O Orgulho gaúcho

Reflexão sobre a auto imagem do gaúcho

Um conhecido meu ficou muito rico comprando argentinos pelo que eles valem e revendendo pelo o que eles acham que valem. Se você riu dessa história é porque não sabe que ele está pensando em diversificar e fazer o mesmo negociando gaúchos. E pior, ele acha que vai ganhar mais dinheiro ainda.

Você pode não gostar da piada, mas não pode negar uma coisa: nós gaúchos nos considerarmos especiais. Vamos aos fatos, ou melhor, vamos às crenças: o gaúcho, embora não diga diretamente, sente-se superior em relação ao povo desse grande país verde-amarelo, com seus vários estados, que nos faz fronteira ao norte. Não é que sejamos melhores em algo específico, mas na soma, na média do conjunto dos quesitos, nós somos mais nós. Claro que estou falando de algo subjetivo, não mensurável, é uma sensação de sentir-se melhor, que aliás, independe de comprovação factual. Parece tratar-se duma superioridade natural, bastaria ter nascido nesse torrão e respirar nossa história para sentir-se parte dessa alma gaudéria superior. Onde nasceu essa certeza vamos deixar para outro dia e fazer agora outra questão: isso nos ajuda ou nos atrapalha?

Quando escuto meus conterrâneos, a tese é que esse orgulho seria uma espécie de robustez psíquica, e mesmo que esteja um pouco acima do tom, melhor deixar assim, pois nos ajudaria no sentido de uma valorização coletiva, portanto, não nos faria mal. Eles não estão sozinhos: um dos pilares da psicologia do senso comum da nossa época versa sobre a importância da auto-estima, essa afeição que teríamos por nós mesmos. Segundo essa mesma crença, uma pessoa com auto-estima elevada teria possibilidade de ser melhor sucedido, já quem a teria em pouca quantidade estaria à beira da depressão, ou se arrastaria pela vida. Resumindo, um dos requisitos duma pessoa saudável seria ter bastante auto-estima, ou pelo menos, num equilíbrio favorável, digamos, uma auto-estima suficientemente boa.

O problema é que não é assim tão simples. Existem pessoas deprimidas e, portanto, com a tal da auto-estima baixa (conforme eles mesmos reconhecem), que são exitosas em todos os campos e, por outro lado, existem pessoas alto astral, prenhes de amor-próprio, que são um desastre crônico em todos os fronts. Isto acontece por uma razão muito simples, a auto-estima não resiste a uma investigação mais séria, ela é antes uma ilusão dos nossos tempos narcísicos, do que um conceito eficaz para entender ou operar no mundo real. A percepção que temos da auto-estima é um índice confiável apenas para sabermos quanta auto-estima temos, e não para garantir realizações. Os terapeutas que tomam o atalho de reforçar o ego do paciente com tais ilusões ganham um progresso momentâneo, em fazer o paciente sentir-se melhor, mas extraviam-se do caminho da cura. Afinal, um sujeito com parca autocrítica pouco pode fazer para melhorar.

Eu diria que a chave para o sucesso passa por saber avaliar nosso tamanho e o dos outros. Se você quer se dar bem na vida e acha que gostar de si mesmo e ter-se em alta conta é um passo certo, está redondamente equivocado. É antes a consciência do limite que ajuda alguém a chegar lá, é saber o quanto se é pequeno e não o quanto se é grande. Aliás, ainda falando de argentinos, diz-se que uma modalidade comum de suicídio por lá e jogar-se do alto do próprio ego. Como se vê, excesso de amor próprio pode ser letal.

Os economistas explicam a inflação como uma valorização falsa, decorrente de lançar moeda sem lastro, ou seja, cria-se a ilusão momentânea de ter dinheiro, que cobrará seu preço na desvalorização geral da moeda. Certas crenças no poder do autoconvencimento são ilusões desse tipo. A auto-imagem valorizada pelo papel moeda sem lastro da exaltação de si até funciona por um tempo, mas como não cria de fato riqueza, esbarra na realidade que vai apresentar a conta mais adiante. A seleção brasileira recentemente foi acometida dum surto de certeza e confiança alicerçadas numa ilusão de que era melhor do que as outras, todos assistimos onde foi dar.

Mas voltando ao nosso gaúcho e sua superioridade “natural”, em que mesmo ela se baseia? Acredito que o gaúcho não é delirante, é antes um nostálgico. Já fomos de fato maiores, e já tivemos mais importância no plano nacional. Porém política e economicamente estamos ladeira abaixo, os outros estados crescem mais que o Rio Grande do Sul.

Na relação com o Brasil, continente do qual somos conteúdo contrariado, primamos por atitudes ambíguas. Ora consideramo-nos vítimas, resmungamos pelos cantos, queixando-nos da falta de relevância política, da não destinação de verbas, alijados das políticas café com leite de ontem e hoje. Contraditórios, de vítimas passamos à posição de estrangeiros superiores. “Eles” não nos favorecem porque não nos misturamos com essa gente inculta e preguiçosa, pareceria que pagamos caro por uma suposta superioridade real. Essa crença sugere que nossa cultura, de inspiração ora européia ora guerreira, conforme a conveniência, guarnece os gaúchos de um acervo superior. Ambas crenças nos separam do resto do Brasil e impedem que tentemos superar nossas limitações, tanto de soluções quanto de influência política.

