O Caso do Professor

Nós psicanalistas somos de poucas palavras sobre nossos pacientes. A discrição sobre as vidas envolvidas pede isso. Porém a morte dos protagonistas envolvidos permite que eu possa contar uma experiência clínica ímpar. Um dos mais enigmáticos casos com que me deparei, que até hoje me faz pensar, e sigo sem respostas satisfatórias. Quando conheci o […]

Nós psicanalistas somos de poucas palavras sobre nossos pacientes. A discrição sobre as vidas envolvidas pede isso. Porém a morte dos protagonistas envolvidos permite que eu possa contar uma experiência clínica ímpar. Um dos mais enigmáticos casos com que me deparei, que até hoje me faz pensar, e sigo sem respostas satisfatórias.

Quando conheci o Professor, era assim que todos o chamavam, ele já era considerado um caso perdido. Andara por diversas clínicas particulares sem nenhum progresso. Sua esposa e amigos seguiam insistindo, não aceitavam que um homem de seu porte, depois de tudo que realizara, não recobrasse a razão.

Veio parar no hospital público não pela falta de posses, mas pela esperança depositada num psiquiatra importante que trabalhava no local, que já tivera sucesso com vários casos crônicos. Dessa vez ele não conseguiu nada. Seguia apenas tentando medicar o paciente que, nesse momento, se recusava a tomar medicação e mesmo a falar com ele.

Como estagiário de psicologia, coube-me acompanhá-lo. Foi praticamente um acaso, consideravam que, mesmo sem esperanças, alguém deveria seguir tentando. Minha supervisora me incumbiu de atendê-lo diariamente. As instruções eram mínimas: tente qualquer coisa.

Nem ao menos tínhamos um quadro clínico definido. Cada instituição pela qual passara dizia uma coisa. Sua pasta com o histórico foi de grande ajuda, pois ele recusava-se a falar de si. Montei sua história a partir dos depoimentos dos outros profissionais. Tudo era atípico. Aos 63 anos teve uma crise (que então já durava três anos) da qual ainda não tinha saído. Sua vida pregressa era exemplar: era um homem inteligente, sempre ativo, intelectualmente precoce, e dedicou à vida universitária seus melhores esforços. Casou jovem, não teve filhos, mas pelo que se sabia, era um relacionamento tradicional, estável e, ao menos aparentemente, feliz. Perdeu os pais na meia idade e fez um luto considerado normal. A família pequena era compensada por um grande número de amigos e discípulos. Na vida profissional era curioso, andou por vários cursos e muito do que a UFRGS é hoje se deve a ele. Não foi reitor por que não quis. A burocracia o incomodava, preferia abrir novos cursos e seguir dando aula a ficar atrás duma mesa.

Portanto era normal que o mundo não aceitasse sua retirada. Ainda mais que não haviam desencadeantes visíveis para a crise. Ele não perdera ninguém recentemente, gozava de boa saúde, estava bem financeiramente, tinha o mesmo prestígio que sempre tivera. Por que adoecera repentinamente, de uma forma grave e sem avisos?

Catatonia, paranóia, esquizofrenia, psicose maníaco depressiva, melancolia todos esses rótulos ele já ganhara nas diversas instituições psiquiátricas em que passou[1]. Quem sabe um pouco de clínica se dá conta do quanto os profissionais que lidavam com ele estavam perdidos, pois esses quadros não são próximos, são excludentes. Mas não se pode acusar a ninguém, por exemplo, numa das clínicas ficou um mês sem proferir palavra. Permanecia sentando olhando para os cantos sem comunicar-se de forma alguma. Classificaram, e todos fariam o mesmo, como um quadro de catatonia. Em resumo: os prontuários pareciam não falar do mesmo paciente.

Na época acreditava-se que o primeiro diagnóstico, de paranóia, era o que mais se aproximava, o único que poderia costurar um sentido. O Professor disse, quando de sua primeira internação, que uma descoberta científica aterradora tinha lhe paralisado, e que ele seria demasiado frágil para suportar tal revelação. Por mais que essa afirmação despertasse nossa curiosidade, ele não comunicava essa descoberta por ser algo que não deveríamos saber. Considerava que com essa conduta estaria nos protegendo. Isso explicava seu mutismo.

Um exame dos prontuários e, certas informações que corriam em paralelo, nos faziam pensar que a primeira conduta que ele recebeu foi precipitada e inadequada com péssimas conseqüências. O Professor, por ser muito inteligente, logo percebeu que tomavam sua fala por um delírio. Após isso, calou-se e desprezava a ajuda psiquiátrica.

