Nárnia: crônicas da infância em tempos de guerra

Sobre o filme As Crônicas de Nárnia, intersecção entre fantasia e história

Estamos na Segunda Guerra, Londres é intensamente bombardeada, não há casa segura. O governo tenta minimizar as perdas humanas evacuando as crianças para as áreas rurais. Especialistas são convocados para saber qual a idade mínima para afastar mãe e filho sem danos irreversíveis. Os psicanalistas Winnicott e Bowlby acreditam que até os dois anos de idade é melhor expor-se aos bombardeios do que se separar da mãe. O resto das crianças vai para o interior, mesmo que em situações improvisadas. Dos males o menor. Esse é o pano de fundo do primeiro movimento do filme As Crônicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa dos Estúdios Disney, que conta o primeiro livro do universo de C. S. Lewis.

Nossos heróis retirantes, os irmãos Peter, Susan, Edmund e Lucy vão parar numa mansão, onde são as únicas crianças numa casa de velhos. Nas suas brincadeiras para afastar o tédio descobrem um velho guarda roupa que é um portal para um outro mundo: Nárnia. E vejam só o que temos nesse mundo paralelo, uma guerra não menos terrível que a que seus pais estão lutando! Uma feiticeira rainha (que lembra a Rainha da Neve, de Andersen) má e usurpadora do trono impede a chegada do verão, vive-se um inverno perpétuo e o que é pior, sem Natal. Quem não obedece ao mínimo de seus caprichos vira estátua. Mas nem tudo está perdido. Aslam, um rei leão, lidera um exército que vem trazer liberdade e calor para esse mundo sem esperança. O destino da terra encantada de Nárnia já estava escrito nas profecias: seria governado pela despótica e destrutiva feiticeira por um longo inverno e libertado desse jugo por Aslam, auxiliado por quatro crianças humanas, a quem estão destinados quatro tronos. Os habitantes de Nárnia são faunos, centauros, anões, ciclopes, sátiros, gigantes, uma grande variedade de seres mágicos do acervo da mitologia européia, assim como animais falantes.

Embora escrito quando a guerra já havia concluído, este livro de Lewis construiu-se sobre a relação dos pequenos com esse momento histórico traumático, onde a intimidade familiar viu-se bombardeada pela estupidez do mundo nada mágico dos humanos. Poderíamos dizer que Lewis faz uma proposta escapista, alienante, levando as crianças para dentro de um armário, onde brincariam a salvo dos problemas que as afetavam. Para afirmar tal coisa, seria necessário entender muito pouco sobre o porquê o e como as crianças brincam e fantasiam. Brincar é dramatizar ativamente aquilo que sofremos passivamente. Desde a mais ingênua brincadeira de bonecas, até a mais onipotente imaginação de ser um super-herói, trata-se de uma tentativa de elaborar, posicionar-se, e julgar aquilo que a criança vive e o que fazem com ela. Crianças têm sua própria e complexa visão de mundo, embora seja meio parecida com o armário de Lewis: aparentemente simples por fora, de aspecto pequeno e restrito, mas ilimitado por dentro, cujas portas abrem-se para recursos mágicos extraordinários e reflexões importantes. Diz-se que não adianta viajar para fugir dos problemas, porque para onde formos eles nos acompanharão, o mesmo ocorre com as brincadeiras e fantasias, elas não são uma fuga, são sim uma elaboração. Quando fantasiamos, podemos fazer uma volta por paragens bizarras, mas é ao nosso encontro que sempre vamos.

Vemos no filme uma cena (inexistente no livro) na qual o irmão mais velho, menino duns 15 anos, está na estação embarcando no trem que os levará para o refúgio no campo. Lá ele olha com inveja para os jovens soldados, não muito maiores que ele, que partem uniformizados para a guerra, na qual seu pai já estava lutando. Para Peter, aquilo é um horizonte de glória e bravura que almeja e que no mundo mágico de Nárnia irá encenar. Como se vê, o universo metafórico de Lewis permitirá às crianças o papel de protagonistas da história, coisa que elas nunca são na vida real, onde lhes é reservado um papel passivo ou, na pior das hipóteses, de vítima. Nas histórias infanto-juvenis, elas são o eixo principal da trama, o trono e a guerra são para elas.

Mas é no menino mais novo, Edmund, que encontramos a maior riqueza do enredo: ele é mesquinho, odeia Peter em função de que este lhe é superior em autoridade e em dotes (por ser mais velho), atribui aos irmãos a causa de seus fracassos e trapalhadas, além disso, está magoado pela dispersão da família. Tomado por esses nada nobres sentimentos, Edmund alia-se à feiticeira malvada, protagonizando uma série de traições e atos nada heróicos. Numa outra camada de leitura, poderíamos pensar Edmund como a ameaça de fratura da Inglaterra antes da guerra, afinal, o nazismo tinha adeptos também dentro dos países Aliados. Em Nárnia, como na Inglaterra, a força dependia na união, só quando os irmãos estão em paz e unidos podem derrotar a rainha má.

Edmund, cuja trajetória no mundo mágico é marcada também por suas fraquezas, ilustra o profundo engajamento da fantasia nos grandes temas da realidade pessoal. Ele age movido por sentimentos de vingança, como fazem as crianças quando desejam, sinceramente, que aquele que as incomodou suma e, de preferência, morra. Assim como o jovem Peter cobiça o lugar dos soldados e desconta no irmão menor e desprezo que tem pela sua própria pouca idade, o menino Edmund encontra em Nárnia o desejo de ser ele próprio o rei do pedaço e punir o mais velho pela sua constante soberba.

