Comportamento
Exibir por:

Por que tantos peregrinaram ao ônibus da história “Na natureza selvagem”?

Qual o fascínio para os adolescentes da jornada de Chris ao Alaska?

O ônibus de “Na natureza selvagem” não está mais na natureza selvagem.
Recentemente, um helicóptero da Guarda Nacional do Exército do Alasca removeu o lendário ônibus onde Christopher McCandless encontrou o triste fim da sua jornada de filosofias e aventuras. O local tornara-se meca de perigosas peregrinações, de pessoas identificadas com sua história. Foram tantos os extraviados, resgatados com dificuldade, tendo havido inclusive casos de óbito, que as autoridades tiveram que remover esse “monumento”. O que foram tantos procurar em meio à inóspita paisagem alasquiana? Em nosso livro, “Adolescência em cartaz” dedicamos um capítulo a esse personagem, que existiu na realidade e tornou-se uma das grandes fantasias sobre a juventude. Abaixo, alguns excertos:

“Os alasquianos habitam um território no extremo dos Estados Unidos que, pela sua beleza e natureza hostil, desperta a imaginação de pessoas de outras regiões. Eles estão habituados à aparição de peregrinos e Christopher McCandless, um rapaz de 24 anos, oriundo de uma família classe média alta de Annandale, Virginia, foi mais um deles. Eles os vêm com certo desprezo, como assombrações que insistem em passar por ali, impulsionados por fantasias a respeito de si e do lugar e assim os descrevem: ‘jovens idealistas, cheios de energia, que se superestimaram, subestimaram a região e acabaram em dificuldade (…) há um bocado desses tipos perambulando pelo estado, tão parecidos que são quase um clichê coletivo.’”(…)

A região atrai todo tipo de aventureiro, em geral jovens, submetendo-se à rudeza da experiência como rito de passagem. A fibra necessária para enfrentar tal provação, os sofrimentos físicos e a superação dos medos, a solidão em que em geral essas viagens são feitas, se justificam na expectativa de consolidar uma identidade e de corroborar um valor que eles próprios possam acreditar que têm. (…)

