Ócio não criativo

A febre dos livros de colorir evoca o direito das crianças acamadas, no passado, de ficar quietas e obsoletas.

Na minha infância ficar doente não era tão mau negócio assim. A convalescença era um tempo de regalias e uma boa dose de atenção extra. Claro, não valia se fosse algo grave, que significasse preocupação, hospital ou, o pior de tudo: injeção. Tínhamos sarampo, varicela, rubéola, caxumba. Pegávamos tudo, pois não havia vacina para a maior parte delas. Quando um irmão, parente ou amigo aparecia doente, éramos levados para “pegar de uma vez”, essa era a única forma de ficar imunizados. Nas famílias numerosas essas doenças faziam tantas vítimas quanto crianças houvesse na casa. Um amigo meu conta que uma das suas maiores tristezas era de que ele nunca pegava nada, sentia-se privado das vantagens dos doentes.

A prescrição de repouso era coisa séria, tínhamos que ficar deitados, de pijama, durante dias a fio. Para nos distrair, além da permissão para ver um pouco mais de tevê, haviam as revistinhas e os livros para colorir. A comida, embora em geral parente da canja, tinha a enorme vantagem de ser na cama. Enfim, ficar doente era ser reis por uns dias, as coceiras e febres até que compensavam. Naquela época esse tratamento era excepcional: ser criança não era tão importante como hoje, em que se pensa na felicidade delas o tempo todo. A lembrança desses tempos de ócio e mimos está fortemente associada aos livros de colorir que, para minha surpresa, tornaram-se uma coqueluche (para manter-se no tema) entre os adultos. São publicações com títulos como Jardim Secreto, Floresta Encantada ou Jardim Encantado, com gravuras lindas, detalhistas, que exigem muita atenção, dias de trabalho e mão firme para serem preenchidas. Tentei comprar um desses e fui informada de que os milhares de exemplares estavam esgotados, aguarda-se uma nova tiragem.

Os livros de colorir não são criativos, não é preciso pensar. A escolha da cor é o máximo de desafio que eles requerem. Alguém criou esses jardins de traços para que pudéssemos habitar seus espaços vazios com nossas cores da infância. Talvez estejamos mesmo meio doentinhos, precisando de uma canja na cama e ficar parados sem culpa.

O bom daquelas doenças, em que éramos objeto de cuidados especiais, era o fato de que não havia culpa, pegava-se sarampo porque era o certo a se fazer naquele momento da vida. Agora, quando adoecemos, penitenciamos por estar cuidando pouco do nosso corpo: há de se fazer mais exercícios, prestar mais atenção na alimentação, organizar melhor nosso tempo para dormir mais e melhor. Estamos exaustos de tantos mais, sempre mais. Não estranha que tanta gente esteja optando por ficar com os lápis de cor na mão por dias, completando espaços em branco. Também quero.

Um Comentário
  1. Amélia Tajes permalink

    Ganhei um caderno para colorir, mas jamais abriria mão de sair para dar uma caminhada saudável, ir ao cinema, ler um livro ou mesmo visitar um amigo. Acho que tudo pode ser feito com moderação e não interferir nos hábitos diários.

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