Nomeando o sofrimento

Resenha do “Livro Negro da Psicopatologia”, sobre o caráter inclassificável do sofrimento psíquico.


Em 1992 Richard P. Bentall escreveu um artigo para o Journal of Medical Ethics, seu intuito era propor que a felicidade fosse reconhecida como um transtorno psiquiátrico e enquadrada nas futuras classificações. Afinal, segundo ele, esse estado é estatisticamente anormal, sendo acompanhado por alguns sintomas, entre eles uma disfunção cognitiva, no sentido de uma percepção distorcida da realidade. As pessoas afetadas apresentam um quadro caracterizado pelo estado de euforia sem uma contrapartida real, o que pode ser uma desvantagem adaptativa. Não raro, nota-se uma relação elevada desse estado com comportamentos maníacos, obesidade e ingestão de álcool. Talvez, argumenta o doutor, seja reflexo de uma anomalia do sistema nervoso central, um estado neurobiológico de desinibição. O fato dessas pessoas não se considerarem doentes é irrelevante, pois é assim em muitos casos, nos quais os pacientes geralmente não têm crítica de seus estados patológicos. Por fim, exorta seus colegas a encontrar tratamento adequado a esse estado mórbido que quer chamar de: major affective, pleasant type.

Bentall utilizou em sua argumentação, para enquadrar a felicidade como distúrbio, o mesmo método que funda as categorias psiquiátricas que estamos acostumados a usar. Talvez esse artigo irônico seja o melhor meio para contestar a fragilidade conceitual que alicerça a nosografia que usamos.

As classificações das doenças mentais surgiram para que os profissionais das áreas da saúde mental pudessem falar entre si sobre os pacientes e para, de alguma forma, poder prever certa evolução. Ou ainda porque um raciocínio dessa natureza se tornou necessário para efeitos sociais: como para fazer estatísticas, pensar políticas públicas, ou ainda normatizar coberturas por planos de saúde. O dilema é que essa busca por uma classificação científica inclinou os esforços da psiquiatria numa direção pouco produtiva no sentido da evolução da cura.

De fato, atribuir um nome ao sofrimento não necessariamente ajuda a combatê-lo. Embora seja fundamental que o profissional de saúde mental esteja sempre atento ao quadro com o qual está lidando e trabalhe em consonância com suas hipóteses clínicas, um diagnóstico preciso (considerando que isso seja possível), ao contrário de todos os quadros somáticos, não é imprescindível para um bom tratamento. Um diagnóstico aproximado é uma bússola suficiente, até porque deixa o profissional mais atento para sutilezas e mudanças bruscas. E por uma outra razão central: é simplesmente impossível enquadrar e classificar descritiva e meticulosamente as formas de sofrimento humano, podemos apenas ter aproximações, nada mais.

Esse espírito classificatório induziu, mesmo que os idealizadores dessas descrições não pensem com essa estreiteza, para uma visão essencialista da doença mental: passa a idéia que se alguém tem certa doença está fadado a um funcionamento daquela ordem; que o quadro seria uma forma de ser daquele sujeito, que cada sofrimento teria uma forma standard de se manifestar. Os diagnósticos na verdade são aproximações provisórias de formas de funcionamento mental, e não raro são mutantes. Embora muitos pacientes mantenham certa lógica por um tempo, outros funcionam de uma maneira agora e outra amanhã e o quadro de ontem não necessariamente era um desses dois. Um diagnóstico seria mais uma forma de “estar” não de “ser”, por isso a fluidez faz parte. O melhor é usar um diagnóstico como se usa um andaime numa obra, aquilo não faz parte realmente e será retirado no fim. Apenas ajuda (ao terapeuta, e raro ao paciente, enquanto uma direção medianamente confiável) durante o processo de cura em curso.

Atribuir um nome ao sofrimento acarreta ainda outro efeito colateral negativo: quem sofre geralmente passa por uma crise de identidade, portanto se alguém, numa posição de poder social, diz que ele é tal coisa, é bem provável que ele adira ao rótulo independente da adequação deste à sua realidade. Afinal, é melhor ter um nome para uma doença do que nada. Embora a nomeação forneça um ganho rápido aplacando a angústia, a falta de significação para sua dor, logo após faz resistência aos outros passos, ancorando o paciente numa formação imaginária de sentido, e acaba atrapalhando a evolução da cura. Já a recusa a dar um nome ao sofrimento, quando isso é possível, lança o sujeito numa busca própria por definir quem é, o que de fato está acontecendo, e qual seu caminho para sair da crise.