“Vale questionar-se sobre as razões de por que a trajetória desse rapaz tenha se tornado livro, filme, motivo de debates acalorados, assim como inspirador de identificação entre aqueles que sequer gostam de aventuras na natureza radicais na natureza. Apesar de seus desejos eremitas, o autonomeado Alex era um entusiasta contador de sua própria história e de seus ideais, deixou suas andanças documentadas, além de comentários sobre as fontes literárias em que fundamentava suas crenças. A última aventura, por ser desastrada e dramática, tomou o centro da narrativa e o ângulo pelo qual o enxergamos, mas ele foi muito mais do que isso. Sua morte trágica, por inanição no Alasca, nos legou uma coleção de enigmas. Enigmais e pistas a respeito de como teria sido o encontro do jovem com a natureza e a morte. Sua tragédia real, fortemente inspirada na literatura avizinhou-se da poesia. Por isso os escritor Krakauer, o cineasta Sean Pen e neste momento nós também, assim como tantos outros, seguimos ocupando-nos dessa história, que se tornou mítica.
São poucos os que têm coragem de fazer a experiência radical de largar a vida comum e sair ao encontro da aventura, principalmente hoje, em que há uma enorme adesão a uma vida reclusa onde pode-se viver experiências meramente virtuais. Muitos desses jovens acomodados sonham com os verdadeiros riscos e as genuínas vivências de quem abriu mão de todas as comodidades e da segurança por opção, e não em nome de uma causa ou missão, ou ainda por ter sido convocado.
O sucesso do livro não é outra coisa que combustível para essa fantasia – e isso nos revela o desejo de fuga como uma das dimensões da adolescência. Na prática pode ser a migração para outra geografia, para outra cultura, mas, em muitos casos, como neste, para fora da cultura propriamente dita, como se a natureza o fosse purificar da sua história, como se ela fosse a única alteridade respeitável. Esta é a dramática história de um jovem buscando refundar-se com o mínimo apoio possível, longe de tudo e de todos.” (…)
“O interessante em estar na estrada é viver sem rumo, o que importa é o meio não o fim, não se vai a lugar algum, apenas se vai. Talvez possa ser lido como uma colocação em ato de uma das grandes questões dessa fase: como não sabem para onde ir, o caminho se faz ao andar. Assim vivem um eterno presente, esquivando-se da pergunta que ronda: o que vais fazer da tua vida? A pergunta é simples, singela, mas para muitos ela abre uma porta de pavor, sentem-se incapazes de responder e, imaturos demais para as exigências do mundo. Fogem da questão e de quem eles supõe que a fariam.
A tarefa de tornar-se alguém começa com uma incontornável alienação à história familiar, mesmo que os pais tentem ser democráticos. Subjetivação e sujeição se confundem, parecem o mesmo movimento. Tomar nas próprias mãos o resultado do que fizeram conosco e fazer algo peculiar, é a tarefa que cabe à adolescência desde que o individualismo tornou-se dominante. A revolta contra essa marca primeira de dependência, que tinge-se de uma espécie de mágoa por ter sido submetido a eles, volta com toda força nessa idade. Na verdade, eis a fonte daquilo que os adultos estão sempre denunciando como uma ingratidão dos mais jovens: deveriam reconhecer que quando eram desamparados seus cuidadores lhes dispensaram tudo o que precisaram para crescer. Porém, infelizmente, a gratidão nesse caso viria com o preço de continuar preso dentro de casa, agora pagando a conta. É por isso que os adolescentes não sentem como legítimos os pilares em que se sustentam, precisam relativizá-los, questioná-los e fantasiar uma espécie de auto-fundação.
Sua questão é como trocar os próprios fundamentos sem que a casa venha abaixo. É uma operação complexa, que exige livrar-se dos pais da infância, na tentativa de abafar suas reais ou supostas exigências. É preciso matá-los simbolicamente e sair vivo da empreitada. Fugir de casa ou partir e deixar de dar e receber notícias é uma das tantas maneiras de desfazer-se dos pais. Essa é a escolha de Alex. Por isso, no caso dele, como no de tantas outras fugas de casa, o sofrimento dos pais não é considerado. É quase como se eles nunca tivessem existido, o propósito é exatamente esse. Com a maior parte das pessoas que Alex interage durante suas andanças repete o ciclo, encontra, faz um vínculo forte e parte sem dar adeus, sem que o outro possa proferir sequer uma palavra de despedida. Mais que ir embora, ele sumia, essa era sua marca.”(…)
“Antes de pensar o que o pôs a correr de seu habitat de origem, convém entendermos melhor em que direção apontava seu desejo. O andarilho Alex foi admirado não somente pela ousadia do seu desprendimento, mas sim pelo fato de que durante aqueles dois anos construiu uma existência coerente com seu pensamento romântico radical e morreu em consequência disso. Ele é visto como se fosse o herói de uma guerra pessoal, capaz de sacrificar-se pela sua crença.
Mas examinemos seu pensamento, de modo em que ele revele o que haveria de admirável para aqueles que leram sobre sua história: afinal o que um jovem buscaria na natureza? Percebemos que ela representa para ele uma alteridade radical, algo a ser conquistado, vencido. Mas por que a experiência frente a seus rigores seria capaz de funcionar como uma prova convincente? E de que valor? E para quem?
Os pais podem até ser muito generosos, mas querem ser recompensados pelos seus investimentos amorosos. Ser filho de alguém é carregar o peso da aposta que se fez em nosso nome. De alguma forma sempre vem a mensagem de que devemos pagar pelo lugar simbólico que ocupamos em uma linhagem. A força das marcas familiares que fundaram o sujeito é sentida particularmente na adolescência, é o fim do jantar e o momento de receber a conta. A cultura dos pais, seus sonhos e projetos, seus erros e acertos vão impor-se ao ser que eles criaram, querem que ele se realize nos termos dos seus valores. Muitas vezes o desejo parental pode não ser de continuidade, não é nada incomum que seja até de rompimento: vá além, faça o que não consegui, enfrente o que me derrotou, escolha melhor do que eu fiz. Outras, é de mera continuidade, mas não importa o tom, sempre soará opressivo e, quanto maiores os recursos psíquicos do jovem, menos pesada será a consciência e a desilusão de concluir que o amor dos pais nunca foi incondicional.
Já a natureza, embora na prática suas exigências possam ser cruéis, parece ser equânime e desinteressada. Estar sozinho em lugares extremos pode produzir momentos de euforia, numa comunhão íntima com a beleza da paisagem, muitos dos quais foram relatados por Alex. Isso se você estiver disposto às agruras necessárias para chegar e permanecer ali. Os que conseguem sentem-se vitoriosos, mas trata-se de uma conquista em que não se cedeu ao desejo de ninguém, não exigiu troca de favores, não se negociaram crenças nem houve medições de prestígio. As exigências de uma montanha, um deserto, uma grande onda, a imensidão do oceano, de uma floresta cheia de ciladas, serão iguais para todos os que ingressarem nelas. O que muda são os recursos com os quais cada um entra na cena. Por isso era fundamental para Alex não possuir nada que diminuísse os riscos, que amenizasse as exigências do lugar, era uma forma de aumentar a magnitude de uma experiência que ele considerava pura e essencial.
Acreditamos que, pela semelhança das experiências a que se lançaram o “personagem” McCandless e o escritor Krakauer (autor do livro responsável pelo resgate do personagem), podemos tomá-los, para efeito de reflexão, como duas vozes de pensamentos similares. A pesquisa do jornalista o levou a citar trechos dos autores preferidos do seu personagem e, entre eles, temos a seguinte passagem de Caninos Brancos, publicado em 1906 por Jack London:
“A própria terra era uma desolação sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que seu espírito não era nem mesmo o da tristeza. (…) Era a imperiosa e incomunicável sabedoria da eternidade rindo da futilidade da vida e do esforço de viver. Era a Natureza, a selvagem, a de coração gélido, a Natureza das Terras do Norte.”
O livro de London contrasta o heroísmo natural das criaturas selvagens, assim como do valor intrínseco da beleza da paisagem do Alasca, com a mesquinhez, a incompreensão dos homens corrompidos em nome do ouro. Estes últimos, segundo as críticas que Chris dirigia a seus pais e seu modo de vida, são representantes do sistema de valores erguido em torno do dinheiro. Seus pais se sacrificaram muito para subir na vida e, como acontece em todas as famílias, não deixavam de adular o valor de suas conquistas, no caso em termos de poder aquisitivo. O filho negou-se a ganhar dinheiro, insistia em que o ouro não media nem provava o valor de ninguém. Já a natureza, esta sim pareceria uma juíza legítima e a ela ele se entregou.”

A delicada arte de ajudar

Empatia: a arte de ajudar sem soberba

A delicada arte de ajudar

Aeroporto lotado, um bebê desses que recém aprenderam a caminhar, grita, chora e se desespera por um tempo que parece infinito. Está no colo da mãe exausta, que já não o acolhe, ele corcoveia e acaba atirando-se no chão. Também lacrimosa, ela só suplica que pare. Bebês entram em inércia, assustam-se com os próprios gritos, estão exaustos mas não conseguem estancar o pânico.
Entre os adultos presentes, trocávamos olhares cúmplices de enfado, incômodo e irritação. O tempo foi dando lugar à preocupação: o estado da mãe não dava pistas de que a situação seria contornada, ela precisava de ajuda. Havia outras mães, famílias, crianças de várias idades, mas na prática estávamos todos paralisados.
Para alívio geral, outra mãe e seu bebê de idade similar aproximaram-se da dupla. Ela iria tentar acalmá-lo, pensei. Mas ela era mais esperta e melhor pessoa do que eu. Tomar o pequeno desestruturado em braços dar-lhe o consolo necessário iria colocar a mãe dele numa posição inferiorizada, de incompetência. É claro que a colapsada mulher teria ficado grata igual, afinal ela tinha perdido o controle.
Nossa samaritana teve uma ideia ainda melhor: entregou ao seu bebê um biscoito e pediu que ele fosse levar para o amiguinho que estava muito triste. O menino fez de bom grado e ainda lhe ofereceu seu próprio bico. O pequeno berrador conseguiu aceitar a oferta generosa, vinda de alguém do seu mesmo tamanho. É como se ele visse um espelho de si mesmo, mas em um momento de calmaria. Se a mãe daquele simpático bebê tivesse tentado pegar o sofredor no colo, ou mesmo dizer à outra o que fazer, teria tido muito mais dificuldade em desfazer a cena.
O bebê foi generoso porque sua mãe também o era, deixou o assunto ser tratado entre gente pequena, evitando a usual competição entre mães. Foi uma lição de empatia: só tem reais condições de entender uma dor aquele que passou por uma experiência similar, e qual mãe não passou? Sem dispor dessa conexão também podemos ajudar, e muito, mas sem a soberba de achar que estamos sabendo o que o outro está sentindo. Convém ser humilde, admitir respeitosamente que nossa inexperiência atrapalha e deixar-se guiar por aquele que sofre.
Fui mãe de bebês e trabalhei com eles. Tem horas em que a gente só pensa em morrer ou livrar-se da criatura, em que as mães sentem-se tão desamparadas quanto seus filhos. Acho que todos nós adultos, irritados e paralisados, estávamos impactados, tendo evocações dos pais e filhos que fomos e somos. Por sorte existem no mundo aqueles que são capazes de entender que pessoas crescidas às vezes também precisam de biscoito e bico.

