O direito de renascer

Crianças desaparecida em novela da Globo

Pais e filhos desaparecidos encontram na novela motivo para um reencontro

Mais uma novela da TV Globo se encerra, nenhuma novidade, pois uma percentagem bastante grande de famílias brasileiras continuará ligada em mesmo lugar e horário assistindo ao próximo desfile de personagens da novela seguinte. As histórias se sucedem como as escolas no Sambódromo, cada uma traz seu tema e o público samba seu enredo no camarote. Após sua passagem, infiel, sambará ao próximo assunto. Mas será que nada fica?

Apesar da futilidade das novelas e seu público, devemos observar interessantes epidemias que este e outros programas têm gerado. Recentemente, por exemplo, um programa deste mesmo tipo originou um saudável movimento de doação de órgãos. A tendência daqueles que tem em alta conta  sua cultivada ética pessoal, é olhar estas convulsivas iniciativas populares com um certo desprezo, afinal, pensam, que gente mais lábil! Não tem seus próprios princípios, fazem o bem só porque viram na TV! Acreditamos, porém, que a questão é um pouco mais complexa e leitores e telespectadores não são assim tão manipuláveis.

No momento presenciamos este fenômeno relativo às crianças desaparecidas e reencontradas. O tema partiu de quadros inseridos na novela “Explode Coração”, onde mães e pais divulgavam fotos, nomes e apelos pela volta de seus filhos desaparecidos. Sabemos que o retorno de iniciativas como esta é surpreendente, muitas destas crianças de fato reapareceram.

Mas não só na novela de televisão, o problema das crianças desaparecidas tem encontrado franco espaço a nível de toda a mídia. Nossa cotidiana leitura de jornais tem acompanhado sucessivos folhetins protagonizados quer por um bebê deixado na lixeira, quer por outro abandonado na rodoviária, ou por duas gêmeas estrangeiras entregues por um táxi na casa de um surpreso técnico de aviação, só para mencionar as mais recentes histórias. Mas que relação há entre as “mães da cinelândia”, com Ana Vitória, o bebê abandonado pela mãe na Rodoviária de Porto Alegre, com Jasmina e Sabrina, as gêmeas suiças seqüestradas, com a criança recentemente encontrada no lixo? Afinal, são situações tão diferentes!

O   que estamos assistindo é uma revalorização das crianças desaparecidas através da novela, os bebês que a mídia tira do lixo são as crianças mendigas, espancadas, usadas, que ganham novo registro de nascimento através da proclamação do amor dos pais na TV. Sabemos que entre estas crianças desaparecidas há crianças seqüestradas, situações horríveis que fazem o pânico dos pais de hoje. Porém muitas destas crianças desapareceram porque eram maltratadas, seviciadas e descuidadas em suas casas, foram embora porque não tinham nenhuma razão para ficar! Porque estes pais as querem de volta? Para usá-las novamente?

Acreditamos que não. A televisão, o rádio e o jornal estão sendo hoje verdadeiros cartórios de registro, onde paternidades ganham estatuto de existência, crianças são batizadas e famílias encontram razão de ser. A mídia é um espaço de reconhecimento simbólico em nossa sociedade. Ela não apenas retrata a miséria de nossas relações pessoais, ela as transforma. 

Pensemos em termos práticos: o que significa ter um filho para alguém cuja própria vida não vale um tostão furado nem hoje, nem quando nasceu, nem quando ficar velho? Os filhos são amados enquanto extensão de nosso narcisismo, se nada valemos, não há motivo também para desejá-los. O triste fim de alguns dos nossos pequenos brasileiros é o mesmo nosso, eles mendigam, como faz o Brasil, queremos crédito e reconhecimento. O crédito é a esmola que lhes damos na sinaleira, o reconhecimento é o que estamos presenciando na novela. Ser buscado através da TV ou do jornal, ou da embalagem de um produto é para muitos, um espaço de renascimento, a possibilidade de valer algo para alguém.

Sabemos que este movimento teve um de seus pontos de partida na dor de um pai empresário que perdeu seu filho numa circunstancia acidental e traduziu seu sofrimento durante o desaparecimento, assim como a felicidade do reencontro, num gesto de ajudar outros pais a encontrar seus filhos divulgando suas fotos e nomes. Este exemplar ponto de partida só corrobora quanto buscar um filho desaparecido é uma proclamação de amor, significa reconhecer sua falta. Os pais das crianças que desapareceram porque nada significavam para ninguém, assim como os próprios pais tampouco eram importantes para ninguém, ao poder chamar este filho de volta na novela ou no jornal, propiciam seu renascimento, agora enquanto desejados, agora como algo capaz de ter algum valor.

O interessante é que este jogo de esconde-esconde entre pais e filhos na novela das oito não é pontual aos que se perdem e buscam realmente, mas ganhou um espaço no imaginário das crianças. Toda família já assistiu às lágrimas de algum filho que mediante a demora dos pais para buscá-lo na escola se imagina abandonado. Como ele pode pensar uma coisa destas? Será que ele não sabe que jamais seria abandonado? Sabe. A criança sabe que é amada mas lhe é necessária a dúvida. Se duvida é por desconfiar que há divergências entre o que ela é e o que dela se espera, porque percebe que não consegue ser a imagem e semelhança dos ideais dos pais. Apesar de que Papai Noel termina por trazer os presentes ao final do ano, reconhecendo seu bom comportamento, ela no fundo sabe que teve muitas falhas.