As formas do sofrimento são diferentes porque os humanos são extraordinariamente diversos, o que torna a empresa classificatória desanimadora. Não obstante, certos profissionais seguiram em frente, mas para conseguir lograr uma lógica operante tiveram que retirar variáveis dessa equação, especialmente os vetores históricos e sociais. Por exemplo, pense em entender o sofrimento atual sem levar em conta os fatores como a mudança no equilíbrio de poder dos sexos e das formas de gozar, que retirou todas as (falsas) certezas que nos apoiavam até meados do findo século XX; a família, fonte ancestral de apoio psíquico, sofreu uma revolução que esfarelou as formas tradicionais em apenas duas gerações; o outro arrimo que era a religião perdeu muito de sua força, ou ainda a invenção da adolescência que tomou a sua forma no pós-guerra e coloca num limbo provisório, e em pé de guerra, uma parte da população. Sem falar do culto ao corpo e à saúde, ou ainda a busca da felicidade a qualquer preço, que se constitui no andar debaixo do momento de forte drogadição que vivemos. Suprimindo variáveis como essas, o resultado é uma visão de homem onde ele se parece a uma máquina neural, como se fosse possível uma forma de ser atemporal, apenas uma natureza básica imutável que apenas adapta-se à força das ondas. Visando a objetividade apagou-se a fala, pergunta-se apenas por comportamentos, humores, por sintomas visíveis e dessa massa de informações tenta se extrair um diagnóstico.

Desnecessário lembrar que esse tipo de raciocínio tende a ser fortemente adaptativo, pois, se perdemos a crítica da sociedade e das instituições onde estamos inseridos, é como se todos devêssemos ou pudéssemos nos adequar a qualquer sociedade em qualquer momento. Longe de ser um desvio epistemológico, esse ethos classificatório é a expressão direta da forma utilitarista e mercantilista de pensar o homem, ou seja, ele que se adapte e seja útil, que cumpra sua função na engrenagem social.

O elo que falta dessa lógica é a medicação. Reduzido a doença mental a um cérebro problemático, ela foi traduzida como um déficit químico, portanto basta descobrir um remédio específico para cada quadro. Recém começa a ser desvelada a verdadeira força da indústria farmacêutica nesse atual panorama, vendida como ciência de ponta, o envolvimento dos pesquisadores com tal indústria deixa muito a pensar o quanto se expressa a força de um lobby e onde começa mesmo a ciência. A medicação trouxe benefícios inestimáveis para todos, mas seus verdadeiros benefícios são superdimensionados. Aliás, se o ganho com as medicações fossem realmente revolucionários, viveríamos um momento de declínio dos quadros de sofrimento, quando estamos constatando é um aumento de todas patologias. Algo não anda bem nas nossas estratégias e no setor de armamentos, estamos perdendo a guerra.

Começaram sair livros e artigos que desafinam o consenso da psicopatologia atual. Destaco o livro recém lançado cuja leitura resumo nas linhas acima: O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea (Ed. Via Lettera, 2011) de Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik (orgs.) Nove autores brasileiros, nove argentinos, uma mexicana e uma francesa, trazem sua experiência com as categorias psiquiátricas. Entre outros, escrevem Maria Rita Kehl, Ricardo Goldenberg, e aqui, de Porto Alegre, contribuem Nilson Sibemberg e Ana Costa. O sofrimento humano dá muito que falar, mas nem sempre a minúcia descritiva e classificatória lança luz sobre um campo obscuro.