27/07/19 |
(0)

O que quer um homem?

O feminismo não combate os homens, pelo contrário. Ele traz para ambos os sexos uma consciência do peso dos clichês, aos quais nenhum de nós nunca se ajusta. Portanto, o feminismo liberta os homens.

Bicha, boiola, maricas, frutinha, boneca, fresco, veado, não faltam palavras para os que fogem, mesmo que por detalhes, dos clichês da macheza. É tão vasta a riqueza de nomes para definir esses “desviantes”, como é para nomear uma mulher que não seja recatada e do lar. Só isso já nos dá uma pista de que os privilégios masculinos custam caro demais.
Imagine se os homens não precisassem viver provando sua virilidade. Se pudessem libertar-se da frigidez emocional, sentir, chorar. Se não tivessem sua sensualidade restrita ao pênis. Se fizessem o exorcismo da sina da ereção eterna. Seria a libertação de uma cultura que os obriga a viver presos em uma carapaça pesada e inútil.
Na mesma fogueira destinada aos sutiãs, eles jogariam anabolizantes, alteres, viagras, ternos duros e gravatas sufocantes. Os que foram discriminados pela falta de simpatia pela bola, iriam incinerar as camisetas do time que nunca conseguiram amar. Nunca houve uma grande queima ritual de sutiãs, é uma referência simbólica. Foi nossa imaginação histórica, que associa mulheres com bruxas, que a recriou.
Tais militantes homens da causa, sofreriam o peso da condenação social, como ocorre até hoje com as mulheres que não são virginais e submissas. As que polemizam ainda são vistas como vadias, frígidas, mal amadas, movidas pela inveja do pênis e recalques variados.
Ao nascer você recebe um nome e é encaixado em uma das duas categorias. Ao contrário das perguntas que possamos fazer-nos sobre como ser, no que acreditar, em nome do que existir, a masculinidade e a feminilidade estão fadadas a ser o paraíso da previsibilidade. Desde nossa certidão de nascimento até o atestado de óbito, vai ser preciso marcar com um X o sexo ao qual pertencemos. Aferramo-nos a essa divisão binaria porque duvidar cansa, dá medo.
Estudando história, descobrimos como as certezas científicas e morais sobre as características do homem e da mulher podiam virar até o oposto do que se acreditava antes. Comicamente, continuaram sendo apresentadas como verdades eternas, naturais e universais.
Quantos meninos foram rejeitados pela família ou desprezados pelo pai? Quantos foram fisicamente agredidos, até abusados? Quantos tiram a própria vida por isso? Quanta solidão, por medo de ser considerados próximos das mulheres? Quanto ódio para nunca serem taxados de fracos e submissos?
A guerra dos sexos está na origem da epidemia de femicídios e cobra sua cota de vidas dos dois lados das trincheiras. A violência masculina faz vítimas em suas próprias hostes.
Eles passam dizendo que não sabem o que uma mulher quer, as acusam de eternas insatisfeitas. É que, com suas lutas, elas aprenderam a colocar isso em questão. Sonho com o dia em que também um homem possa duvidar do que, afinal, ele quer.

Tempos de virada

Aproveitar a longevidade é uma aventura.

Ele tinha vinte e sete anos quando chegou ao meu consultório, decretando ser essa a idade de tornar-se adulto. Explicou que eram quase trinta, mas ainda havia tempo de tomar algumas decisões antes do momento que considerava “fatal”. Também avisou-me que uma pessoa pode chegar a ter “umas sete grandes viradas” ao longo da vida. Chamava assim os momentos em que se precisa repensar tudo, colocar em questão as próprias bases.
Na época, ele fez jus à sua ideia das viradas. Saiu de um casamento precoce e infeliz, encontrou a companheira de seus sonhos e especializou-se em algo que tinha tudo a ver com ele, não por acaso, a simulação. Esse é um ramo em que, por exemplo, tenta-se prever os efeitos de uma alteração sobre a linha de produção de uma fábrica. Portanto, modificar para melhorar é sua paixão. Esses dias, com menos cabelo e quase duas décadas a mais, reapareceu para reavaliar novamente sua vida. Brincamos entre nós de que ainda lhe faltavam umas três viradas.
O aumento da expectativa de vida trouxe um impasse interessante: as decisões que implicam em mudanças de destino na vida de pessoas já maduras. Quando um adulto contemporâneo chega próximo à idade na qual seus antepassados estavam encaminhando-se para o fim, ainda pode dar-se ao luxo pensar ao que irá dedicar-se. É possível que possa viver ainda algumas décadas, o que fazer com elas? A possibilidade de passar todo esse tempo em frente à televisão esperando a morte chegar não é atraente. Como nem só de trabalho somos feitos, os pactos amorosos também são questionados, revisados ou revogados. Para alguns é inclusive época de viver amores nunca tentados. O velho fim é um novo começo.
As tais viradas, as sete que meu jovem paciente apaixonado por números havia anunciado, podem ser pensadas em termos de decisões de grande impacto, mas também em um sentido mais sutil. Por vezes significam meras mudanças de ritmo, de ponto de vista. Para os mais ousados, é tempo de abrir os olhos para o que acreditávamos que fosse impossível desejar. A novidade é que temos mais ocasiões e mais prazo para tentar, o que não é o mesmo que simular.
Na indústria pode-se prever os efeitos de cada inovação. Já na vida é preciso ousar sem o expediente tranquilizante de simular resultados. Reavaliar-se demanda uma escuta fina e destravada de si mesmo, só assim para descobrir o que estamos querendo de forma enviesada, inconfessa, canhota. Somos estranhos ao que expulsamos da nossa consciência, por isso mudar dá tanto medo.
Os antigos vivam menos, trabalhavam na mesma firma, no mesmo ramo e casavam para sempre. A experiência mais de uma vida em uma única existência é uma conquista, mas aproveitar essa longevidade é uma aventura.