Meu começo com ele não foi muito diferente. Cheguei, me apresentei, disse minhas intenções e o Professor riu. Riu muito, eu não sabia o que fazer, mas achava positivo, seu quadro era geralmente depressivo e ficava dias sem falar. Pouco depois ele explicou-se. Achava que as apostas nele já haviam chegado ao fim quando escalaram-me para acompanhá-lo, pois eu seria o reserva do reserva. Além do mais, dizia que eu teria idade para ser seu neto. Ria de mim e de todos os profissionais que tentavam lhe ajudar. Passou a me chamar de: o Reserva. Pelo menos começamos e algum laço, ainda que de desqualificação, tinha se instalado. Riu ainda mais quando eu lhe disse que se não funcionasse comigo iriam levá-lo a um pai-de-santo, esse sim seria o último recurso.

Apesar dum certo bom humor das nossas conversas o Professor era uma esfera. Eu não tinha como pegar nada, não falava de sua condição, mas pelo menos falava comigo.

Certo vez lhe dei bom dia e ele me respondeu: “– como que alguém, que já trabalhou com César Lattes em Berkeley, pode estar se sentindo internado num hospício pulguento, tomando o pior café do mundo, conversando com um aspirante de psicólogo”. Senti uma entrada. Fiz um pequeno discurso sobre César Lattes, a sua fantástica descoberta, e o não reconhecimento da comunidade científica internacional ao seu trabalho. Terminei com um: “nos roubaram o Nobel” e que os cientistas nacionais não tinham o devido reconhecimento, que era muito duro fazer ciência na periferia do mundo.

A clínica também é feita de sorte. O que eu sabia de física era o que tinha aprendido com o meu irmão, que é físico, e seus amigos. Esse discurso sobre César Lattes eu já ouvira de vários deles. Eu sabia pouco de física, mas o suficiente para parecer que sabia mais de física, claro, desde que não me fizessem perguntas. E como eu estava lá para escutar… Eu saí na defesa dos cientistas não reconhecidos, mas na verdade em sua defesa, imaginava que seu narcisismo científico (essa era a tese da minha supervisora) pudesse estar abalado. Um homem da sua inteligência e projeção poderia estar sofrendo por sair da vida sem uma descoberta.

De alguma forma isso funcionou e ganhei certa confiança do Professor. Falei da minha passagem pela engenharia, antes da psicologia, e por isso saber sobre ciências exatas. Ganhei sua simpatia quando defendi que os saberes não deveriam estar afastados. Ele me dizia que o ensino especializado era o caminho para o empobrecimento da ciência. A partir dessas conversas ele passou a me contar de sua formação, de aspectos da física, de matemática e sua admiração por Gauss, das últimas descobertas científicas. Confesso que não entendia tanto quanto sua sabedoria mereceria, acompanhava seu raciocínio na medida do possível. Esperando para recolher cacos de informações sobre sua vida que emergiam entre as últimas novidades do mundo subatômico.

O importante é que falava de si, pelo menos algumas coisas da vida acadêmica. Recriminava-se por não ter feito mais pesquisa, reclamou que a universidade não lhe apoiava, que os laboratórios são muito precários. Gostava de dar aula, mas sentia que tinha poucos bons alunos.

Um dia lhe contei que lera os prontuários da sua primeira internação e perguntei qual era a descoberta que fizera, se poderia me contar um pouco dela, ou de por que ela lhe fizera sofrer tanto. Ele me mandou embora. Ficou dias sem permitir contato. Uma semana depois consentiu em me receber, disse que poderia me contar alguma coisa. Minha escuta respeitosa deve ter lhe feito alguma falta.

Começou dizendo que não era o que ele descobriu o problema, e sim que isso lhe permitia entender sua vida outra maneira. “Revi a minha vida inteira e foi isso que me fez adoecer”. Disse que finalmente entendeu seus pais, o que ele significava para eles e que isso era insuportável. “É muito difícil saber que nasci sem amor e que nunca signifiquei nada para eles, eu fui um estorvo na vida deles”.

Perguntei como que alguém sem amor pode ter se dado tão bem na vida. Ele me disse que é possível, por que ele antes se acreditava amado. “Mas um dia vi tudo”. Insisti no “vi”, perguntei por que ele usava o verbo ver no sentido de entender.

