subjugam, como um flautista faz dançar uma serpente. Eles submetem as fantasias às suas palavras, lhes imprimem a cadência da pontuação, torcem, recortam, as assinam. Escutá-los é aprender a fazer da vida uma arte. Parece pouco? Pelo jeito tem sido o suficiente para levar milhares de pessoas ao mesmo evento. É o respeitável público da mui espetacular Jornada Nacional de Literatura, que se inicia na próxima terça-feira.

25/08/13 |
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Um Comentário
  1. Renata Cecilia Estormovski permalink

    Olá, Diana! Muito bom te reler! Estudei muitos livros de vocês na Faculdade de Letras, quando o papo era Literatura Infantil. Mas estou aqui para lhe parabenizar pela participação na Jornada, estive lá e assisti. Espero te encontrar novamente aqui no sul, é sempre bem-vinda! Beijão! E agora que descobri esse blog serei sua leitora frequente.

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