Amigos para não conversar

Uma amizade, um encontro de empatias,uma escuta profissional, são diferentes níveis de compreensão, que não implicam em uma escala de falas mais ou menos profundas. Por vezes amigos precisam calar e desconhecidos acabam se dizendo tudo. Profissionais ajudam a pensar, mas viabilizam um encontro amistoso consigo mesmo.

Quando ficamos abalados, seja por motivos graves ou apenas pelas maluquices costumeiras, nem sempre precisamos de um bom papo. Um amigo para não conversar, junto de quem possamos ficar em silêncio pode ser o maior tesouro. Nem tudo consegue ser dito: discorrer sobre nossas tristezas e angústias é sempre bom, mas só quando chega a hora de fazê-lo, o que às vezes demora. Às vezes falar dói tanto, que demoramos para ter coragem, como a hora de dar o puxão definitivo no curativo que temos que retirar.
Amigos de verdade são sensíveis para perceber quando andamos perturbados, mas conseguem abster-se de cobrar respostas. Cabe-lhes esperar, quando estamos fechados para balanço, que as portas voltem a abrir. Até as pessoas que costumam narrar sua vida em voz alta vão silenciar a respeito do relevante. Estas apenas preenchem o espaço sonoro para evitar ser interpeladas pelo próprio silêncio.
Os amigos precisam ser capazes de perdoar-nos pela inépcia, quando estamos sem condições de explicitar os motivos de um estado de espírito sombrio. Quem não suporta a falta de explicação para a dor, não banca nosso sofrimento, só quer tirar nossa tristeza do caminho e vangloriar-se pela presença salvadora. As vezes é necessário sangrar um tanto, sem recorrer a um consolo que nos coagule. Amar alguém é conviver com a própria impotência para fazê-lo feliz. Isso vale para todo tipo de vínculo: fraterno, erótico, familiar.
Acontece até que seja mais fácil explicitar nosso mal estar para alguém quase desconhecido, por ter percebido que a pessoa passa por situação similar. Fala-se a mesma língua de dores. Lembro de uma amiga que perdeu um bebê e encerrou-se em lágrimas e silêncio. Certo dia, soube de uma conhecida que sofria pelo mesmo e, mesmo que não tivessem maiores intimidades, descobriu-se contando a ela em detalhes sua jornada de padecimentos físicos, raiva, tristeza e vazio. Somente ao lado de outra mulher íntima àquele específico sofrimento foi possível deixar-se falar: uma disse à outra o que não haviam ousado enunciar nem a si próprias e choraram juntas. Depois, cada uma seguiu seu caminho. Não foi o começo de uma grande amizade, só um encontro de empatias.
Um terapeuta ou analista não substitui o amigo. Vamos em busca de uma escuta profissional quando estamos desconfiando de que há alguma coisa mal contada naquilo que traz infelicidade. Será que estou fazendo/entendendo algo errado? Também quando admitimos a necessidade de dar sentido a dores que parecem de tamanho errado ou fora de lugar. Já a orelha amiga está simplesmente a postos para acolher o frio na alma e ninguém gosta de cobertores tagarelas. Profissionais até podem cumprir essa função, em momentos de profundo desamparo do paciente, mas para os amigos a capacidade de caminhar em silêncio ao nosso lado é um atributo essencial.
(Publicado na Vida Simples em 2016)

Faz-se carreto

como mudar – de lugar, de vida – sem ficar desamparado?

Mudança é um caminhão carregando e descarregando pesados móveis, colchões, caixas de livros, panelas e brinquedos, malas de roupa, quadros. Ver o passeio desses objetos pela calçada é um pouco constrangedor e instiga a curiosidade. É como olhar dentro da intimidade daqueles moradores, condenada a desfilar em público, carregada em braços desconhecidos.
As caixas têm dizeres, garranchos, títulos, são como um mapa para que seus donos amenizem a perda de referências. Os primeiros volumes a serem embalados costumam guardar uma lógica, códigos precisos. Por fim, roupas, papéis e objetos viajarão juntos, revelando a desestrutura da alma, verdadeiro estado daquele que precisa desmontar sua vida. Partimos de um lugar que costuma ser tão familiar como nosso próprio corpo, tanto que podemos percorrê-lo na escuridão sem medo. Embarcamos rumo a outro que parece que nunca chegará a ser tão pessoal e íntimo quanto o anterior.
Num primeiro momento, quando faz-se necessária a separação do que vai conosco, tropeçamos com o que tornou-se obsoleto. O balanço acaba sendo feito quando mexemos nas gavetas, no fundo dos armários. Esbarramos em caquinhos de memória que ficaram escondidos em algum canto, quietinhos, mensagens do passado escapando do descarte porque ainda tinham algo a dizer. Cada um desses restos pede uma despedida. Irão fora ingressos e passagens usados, contas que suamos para pagar, enigmáticas despesas insignificantes, bilhetes recebidos ou nunca enviados, fotografias sem álbum, roupas que já não servem, objetos quebrados esperando um conserto que nunca virá. Perdemo-nos em devaneios, caímos no labirinto em que cada uma dessas pontas soltas nos lança. Uma simples gaveta pode ter mil ganchos de memórias.
É preciso finalizar cada uma dessas pendências, descartando, classificando. Nossa vida encaixotada parece menor do que foi. Escolhas implicam em perdas, principalmente das ilusões. Vai fora o que ainda fantasiávamos que éramos e que tínhamos. Acondicionar também é descobrir quais partes nossas são mais frágeis, precisamos seguir com elas, mas sempre ameaçam não chegar inteiras. Levamos conosco também o que nunca foi nem será firme e forte. Também precisamos escolher o que nos é imprescindível, pois muitas caixas demorarão para ser abertas.
Ao chegar, ficamos acampados, rodeados pela desordem, estranhando os barulhos da noite, sem saber para que lado da cama colocar os pés ao acordar. Para mudar, tivemos que encarar o medo da perda de identidade, o risco de sentir-nos exilados, sem pouso. Não somos caracóis, sem casa não derreteremos ao sol e ao sal. Na verdade nossa capacidade de mudança é sempre maior do que apostamos. Com o tempo, nossa mobília interior vai tornando-se embutida, sob medida e parte conosco, sabemos o que em nós é objeto frágil e carregamos com maior cuidado, já descartamos muitas coisas e descobrimos que é possível viver sem elas. Se pudermos sentir-nos em casa dentro de nós mesmos, novos lugares sempre poderão ser um lar.