O que acontece com o gaúcho hoje é que ele se olha no espelho, não gosta do que vê, e, em vez de reagir, coloca uma foto antiga no lugar. Esse orgulho gaúcho saudosista e exagerado que anda por aí é a resposta patética do não reconhecimento de que estamos na segunda divisão. Nossa história nos fez um povo faca na bota, que não leva desaforo pra casa, talvez esse orgulho seja uma reação viril para defender um território imaginário cujo valor está estabelecido agora mais no grito do que nos feitos. Valemos o tanto quanto vociferamos com nossa galhardia. Está na hora de avaliarmos qual é de fato o nosso tamanho, pois o ponto inicial das futuras vitórias é reconhecer que se está na poeira. Pior: a conseqüência da cegueira gera uma onda conservadora e imobilista, afinal, para que mexer em time que estaria ganhando?

A primeira, necessária e mais impopular, medida tomada pelas pessoas que andam articulando o Pacto pelo Rio Grande é fazer todos crer de que estamos com sérios problemas, que “grande” hoje só no nome e no passado. Não pensem que acredito que um estado se reconstrói com base em receitas psicológicas, creio sim que será um árduo esforço para todos. Porém, como psicanalista, minha parte é apontar as ilusões que nos paralisam. É bom lembrar, embora não partilhe nem recomende, nada contra o orgulho de ser gaúcho, mas quando isso vira marketing e precisa ser lembrado a todo o momento, é por que virou o fio e já quer dizer outra coisa. Sinceramente, esse orgulho anda mais vazio que pastel de bolicho.

Publicado no caderno de Cultura do jornal Zero Hora
16/09/06 |
(5)
5 Comentários
  1. Daniela Barbosa permalink

    Estava procurando o vídeo do casal no Café Filosófico. Estou lendo Fadas no Divã e comentando com minha irmã sobre o livro, ela me indicou o programa. Acabei encontrando este post sobre “ser gaúcho”. Estive no Rio Grande com a família em janeiro, e rodamos bastante. Percebi este orgulho saudosista em vários bate-papos, mas também uma lacuna quanto a olhar-se no espelho hoje e, como você diz, colocar prontamente uma foto antiga no lugar da auto-imagem. De qualquer modo, este passado guerreiro é muito cativante, por isso, talvez, narcisista e paralisante também. Eu, carioca de avó gaúcha santanense, fiquei muito bem impressionada. Queria falar sobre São Miguel das Missões, porque estou repensando uma forma de trabalhar América Latina com meus alunos. Ando estudando bastante. O gaúcho da região vê o índio como estrangeiro. O pronome “nós” não inclui o índio. Há um discurso respeitoso, mas não uma vivência. Você mesmo diz: “nossa cultura, de inspiração ora européia ora guerreira, conforme a conveniência, guarnece os gaúchos de um acervo superior”. Minha avó tinha essa altivez, apesar de ser uma mulher simples. Nossa cultura de inspiração guerreira, gaúcha, brasileira, é índia também, e, nesse aspecto guerreiro da cultura, mais índia que europeia, não acha? Mas este capítulo da história gaúcha parece esquecido, até pelos próprios gaúchos…

    • Marcia Maria permalink

      Daniela Barbosa, concordo 300% com suas colocações! Sou gaúcha, e em visita a Porto Alegre, me chamou a atenção que nos pilares da catedral da cidade existem cabeças de índios! Fiquei muito curiosa. Comprei um livro sobre os Jesuítas, Guaranis e Missões, e então fiquei estarrecida em perceber que não lembrava de terem me ensinado nada na escola sobre a formação do nosso povo. Só lembro de coisas militares. Nossos livros escolares vem do RS? Houve uma tentativa de apagar essa marca de separatismo pelas ditaduras? Quando eu era criança, ‘Charrua’ era nome de guaraná, e ‘Minuano’, um refrigerante de limão ou o vento gelado! Veja as roupas dos charruas, e vais ver de onde vem os trajos típicos. Onde estão os nossos índios? Sepultados nas nossas almas? Se andares pelo centro de Porto Alegre, verás alguns grupos deles, vendendo colares ou cantando, e totalmente transparentes para nós. Não sei nem que língua falam..

      • Diana permalink

        Pois é Marcia
        o drama dos nossos indios é que em certa medida eles não são brasileiros, eles estão no Brasil, isso faz uma diferença, nós nos criamos numa tradição, num sonho europeu de fazer um país, e eles foram atropelados por isso, não escolheram e isso pode não lhes fazer sentido, é uma tragédia, especialmente para eles
        um abraço Mário Corso

    • Marcia Maria permalink

      Apenas para completar meu pensamento anterior, dói saber essa verdade, e temos esse um débito conosco (“nós”=todos os gaúchos). Talvez quando o gaúcho se enxergar nesse contexto maior, ele aprenda a dividir.

  2. Rita Ines Hofer Bonamigo permalink

    Adoro os artigos de vocês, aliás, com os quais me identifico bastante!!

Comente este Post

Nota: Seu e-mail não será publicado.

Siga os comentários via RSS.