Ele me explicou com uma metáfora que ajudava a entender sua compreensão das coisas: pediu-me para imaginar uma sociedade de cegos, que apesar disso, com muita inteligência e os outros sentidos, pudesse construir uma civilização, uma história. Como se as minhocas evoluíssem em tudo menos na visão; mas um dia ocorresse que uma delas começasse a enxergar; tudo mudaria, ela seria diferente de todas, pois aquela minhoca veria o mundo em um plano acima,  “é assim que me sinto, eu vejo acima das coisas, eu vejo o fluxo do mundo.”

Claro que eu lhe perguntei sobre o “fluxo”. Esse fluxo seria a série de causalidades que está em tudo. Nada seria por acaso, tudo teria um sentido, a questão é que nem todos conseguem ler esse sentido. “Quando somos supersticiosos, e escolhemos uma roupa e não a outra, colocamos primeiro um sapato e não o outro, na verdade estamos intuindo uma compreensão maior que nos escapa, mas que sabemos que está aí. Os pequenos gestos estão conectados com as grandes coisas.”

Ele fez uma preleção histórica sobre as maneiras de prever o futuro na antiguidade, as leituras em entranhas de animais sacrificados, o vôo dos pássaros, as folhas de chá dispostas na xícara, e tantas outras. Dizia que eram intuições sobre o fluxo e que estavam na pista certa. Depois entrou na minha área e me perguntou o que todos acreditavam que era um sonho antes de Freud, uma incoerência sem sentido. Pois bem, depois dele é possível, de certa forma, decifra-lo. Seria a mesma coisa.

Contou-me duma experiência singular que lhe deixou uma marca permanente e que o fez pensar na densidade do tempo e o ajudar a entender o fluxo. Envolvera-se uns dez anos atrás num grave acidente de automóvel. Não morreu por um detalhe. Quando estava derrapando no rumo certo a bater de frente em um caminhão teve um insight da sua vida, como se visse ela toda numa contração. Pensou em repetir o fato sem a sensação de morte e entender a vida numa apreensão de um só tempo. Disse que consegue, mas:

“Nem todos estamos preparados para ver isso. É uma pena que fiz uma descoberta que não tenho como levar adiante. Não por ela, mas ver a minha vida como ela realmente é, me é insuportável, é uma tortura infinita. Eu me sinto muito mal o tempo todo, não tenho forças.”

Disse também que depois de entender não dá para voltar atrás, tudo é relido de acordo com essa nova visão. Ele dizia que falava visão, mas que era uma lógica das causalidades, uma visão de mundo, uma maneira de perceber a ordem no caos aparente dos acontecimentos.

Tentei que esquecêssemos da teoria, que talvez eu nem fosse entendê-la, visto ele me dizer que era graças a um bocado de conhecimento matemático e físico que se poderia chegar lá. Mas que poderíamos nos concentrar em entender os seus pais. Ele me respondeu que tudo que ele queria era “desentender” seus pais, pois entendê-los lhe fizera muito mal. Insisti, disse que pior não ficaria. Então ele me contou duma infância sofrida, mas normal. Era filho único de pais europeus, fugidos da segunda guerra. Eram tristes por ter deixado lá suas famílias e posses, mas que se deram bem por aqui. Falava dum universo frio, duma vida mecânica de funções, ele tinha um bom pai e uma boa mãe, mas era como se eles não estivessem ali. E assim eram um com o outro. Falava de seus pais como se tivesse sido criado por robôs exemplares. Muita atenção, muita disciplina, mas nenhum afeto. Quando ele entendeu o sentido do fluxo, a primeira coisa que lhe veio a cabeça foi o sem sentido de sua vida e do mundo, e o que ele representava para seus pais. Perguntei se o sem sentido da sua vida não poderia contaminar a percepção dos outros sentidos do mundo. Ele parou para pensar, mas nunca me respondeu.

Um dia tentei mobiliza-lo pelos esforços que fazia sua esposa. Se os seus pais foram o que foram, ele poderia viver do presente, havia alguém lhe esperando em casa. Disse-me que eu estava enganado. Que escolhera uma mulher-geladeira tal como sua mãe, e que o que ela não suportava na sua doença era o fato dele não estar lá fazendo seu papel de bom esposo. “Em casa eu já estaria melhor, mas é ela que insiste em me manter em hospícios. Eu não melhoro nada aqui, então por que não me deixam voltar para casa? Sabe por quê? É ela que não deixa, que quer que outros cuidem de mim, ela jamais cuidou”.