(publicado originalmente na Vida Simples de setembro 2016)

18/09/18 |
(1)

Cada tempo com a presença de que se precisa

Será que um dia a comunicação digital fará parte naturalmente de setting analítico?

A importância do atendimento presencial para a psicanálise é o tema deste artigo produzido pela psicóloga Diana Lichtenstein Corso especialmente para a EntreLinhas, revista do Conselho Regional de Paicologia.

A psicanálise é um encontro estranho, que viola todas as regras convencionais da etiqueta do convívio, mas ainda acima de tudo é um encontro. Os interlocutores falam muitas vezes sem olhar-se nos olhos, os silêncios são parte do diálogo, momentos em que alguém pode parar para pensar na presença do outro sem que isso gere maiores incômodos. Em um encontro social, se ficamos em silêncio, impactados pelo que dissemos ou escutamos, isso é no mínimo constrangedor, já em uma sessão analítica os momentos quietos fazem parte do ritmo do diálogo.
Esses momentos quietos não são tão comuns como se imagina no anedotário da psicanálise, onde se repre-
senta um analista mudo, olhando no relógio e tomando notas e um paciente falando meio sozinho. Embora não sejam a maior parte de uma psicanálise, faz parte poder estar juntos, escutando o ritmo da respiração e os barulhinhos do ambiente. É por isso que, mesmo quando uma psicanálise não está passando pelos seus momentos mais eloquentes, continua sendo um encontro, onde se suporta tanto o ritmo no qual um paciente consegue se expressar, quando o tempo necessário para que o analista diga algo que seja realmente interessante.
Nesses encontros, o simples fato de estar juntos, acompanhando-se, testemunhando-se, sentindo o aconchego da rotina dos encontros, já produz efeitos terapêuticos. Por isso, acredito que o atendimento virtual, quer seja via imagem, para os pacientes que trabalham “cara a cara”, ou telefônica, para os trabalhos “de divã”, é viável apenas como uma continuidade do trabalho presencial, quando seu uso se faz necessário.
Sei que há colegas que já empreendem atendimentos que são quase totalmente virtuais, ou mesmo total- mente virtuais, mas não posso depor sobre isso por falta de vivência. Jamais comecei um trabalho assim, sem nun- ca ter me encontrado com o paciente em termos físicos, reais, só me ocorreu de empreender esse tipo de trabalho quando algum paciente precisa que nos encontremos e isso não é possível pela distância e algum impedimento para que ele se desloque. Já ocorreu por períodos da vida de algum paciente, que passou a morar longe ou que mora longe e não está conseguindo viajar, ou mesmo de forma alternada, também com pacientes e supervisionandos que a distância física nos barra o encontro regular.
Outra modalidade de recurso à comunicação virtual é com os adolescentes que já estão em atendimento e que por vezes se atrapalham com os horários ou estão com dificuldades para sair de casa, nesses casos é preciso que a montanha vá até Maomé, buscando os meios possíveis, quer por telefonemas, com imagem ou sem, quer via mensagens trocadas com agilidade, para presentificar-se dentro do que eles estão podendo suportar. Não é raro que com os adultos, em determinadas fases ou momentos isso também
aconteça, às vezes uma sessão vira uma troca de mensagens.
Como sinto limitações nesses momentos, tanto para respirar o mesmo silêncio nos telefonemas ou sessões virtuais com imagens, quanto para fazer essas trocas de mensagem surtirem um efeito mais significativo, acabo considerando esses encontros virtuais um pouco menores do que os presenciais. Mas penso que aqui há algo de geração, em que me sinto em processo de ser talvez superada.
Houve épocas em que uma análise ocorria todos os dias, os pacientes de Freud mudavam-se para Viena e dedicavam-se às suas análises que eram mais curtas e intensas. Hoje um processo prolonga-se ao longo de mais tempo, numa rotina mais pausada, com intervalos maiores entre as sessões, não mais se suspende uma vida para pensá-la, agora vamos vivendo e tentando elaborar o que está nos ocorrendo ao mesmo tempo.
Se a experiência psicanalítica pôde modificar-se tanto assim, considerando também que para as novas gerações o espaço virtual não é sentido como algo assim tão diferente do presencial, não vejo por que considerar que a absorção do virtual ao setting analítico não acabaria sendo incorporada. É um exercício de futurologia, pensando na psicanálise sendo exercida entre gente nascida já em sua vigência, que sente -se mais cômoda no ambiente virtual do que eu. Para mim é algo menor, mas para estas novas gerações que têm seus telefones e computadores como espaços genuínos de encontro, veremos como será.

Um olhar infantil sobre o diferente

A intolerância será tanto mais forte e, portanto, violenta, quanto mais restritas forem as possibilidades de criar, cooperar e dialogar. Quanto maior a pobreza de espírito de um grupo social, tanto menores seus recursos simbólicos, portanto, vai ter que utilizar-se de uma gramática binária para se descrever: eu, bom, não eu, ruim.

IHU on line – Revista do Instituto Humanitas Unisinos
EDIÇÃO 491 | 22 AGOSTO 2016
Entrevista concedida a João Vitor Santos