Temos assistido um efetivo engajamento de crianças e famílias nada abandônicas na fantasia do desaparecimento, uma criança que se perde já imagina a mãe procurando-a na novela, outra temporariamente distanciada dos pais sofre ao assistir as mesmas cenas, o fato é que muitas se ocupam do tema.

O que observamos aqui é uma certa democratização do problema do amor aos filhos, com a mídia explicitando duas faces da mesma moeda. Os pobres encontrando lugar na preocupação dos pais como se fossem ricos seqüestrados, os ricos temendo desaparecer como uma criança sem nenhum valor. Explicamos:

Como dizíamos acima, todo filho, mesmo o mais amado, duvida da consistência do seu lugar. Temos observado a presença muito marcante nas crianças de hoje da fantasia do desaparecimento, a qual, muitas vezes não passa de um terror difuso sem nem a idéia da morte trágica a sustentá-la. Mas o que há nesse lugar de filho que todo o amor e a dedicação que os pais contemporâneos possuem não consegue tornar seguro?

A insegurança sobre nosso próprio valor é universal e democrática. Os pais, como todo ser humano adulto, dependem de uma série de atributos de beleza e posses, de uma cuidadosa construção de uma sempre duvidosa consistência pessoal para ser alguém. Como nunca, nesta época do império da comunicação instantânea  e das imagens, sabemos que podemos ter nossos 15 minutos de glória, mas que por isso mesmo a nossa importância é fugaz. Vivemos tempos de depressão e mania, assim fazendo das drogas de controle de humor, as legais ou ilegais, parceiras das incertezas. Como então transmitir segurança aos pequenos?

No entanto apesar de nossa eterna queixa sobre a falta de tradição que torna tão fugazes nossos valores e saudosas as heranças dos antepassados, não enlouquecemos nem nos transformamos na sociedade da barbárie! Encontramos outros caminhos pelos quais constituir um mundo capaz de assimilar a pressa e a obsolescência própria à sociedade dos tempos de Bill Gates. E precisamos reconhecer o valor que a mídia assumiu nessa nova forma de cidadania.

Nossa postura é indicativa de que consideramos que há um avalista que pode sanar as eternas dúvidas sobre o lugar da verdade, da certeza: verdadeiro é o que aparece na TV, é o que está no jornal. Mesmo que se trate de ficção, trata-se de uma ficção operante em nossa vida, que é tão forte que termina por se imiscuir no próprio desenlace dos dramas amorosos e familiares. Todos nós já assistimos ou protagonizamos alguma surrealista conversa que refere aos personagens da novela com tal familiaridade, que um desavisado julgaria que se trata de algum parente do enunciante! Muitos casais encontraram na novela formas de expressar suas questões, ser tal como o fulano e a fulana, muitos jovens homossexuais encontraram a partir de uma novela recente, oportunidade e coragem para revelar sua condição à família. É sempre interessante lembrar que a relação dos consumidores com a mídia é de mão dupla: a TV e o jornal também nos apresentam o que queremos ver e ler.

Para que não fiquemos restritos às novelas de TV, vamos aos outros casos antes mencionados: comecemos pelo recentíssimo caso de Ana Vitória. A história é brasileiríssima: um bebê é abandonado por uma mãe que não desejou te-lo nem mante-lo em mãos de outra mulher na rodoviária. O bebê, através das autoridades, termina num hospital onde a equipe que a atende tem a sábia atitude de lhe dar um nome: aqui nasce Ana  Vitória. Aqui? Não exatamente. Sua história vai para o jornal. É aqui que nasce Ana Vitória! Aparecem  pai e mãe, assim como dezenas de candidatos a adotar o bebê famoso. O curioso é que o pai tinha um nome para ela: Pamela. É pena, senhor, chegou tarde, ela já havia sido batizada pela equipe do hospital e registrada no jornal Zero Hora. Depois disso, quem quer que fique com ela é questão legal. O importante para nós é presenciar este surgir dos pais e de um ato de batismo não numa igreja ou num cartório, mas no jornal!

Assim como Ana Vitória “nasceu” para seus pais quando apareceu  no jornal, muitas crianças desaparecidas “renasceram” na  “novela da Dara”, como costumavam chamá-la. Muitas outras crianças fantasiaram perder-se e serem achadas, muitos pais também romancearam o mesmo em seus pensamentos.

As histórias de Jasmina e Sabrina, as gêmeas suiças,  assim como do bebê encontrado na lixeira e o espaço que tomaram em nossas vidas, são atestados de que o lugar dos filhos é uma questão importante para nós. Certamente estamos  perguntando-nos se os novos brasileirinhos devem ocupar a lixeira, a sinaleira ou encontrar o caminho do aeroporto, que já foi considerada a melhor saída para o Brasil.

Ser perdido para reencontrar-se nas respostas às perguntas sobre o quanto somos amados e importantes para alguém, eis a questão. A pobreza se traveste de Shakespeare para que, mediante a encenação da tragédia, o espectador elabore suas próprias fantasias. Este é o nosso teatro, e cabe a estes sofridos atores protagonizar o evento pelo qual a cultura segue produzindo os mitos que alicerçam nossa subjetividade. Teatro mambembe de atores esfarrapados, cabe porém ao público com sua atenção e seus aplausos fazer deles alguém importante.

Publicado no Correio da APPOA, número 36 – junho 1996.

19/06/96 |
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