Publicado no ZH Cultura, 24.09.2011

8 Comentários
  1. Adri permalink

    Sou apaixonada pela escrita de vcs! Tenho os dois livros, usei o primeiro (Fadas no divã) no meu estágio básico de psicologia que trabalhei em instituição de abrigamento com contos infantis. Quando minha filha andava as voltas com a Rapunzel eu me ví em toda dimensão de mãe terrível e corri pra análise… kkk. Nem sei porque estou escrevendo este comentário neste momento, apenas queria que vocês soubessem de minha admiração ao trabalho de vcs e pedir que continuem escrevendo, estarei senguindo e lendo. Eu e mais um bando de estudantes de psicologia da Unijuí. Beijo grande pros dois

    • Diana permalink

      Adri querida:
      Temos o maior carinho pelo curso de psicologia da Unijui, conhecemos a equipe que o fundou e ele foi fruto de um belo sonho que se realizou, por isso muito nos orgulha que nossos livros façam parte da vida dos estudantes da universidade! Não bastasse isso, participamos também da tua maternidade (não deves ter sido assim tão bruxa…)! bom, por tudo isso, só nos resta agradecer!
      abraços
      Diana e Mário

  2. Mario e Diana,
    Mais uma vez, obrigada! Como sempre, vocês me ajudam a pensar em muita coisa da vida e da clinica. Fiquei babando pra ler o “Livro Negro”. Dessa semana nao passa. E por favor, nao nos privem jamais desses textos no blog!
    Beijos
    Rosane

  3. ana maria permalink

    Faço terapia há 13 anos e este texto só confirma o que aprendi nestes anos todos com minha médica. Nem sempre é preciso nomear o sofrimento, outras vezes, no entanto, dar nome aquilo tudo que vivemos parece acalmar a angústia.
    Uso medicamento há anos e, só quando entendi da necessidade dele e seus benefícios é que consegui conviver normalmente com a ideia.
    Meu filho adolescente, faz terapia há oito anos,e quando a médica dele diagnosticou Transtorno do Pânico, precisou fazer uso do medicamento.Ainda que relutasse, aceitei e vi o quanto ele foi beneficiado e seguiu a sua vida normalmente. Sei de pais que não aceitam o uso de medicamentos nos filhos e vejo aí um egoísmo que prejudica. Sempre me cerquei de profissionais competentes, aos quais confio a nossa saúde,o que me dá segurança nas decisões.
    Ler este texto é analisar toda a minha vida em busca de mais saúde.Muito bom! Obrigada

  4. Sandro permalink

    Estimados Mário e Diana,

    Tenho acompanhado o trabalho de vocês desde os tempos de acadêmico do curso de Psicologia da Unijuí, o qual entrei em 1997. Hoje trabalho há 8 anos como professor da Unoesc – Universidade do Oeste de Santa Catarina, e digo com grande satisfação que tenho trabalhado seus textos e indicado seus livros a meus alunos nas disciplinas que ministro de Psicanálise e Psicopatologia, e tenho me surpreendido com a clareza com que vocês trabalham conceitos e temas complexos. Obrigado por manterem o site sempre atualizado. Abraços, Sandro

    • Diana permalink

      super obrigado sandro pela longa jornada juntos! tenho certeza que tuas aulas, animadas pelas escrevinhações que cometemos, devem aumentar muitos pontos aos nossos contos! abraços!
      Diana

  5. Aline permalink

    Estava pesquisando sobre antidepressivos e vi a indicação deste livro. Procurando o mesmo achei esta resenha. Ela me foi muito condizente com a leitura de outros estudo ( ex.: The Emperor’s New Drugs: Exploding the Antidepressant Myth) e principalmente, com minhas constatações pessoais. Mas fiquei fascinada com o discursivo de vocês, é o primeiro texto que leio. Gostei muito da parte em que abordam o usual efeito colateral do diagnóstico da doença mental, o qual faz o indivíduo desamparado se fincar, se sustentando e se justificando.
    Estou passando por um difícil período e devido a sua lastra duração, ponderei procurar um psiquiatra para começar a fazer uso de antidepressivos. As leituras de estudos pós e contras os remédios me deram um novo direcionamento. Vejo que meu caso não é severo para necessitar de um suporte medicamentoso e que em minha situação, iria ser querer camuflar – ou enfeitar – o problema; achando que este depende de uma solução externa e não interna. Acho que o um dos maiores benefícios e também malefícios dos remédios na psicopatologia, é a entrega da responsabilidade a estes.
    Em fim, este belíssimo texto falou alto comigo. Ele sim lançou uma luz sobre a obscuridade 🙂
    Parabéns pelo trabalho.

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