Diana Corso observa como as crianças apreendem a ideia de diferente, em uma perspectiva que não exclui e que busca um crescimento emocional e cultural para absorver a “variabilidade de modos de ser, viver e pensar”
“Quando nos associamos para brincar ou criar, as diferenças entre nós são úteis, interessantes, diversificam o que estamos fazendo. Já quando somos passivos, como os alunos de uma escola tradicional, ou só ficamos brincando sozinhos e observando os outros, tornamo-nos competitivos e não suportamos as diferenças”. A elaboração é da psicanalista Diana Lichtenstein Corso acerca da relação tolerância/intolerância sobre o diferente, o que não é igual a mim. Ela observa essa relação a partir das experiências infantis. “As crianças não notam diferenças de forma estereotipada, elas observam o que a cultura as treina para ver”, aponta. Assim, a ideia do diferente para os pequenos é algo muito volátil em meio ao seu mundo de descobertas e transformações. “As diferenças que estereotipamos em nossa sociedade, de gênero, cor da pele, status social, são variáveis mínimas em relação a essa polissemia da infância”, explica Diana, ao lembrar que as crianças se atêm tanto a essas diferenças quanto às de tamanho, de altura, por exemplo.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a psicanalista analisa como a criança pode ser tomada como uma terra sem formas, portanto aceitando qualquer moldura para ver o outro. Para Diana, muito mais interessante é oferecer para crianças o acesso a um crescimento emocional através do contato com os diferentes. Isso permitirá que ela desenvolva um verdadeiro olhar sobre o outro para além dos preconceitos forjados nos estereótipos e convenções sociais.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que medida a intolerância é inerente ao ser humano e em que medida surge na relação com o meio em que se vive?
Diana Lichtenstein Corso – Vamos situar o aparecimento da agressividade entre os bebês, aqueles um pouco maiorzinhos, que conseguem brincar perto uns dos outros. Veja bem, não estou me referindo a crianças que brincam juntas, mas apenas por perto, reparando no que o outro faz e por vezes trocando, oferecendo e disputando objetos. São criaturinhas ainda em fase de construção da sua capacidade de representação simbólica, já conseguem “papar” [alimentar-se] e dormir de brincadeira, esconder-se do olhar do outro e reaparecer com júbilo, por exemplo, mas não bolar em conjunto com outra criança uma trama para partilhar, criar uma fantasia em conjunto, contracenar com personagens, ou mesmo seguir regras grupais de uma brincadeira. Estamos falando, então, de rudimentos de sociabilidade.
Nesse contexto, surgem as maiores disputas, por brinquedos, pela atenção dos adultos, por entrar em certo lugar. Onde o outro está, o que a outra criança estiver fazendo, torna-se objeto de cobiça. Quanto menores, mais as crianças funcionam em espelho, pois ainda estão definindo seus próprios contornos, como se houvesse um só lugar, aquele que acabam de descobrir observando o outro e ali querem estar.
Bom, conto essa história de bebês porque a agressividade, a intolerância em nossa sociedade tem justamente a ver com a solidez da imagem que cada um tem de si. Por exemplo, se alguém vale somente por ter um smartphone, por ter um carro, uma roupa com etiqueta tal, não vai suportar que todo mundo possa ter. É preciso dividir o mundo entre os que, para usar o código das crianças pequenas, estão no balanço e os outros que ficam olhando de fora. É diferente quando numa sociedade consegue-se trocas mais simbólicas, que passem pela palavra, por um olhar capaz de perceber a beleza ou de despertar a curiosidade de forma mais complexa do que códigos rudimentares de ter ou não ter um número restrito de objetos que vão dizer quem é alguém — está no balanço — e quem não — ficará olhando.
Essa possibilidade de associar-se para criar, que é a brincadeira infantil propriamente dita, está no coração de tudo o que fazemos de criativo, desde a arte propriamente dita, até uma equipe científica ou que desempenha determinada tarefa prática conjuntamente de modo eficiente e colaborativo. Quando nos associamos para brincar ou criar, as diferenças entre nós são úteis, interessantes, diversificam o que estamos fazendo. Já quando somos passivos, como os alunos de uma escola tradicional, ou só ficamos brincando sozinhos e observando os outros, tornamo-nos competitivos e não suportamos as diferenças, pois precisamos do outro como espelho e contraponto.

IHU On-Line – Como o sentimento de intolerância aparece na infância? Como é elaborado pelos pequenos e como perceber a necessidade de intervenção? De que forma as crianças veem o diferente? O quanto podem ter essa perspectiva alterada pela ação dos adultos que a cercam?
Diana Lichtenstein Corso – As crianças não notam diferenças de forma estereotipada, elas observam o que a cultura as treina para ver. Até é interessante ressaltar que a infância é muito variada em termos de formatos, tamanhos e capacidades. O ritmo de crescimento é muito, muito variado. Há crianças de três a dez anos de todo tipo de tamanho, há os que têm complexão física mais encorpada e os quebradiços, os que crescem como pipoca estourando e os que demoram muito, passam a infância inteira estilo mignon, os atléticos, os capazes de concentrar-se, os líderes, os tímidos, eles são variados entre si e também em relação a si próprios. É comum o amiguinho voltar das férias todo diferente, cresceu ou mudou de jeito.
Nesse sentido, as diferenças que estereotipamos em nossa sociedade, de gênero, cor da pele, status social, são variáveis mínimas em relação a essa polissemia da infância. Se não for instruída para isso, uma criança não observará a cor da pele do amigo, mas sim sua altura, seu jeito de falar ou de calar, enfim, ela escolherá os critérios do que é mais importante para ela. Ater-se aos nossos padrões de preconceito adulto é para as crianças um treinamento recebido dos adultos.

Associações e exclusões: sofrimentos normais
Situações radicais de exclusão e bullying na infância ocorrerão principalmente se elas se organizarem em grupos passivos, com padrões restritos e pouco colaborativos. Aí vale a lógica dos pequenos, dos que têm poucos recursos simbólicos. Por outro lado, entre as crianças temos alguns dramas de associação: as panelinhas, os grupos de três, organizados para deixar um de fora, os clichês que organizam uma turma de colégio entre populares, nerds, gays, e tantas outras categorias. Esses são recursos de trocas amorosas, em geral do homoerotismo básico que aparece muito forte na pré-puberdade, quando as questões de quem vale o que para ser desejado ou admirado pelos outros tornam-se muito importantes.
São sofrimentos normais, que, se o “sucesso social” não for uma obsessão para a família, serão encarados com mais leveza e até um certo humor pelas crianças. Porém, se a criança estiver inserida em um contexto em que o prestígio no grupo e a capacidade de liderança, que tomam como prova do potencial para o exercício do poder, forem um grande valor, acima dos de solidariedade, tolerância e companheirismo, esses jogos grupais serão fonte de grandes dramas e péssimos para a construção de uma identidade mais definida. A criança tenderá a diluir-se na massa, obedecendo às regras mais rudimentares de comportamento e formas de ser, estabelecidas por um senso comum que nunca deixa de ser pobre de espírito.