Naquela semana me perguntou se eu estava feliz pelo que aconteceria ao país. Estávamos na véspera do encerramento do período militar, finalmente um civil voltaria à presidência. Eu disse que sim.

Pois bem (disse ele) te prepara, não vai ser assim, ele não vai assumir.

Fiquei surpreso, perguntei se haveria outro golpe militar. O Professor me disse que não, mas que lhe parecia que tudo apontava que Tancredo iria morrer. Perguntei se a teoria do fluxo permitia entender também o futuro. Não seria tão simples, mas ele poderia ver as direções predominantes e que era mais provável que ele não assumisse. Depois se corrigiu e disse que era quase certo que não assumiria.

– Vão matá-lo? Perguntei.

Não, morrerá num hospital. Respondeu sem hesitar.

Brincando, lhe perguntei se ele saberia prever de que lado cairia uma moeda que tirei do bolso. Respondeu-me que seria muito difícil, afinal era um evento isolado, que o fluxo era tão mais claro quanto mais fatores estivessem incluídos. “O fluxo é o contrário da ciência normal, quanto mais dados mais fácil de prever para que lado as coisas se inclinam. Nos eventos de grande influência, que significam mudança para todos, todos participam de uma maneira minúscula, com pequenos gestos. O que acontece é a soma desses esforços múltiplos, mas que não são percebidos. Porém, se percebemos os pequenos gestos e examinarmos as tendências, aproximadamente saberemos do resultado final. Levamos séculos para entender que cada célula contém informações no seu DNA para deduzir o conjunto que ela forma, da mesma maneira, cada tijolo da história, cada momento histórico, contém informações sobre a totalidade do nosso destino.”

Terminou falando de estatísticas e fórmulas matemáticas das quais eu não entendia quase nada. Arrematou com teoria quântica. Nunca me senti tão mal por ter estudado pouca matemática e física, não conseguia acompanhar o raciocínio, aquilo me fazia lógica, mas eu não entendia até o fim. Sugeriu-me que fizesse uma experiência, que eu não precisaria mais do que uma mesa de bilhar, foi assim que ele descobriu. Eu iria ver que a lógica das batidas das bolas estava tanto na força e direção como no momento. Ele diz que o bom jogador não é aquele que acerta, mas aquele que acerta no momento apropriado. A intuição que certos jogadores possuem na verdade seria fazer o lance no momento certo. Por isso a espera em dar o bote, seria preciso alinhar o golpe com a pulsação do momento. Outra vez me diz que inconscientemente nós percebemos o fluxo, que a intuição é isso. O tempo não é contínuo, ele pulsa, e existem pulsos dentro de pulsos. Nosso erro é perceber o tempo mecanicamente, como os relógios e não como ele é. Quem não percebe a pulsação pode fazer tudo certo, mas no momento errado, e o resultado é que não dá certo. O fato é que nós agimos no mundo como um surfista que quisesse pegar a onda não quando ela vem, mas a qualquer momento, portanto não esperando o momento oportuno. Quando dá certo é por acaso ou por intuição.

Na hora não dei muita importância para a previsão, aliás, em nenhum momento pensei que fosse, estava centrado na lógica do pensamento do Professor. Porém durante os dias que se seguiram, enquanto o país estava pendente da agonia de Tancredo Neves, essa causalidade ou previsão me assombrou. Tinha absoluta certeza que ele me falara muito antes de qualquer informação sobre a saúde do futuro presidente.

Não sabia como contar à minha supervisora essa coincidência, ou sei lá como chamar. Comecei a falar de leve, pelas bordas. Ela ficou contente, disse que o material nos inclinava a pensar o caso como uma paranóia. Finalmente teríamos pelo menos um diagnóstico confiável. Porém ela considerava que a inteligência e a cultura extraordinárias do Professor turvavam minha compreensão. Seu conselho foi que eu não me intimidasse, que no meu lugar ela também seria levada pela contra-transferência, e que seguisse conversando com ele sobre o seu delírio. Disse que ele não previu nada, que estava falando de seu medo de morrer num hospital, até por que ele estava num hospital, e que o ego dele era exagerado como para se identificar com o presidente. Não consegui dizer que eu mesmo estava em dúvida quanto ao caráter desse delírio. Tampouco houve abertura, ela não quis nem saber quando tentei explicar com Jung, evocando a sua teoria da sincronicidade. Aliás, seria um avanço nessa teoria.