Existem outros eixos de interpretação: o mais importante seria a oposição feminino-frio versus masculino-calor. A rainha má paralisando tudo e o principio masculino do rei leão fazendo tudo crescer ou renascer. Como a rainha suborna Edmund com comida e bebida e ele fica encantado por esse alimento mágico, podemos ver na feiticeira a mãe nutridora da primeira infância. A separação entre Edmund e a rainha é tão previsível quanto a do seio e do bebê, pois a mãe é um paraíso temporário. Tomado pelos seus ressentimentos, Edmund faz uma aposta regressiva, a de servir à feiticeira mãe em troca de guloseimas e só poderá aliar-se ao irmão quando se resignar a crescer e lutar como ele. Bom negócio para um menino que, por força da guerra, teve que se separar da mãe e está triste: chegar à conclusão de que ela é gélida. Romper com ela e identificar-se com a bravura do pai soldado é uma solução bem melhor do que ficar chorando o leite derramado.

Disney precisava entrar nesse filão mágico depois de ter deixado passar encilhado Harry Potter e ver Senhor dos Anéis faturar milhões. A indústria do entretenimento infantil gira muito dinheiro e não joga para perder. A escolha deveria ser decisiva, por isso buscaram um inglês já consagrado, criador de um universo mágico que fascinou mais de uma geração. Alguns críticos quiseram ver nessa escolha um matiz ideológico, representando a direita cristã americana elegendo uma trama com valores católicos. De fato o autor era um católico convicto mas em seu mundo imaginário existem linhas de força que escapam dessa concepção.

Respeitando as diferenças, especialmente de faixa etária, afinal Crônicas de Nárnia é para crianças mais jovens, esta história lembra a salada que Rowling propõe em Harry Potter: uma espécie de vale tudo mitológico. Aliás a escritora inglesa não esconde sua franca inspiração em Nárnia, que foi uma de suas paixões infantis. As personagens animais obedecem ao estilo das velhas fábulas, o resto provém da mitologia greco-romana, certas passagens lembram romances de cavalaria e habitam um mundo paralelo ao modo da herança celta. Toda leitura sobre o pretenso catolicismo gira em torno do Leão que morre em sacrifício voluntário e ressuscita para salvar o mundo. O problema é que, se os críticos se derem ao trabalho de ler o resto da obra, verão que Aslam é um deus criador que se sacrifica, enquanto no catolicismo temos um filho de deus que vem nos salvar, o que não é exatamente a mesma coisa. É preciso lembrar que enquanto essas crianças estavam a salvo no interior, seus pais morriam no front. A guerra impunha um sacrifício aos pais para salvar a pátria e logo, o futuro dos filhos. O Leão, símbolo perene da Inglaterra, morria e renascia em combate durante todos aqueles longos dias de inverno histórico, para vencer o avanço nazista. Esperamos que Nárnia nos alimente com sua lição de fantasia engajada, com a coragem encontrável até nos mais jovens e isolados protagonistas duma época dura, mas heróica.

Publicado no caderno Cultura, do jornal Zero Hora, com o título “Infância em Tempo de Guerra”, em 24 de dezembro de 2005

Publicado no Correio da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – Questões à Ciência – número 143, Ano XIII, Janeiro 2006

5 Comentários
  1. Isabela permalink

    Consigo enxergar e até sentir o que foi dito sobre a história! Gosto muito de como relacionam as histórias com a psicanálise, o Livro Fadas no Divã foi o melhor presente que pude receber! Gostaria de saber se já escreveram algo sobre o filme: O Labirinto do Fauno. É uma história muito interessante que eu particularmente adoro e seria muito bom “ouvir” o que pensam sobre ela.

    • Diana permalink

      isabela!!
      teria sido lindo escrever sobre o labirinto do fauno, quando assistimos o filme ficamos tão impactados, no bom sentido, que provavelmente nos faltaram palavras. porque não o fazes? acho que é o assunto da repressão, que a mim em particular me cala, ainda…
      abraços
      diana

  2. Gustavo Siqueira permalink

    Como esse filme é belo. Viajo, esqueço que existe qualquer outro mundo além de Nárnia. Como ainda não li a obra toda, não posso julgá-la, mas tirando por base o pouco que li e os belíssimos filmes, acho que a riqueza da obra de C.S Lewis está no universo de fantasia criado. Ele é muito forte e concreto, e nesse ponto bate alguns concorrentes do gênero. Acho as metáforas religiosas bem interessantes, de qualquer forma é uma bela obra. Sou fã, então sou suspeito pra falar. rs’ 🙂

  3. Natalia Oliveira permalink

    Muito bom o texto! de verdade.
    Apenas uma correção: Quem era Católico convicto era J.R.R. Tolkien, amigo e influencia de Lewis, inclusive em assuntos religiosos. Mas Lewis era mesmo “protestante” , membro da Igreja da Irlanda, penso que de doutrina Calvinista (como os Presbiterianos) mas não católico.

    Inclusive, ele cresceu em um lar presbiteriano, se tornou ateu na juventude e retornou à Igreja já mais velho, aos 31, 32 anos. Interessante, não é?

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