IHU On-Line – Há um limite entre a intolerância e a violência? Quando a intolerância se perfaz em força e violência, essencialmente na infância?
Diana Lichtenstein Corso – A intolerância será tanto mais forte e, portanto, violenta, quanto mais restritas forem as possibilidades de criar, cooperar e dialogar. Quanto maior a pobreza de espírito de um grupo social, tanto menores seus recursos simbólicos, portanto, vai ter que utilizar-se de uma gramática binária para se descrever: eu, bom, não eu, ruim.

IHU On-Line – Qual o papel das fábulas e dos clássicos infantis no desenvolvimento das crianças? Em que medida essas histórias solidificam convenções sociais e fecham perspectivas e em que medida abrem um horizonte para o novo e aceitação para o diferente?
Diana Lichtenstein Corso – As histórias que a infância de cada época adota para si não cria o modo de ser das crianças, é esse modo que edita a ficção de cada época. Por isso, em nossos livros escritos sobre o assunto, com o Mário Corso , tomamos as histórias como reveladoras de um modo de ser, de estar no mundo, dos gêneros se definirem, das famílias se organizarem, dos valores, enfim do tecido social que nos organiza.
Os contos ditos tradicionais, ou seja, que vêm acompanhando várias gerações, guardam apenas um núcleo da trama idêntico uma geração após outra. Alguns, como é o caso da Rapunzel após Enrolados , da Bela Adormecida após Malévola , da Branca de Neve após Branca de Neve e o Caçador , ou mesmo João e Maria caçadores de bruxas , estão tão recheadas de novas referências de gênero que estão se tornando muito diversos de suas versões mais consagradas no passado. Mas, se formos olhar, essas mesmas versões que tomamos como clássicos já são radicalmente modificadas das suas fontes da tradição oral, que por sua vez passaram por várias modificações antes de chegar às crianças, como as versões picarescas ou cheias de maneirismos voltadas ao público adulto impressas, recompiladas e recontadas por vários autores. A ficção, quanto mais atrás pudermos encontrar alguns traços de constância em determinada história, mais ela irá contando das nossas transformações históricas.
Histórias são verdadeiros documentos de história social, reveladoras da subjetividade dos habitantes de cada tempo e lugar e do que eles partilhavam de comum naquelas coordenadas específicas. Essas questões da multiplicidade de identidades possíveis, principalmente no que diz respeito a gênero, onde masculinidade e feminilidade, antes drasticamente diferenciadas agora se embaralham, assim como da diluição das hierarquias familiares, que tendem à horizontalidade, estão fortemente representadas na ficção infantil. O cinema é o modo de expressão artística que mais rapidamente absorve e difunde essas novidades, ele visa grandes públicos, então tenta traduzir-lhe os desejos. Não podemos dizer que ele cria uma tendência cultural, ele é criado por ela e, por sua vez, ajuda a consolidá-la.

IHU On-Line – Hoje, é comum perceber que crianças não têm mais medo e aceitam criaturas como bruxas, lobos e monstros não como manifestações do mal. Ao mesmo tempo, veem-se princesas, príncipes, reis e rainhas não mais como figuras tão cândidas e bondosas. Como observa esses movimentos? Quais as questões de fundo que suscitam?
Diana Lichtenstein Corso – O medo é importante na infância, ele ajuda a delimitar os lugares e as pessoas seguras: se meu quarto não é a floresta, o papai não é o lobo mau e a mamãe não é a bruxa, portanto, posso dormir em paz. Só que para que haja todas essas exclusões, a floresta, o lobo e a bruxa têm que estar rondando do lado de fora, para garantir o aconchego do interior.
Além disso, como todos temos dentro de nós fantasias que são representadas pela maldade e pelos perigos desses cenários e personagens aterrorizantes, deixá-los de fora, mas de certa forma acessíveis, garante que nossas coisas ruins e pensamentos assustadores fiquem depositados neles. Outrora, outros temores, de um mundo mais mágico, pelas crendices e pela religião rivalizavam com a ficção. Hoje, isso empalideceu e por isso, embora as crianças e adolescentes não “acreditem” na veracidade dessas histórias, eles morrem de medo igual, ou seja, mantêm esse hábito de outorgar seus medos e fantasias a personagens que os encarnem e ajudem a dar conta deles.
A arte dá conta dos nossos conteúdos mais difíceis de elaborar, e isso vale igual para o que é oferecido às crianças, pela literatura, televisão, quadrinhos, cinema, teatro, games. Nesse sentido, como dizia antes, agora as personagens não são tão estereotipadas: gêneros, padrões de beleza e comportamento, vêm se modificando. Depois do Shrek , de Valente , Frozen e tantas recriações dos contos de fadas, temos claro que as crianças maiorzinhas não querem ser tratadas como bobas com personagens simplórios. Ainda gostam de um final feliz, mas adoram as nuances, como a transformação da princesa do Shrek em ogra, o oposto da tradição.
Já os bem pequenos ainda precisam lidar com menos variáveis, por isso gostam de personagens um pouco mais planas, mas apreciam que elas tenham seus perrengues e suas inquietudes. Crianças, como povos, quanto mais acesso tiverem a um crescimento emocional e cultural, menos simplórios serão seus raciocínios e, portanto, melhor poderão absorver nossa maravilhosa variabilidade de modos de ser, viver e pensar.■

Marcas de nascença

Além de um nome, ao nascer recebemos uma pequena vinheta, que frequentemente será nosso mito de origem particular. Cabe a nós fazer disso uma sina ou o simples começo de uma história.