Fiquei sem respostas. O tratamento foi interrompido por uma crise de vesícula. O Professor foi resgatado do hospital psiquiátrico com pompa e circunstância e levado para o hospital universitário. Finalmente a medicina sabia o que fazer e sentia-se em condições de dar-lhe um tratamento à altura do que ele significava.

A doença melhorou sua saúde mental. Falava atenciosamente com as inúmeras visitas, estava outra pessoa. Por azar ou por sorte, julguem vocês, ele permaneceu doente muito anos, praticamente até sua morte. Aproveitando que estava no hospital, fizeram os exames de rotina e descobriram um princípio de câncer no intestino. Apesar do bom prognóstico inicial, ele lutou contra esse câncer vários anos. Passava longos períodos no hospital e outros em casa recuperando-se das inúmeras cirurgias. Mas nunca voltou para uma internação psiquiátrica, pelo que eu soube, tampouco a depressão e mutismo o tomaram de forma avassaladora como antes.

Como ocorre em inúmeros casos, a doença pode dar sentido para a existência. A vida durante a doença é brigar contra a morte e muitas pessoas estão lutando ao lado do paciente. Isso pode ser um inferno para a maioria, mas pode funcionar como um descanso para uma personalidade melancólica. Nesses casos pode ocorrer uma transformação da paranóia em hipocondria. O inimigo já não está do lado de fora, mas dentro do corpo, agora tem um nome e todos entendem e reconhecem seu sofrimento.

Voltei a ver o Professor poucas vezes e nunca mais a sós. Minha pouca idade e experiência me impediam de ser levado a sério. A esposa não me conhecia, até percebia o afeto mútuo que tínhamos, mas não reconhecia minha vontade terapêutica. Eu fazia parte dos que erraram com seu marido. Minha supervisora tentou um contato com o hospital e eles foram refratários e nos acusaram de talvez ter deixado passar uma caso de psicose tóxica. Ela ironizou perguntando se eles iriam escrever um paper contando sobre o incrível caso de psicose tóxica de três anos e meio com os rins e fígados perfeitos (nós tínhamos a ficha médica em dia). Mas nada conseguiu. De qualquer forma hoje me culpo por não ter insistido mais.

Mas não escrevo essas linhas para iluminar um caso obscuro, creio que não consigo avançar no entendimento. Escrevo para tornar nulo meu entendimento anterior. Aconselhado por minha supervisora, e pelo psiquiatra responsável pelo paciente, apresentei esse caso à equipe numa reunião científica. O objetivo de ambos era tanto me parabenizar, gostaram da condução do caso e do vínculo que eu consegui onde tantos falharam, como dar o caso por encerrado com o diagnóstico de paranóia.

Na época não consegui me opor. Existe um relato desse caso no Hospital Psiquiátrico São Pedro, numa divisão que já nem mais existe, de qualquer forma deve estar no arquivo central. Pois não reconheço mais esse documento assinado por mim. Sinceramente não sei se era uma paranóia. Talvez, mas minha consciência pede que a dúvida permaneça até que tenhamos avançado mais no entendimento das doenças mentais. Certos diagnósticos são dados mais para o nosso conforto do que realmente refletem uma compreensão do que ocorreu. Meus superiores queriam transformar nossa derrota em sucesso, pois teríamos “resolvido” o caso. Creio que ajudei a incorrer nesse erro e menosprezei suas palavras e sua teoria. Peço desculpas póstumas, ainda que inócuas, ao estimado Professor. Deixo o diagnóstico em aberto. Talvez, algum dia alguém nos explique o que é o fluxo.

Publicado na revista Norte, edição de junho de 2009


[1] Lembrem-se que uso a nomenclatura psiquiátrica da época, aliás, já era ultrapassada naquele momento, mas seguia em uso, estávamos no começo dos 80.

19/06/09 |
(1)
Um Comentário
  1. Antonia permalink

    Gostei muito do artigo, sou professora e sempre acreditei que o mais importante para as pessoas é ter a oportunidade de serem ouvidas com respeito, ainda que suas palavras pareçam absurdas. Acho que o estagiário contribuiu para amenizar o sofrimento do paciente, se é que ele estava mentalmente doente, que finalmente pôde ser levado a sério. Para fazer um bom trabalho é preciso ao meu ver buscar o conhecimento nas diversas áreas da ciência e debatê-lo com diferentes profissionais, para que possamos nos aproximar de uma solução para problemas aparentemente complexos. Parabéns pelo artigo.

Comente este Post

Nota: Seu e-mail não será publicado.

Siga os comentários via RSS.