Minha mãe conta que nasci invertida, de parto normal, o que já em si é uma temeridade. Jura que convenceu aos doutores desatentos de que estava em trabalho de parto mostrando-lhes meus pezinhos, que chegavam antes da cabeça. Comecei a vida colocando os pés pelas mãos. Deve ser por isso que até hoje sou um tanto impulsiva.
Como psicanalista, conheço muitas histórias sobre o nascimento. Elas são atribuídas a cada recém chegado como um mito de origem. Funciona como um signo, explicam por que somos assim ou assado, só que é um horóscopo particular. Algumas delas são narrativas familiares, mas há a variante privada: é o momento que consideramos paradigmático do que nos tornamos. Todos temos uma vinheta do passado como uma espécie de mito particular de estimação.
Por vezes essas histórias dizem respeito ao parto, como a minha, por outras dão conta de seu modo de ser enquanto bebê. Também existem aquelas que atribuem o sentido de uma vida a um trauma, um susto, uma doença, morte ou frustração. Teu berço era uma caixinha de sapatos; ele era o gêmeo menor, o outro comia tudo; eras um bebê enorme, guloso, tua mãe virou um fiapo; choravas o tempo todo; dormias tão tranquilo que nos esquecíamos de ti. Quantas histórias, parecidas com essa, você conhece a seu respeito ou dos outros?
É difícil dizer o que nos determina. Os astros alinhados na hora em que saímos do corpo materno? A genética, guardando o tesouro dos nossos humores, doenças e dons? A sociedade que nos abriga? O status dos nossos familiares? Talvez a ordem em que nascemos: primogênitos, do meio, caçulas? Parte de uma prole extensa ou únicos? Seria o nome recebido, síntese da prescrição de desejos paternos?
As variáveis são muitas e sempre há alguém que coloque a ênfase, ou acredite, na exclusividade de uma ou outra. Mais fácil é rastrear as histórias familiares que se enlaçam com nossa chegada, nossos primórdios. Em geral temos uma ou mais, e quase todas são um pouco bizarras, excêntricas. É inegável que somos determinados pela biologia e pelo contexto, mas sobre isso monta-se uma versão: é a narrativa familiar que nos torna peculiares.
A história de cada um de nós é como um jogo de xadrez: o desenlace é influenciado pela jogada de abertura. A vantagem é que, embora sejamos um jogo de cartas marcadas, muitas delas são coringa. Em resumo, há jogo de corpo, mobilidade, plasticidade: podemos variar o ponto de vista, o tom da narrativa, o estilo. Cada humano nasce como uma trama a ser editada e continuada.
Você já lembrou qual a sua história? Feito isso, tente descobrir como conversou com ela ao longo da vida, se fez dela um xeque mate ou uma abertura de jogo. Talvez tenha se empenhado para confirmar as predestinações, ou para contradizê-las. Bem, como eu cheguei atravessada, talvez seja por isso que decidi dedicar-me à psicanálise, a arte do imprevisto, do indizível. O inconsciente é essa razão oculta que determina um sentido e uma verdade ao que parece enviesado, estranho e impulsivo.

Uma Cinderela ao contrário: vinte anos da morte de Lady Di.

Lady Di foi uma princesa diferente, casou-se para ser infeliz para sempre. Ascendeu e morreu como sua precursora midiática Grace Kelly, mas representou o lado obscuro das celebridades do fim do século XX. Cada tempo tem a princesa que precisa.

Lady Di foi a primeira princesa-celebridade à inversa: casou-se para ser infeliz para sempre. Foi célebre em sua transformação de uma nobreza obscura na princesa mais midiática que a monarquia britânica já teve. Não estou falando de presença em tabloides, fofocas e outras bobagens que oferecem o material que mantém o reinado em pé. No caso da nossa princesa, ela foi icônica em sua beleza, em seus segredos que nunca foram secretos, em sua oposição silenciosa e escandalosa à opressão real da rainha mãe. Todos sabemos sem saber dessas coisas, tão provavelmente inverídicas ou verídicas, tanto faz, mas certamente formatadas pelo interesse popular. Cada tempo tem a princesa que merece…

Diana foi a Cinderela ao contrário: foi escolhida, casou-se, caiu nas graças do povo mas não da casa real. Criou brilho próprio como diplomata e filantropa, teve vazadas suas depressões, anorexias e a dor pela frieza do marido. O príncipe, o mundo todo sabia, tinha sua paixão, que nunca foi ela. Diana é uma princesa mártir: ocupou seu lugar público, guindada a ele pela condição de esposa, sem nunca ter tido o direito ao trono no coração do aparentemente insípido consorte. Sua atuação pública, além dessa condição de uma certa marginalidade entre os nobres (apesar de sua linhagem), é de uma dedicação às causas humanitárias mais destacada do que havia sido visto em suas antecessoras.

O povo tinha de tudo para se identificar com ela: uma nobre que “não fazia parte”, como todos nós plebeus somos excluídos da nobreza; uma princesa com enorme coração, contrariando a vocação monárquica a ser mimados e indiferentes à fome. Lady Dy foi, então, uma nova síntese de verdadeira nobreza com seu oposto, os oprimidos, os plebeus sem valor frente à realeza, as mulheres abafadas e deprimidas pelo casamento. Ela ascendeu aos céus da admiração e também declinou em público, celebrizou-se pelo carisma e pelo sofrimento, em sua vocação para o martírio que angariou todo tipo de sentimento, menos a indiferença.

Muito se disse sobre a condição de celebridade que logo se colou à sua figura carismática, mas não podemos esquecer que a mistura de monarquia com show business já havia sido inaugurada em nosso tempo pela classuda Grace Kelly. A atriz loira e perfeita que subiu ao trono de Mônaco realizou o sonho de todas as plebeias: ser vistas pelo príncipe, escolhidas e levadas ao altar real.

Kelly já era icônica antes de tornar-se princesa. Como soberana, venceu, sem concorrer, todos os títulos de beleza nobiliárquicos e politicamente foi ativa em várias causas humanitárias e artísticas. Não é à toa que o casamento de Diana Spencer, 32 anos mais nova do que a mítica soberana loira do pequeno principado, foi referenciado no de Kelly. Este foi constantemente evocado durante a pomposa cerimônia televisionada da a transformação de Lady Di em Princesa de Gales.

Mas Diana era outro tipo de princesa, mais afeita à condição tumultuada das atrizes e figuras públicas contemporâneas, onde o escândalo não é feito de traições aos “bons costumes”, mas sim de exposição dos momentos de fragilidade pessoal, que também compõe o glamour. Por isso, nossa Cinderela britânica às avessas, é representante do “infelizes para sempre”. Hoje, fazem vinte anos da sua morte, em um acidente automobilístico, como James Dean, Grace Kelly e tantos habitantes reais do nosso imaginário. Eles foram mártires da velocidade e da nossa voracidade midiática.

Hoje as princesas são outras: anti-princesas, Valentes, Maravilhosas e guerreiras. Parece menos perigoso para as mulheres, pois lutam batalhas reais, arriscam suas vidas, mas, como se costuma nos contos de fadas, sempre vencem. AS herdeiras de Lady Di são soberanas feministas, adiam a escolha de um príncipe, privilegiam a sororidade. Elas protagonizam cenas perigosas, mas nenhuma delas vitimou tantas mulheres quanto a depressão, grande inimiga do passado, antes que pudessem combater no mundo real. Lady Di ficaria surpresa se pudesse ver quão longe as novas princesas puderam chegar, talvez o