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Os gritões da caixa de areia

A altura da voz e os atos de violenta intolerância são um mecanismo rudimentar, utilizado por povos e indivíduos quando enfrentam crises de identidade.

Minha avó húngara costumava observar que aquele que grita é o que suspeita não ter razão. Ela me dizia isso para que eu evitasse a deselegância absoluta de argumentar na base do volume da voz. A fala mansa, o raciocínio ponderado e o argumento pensado, eram, para ela, expressão de inteligência. Tinha horror de gente alterada.

Ela estava em posição adequada para falar de exageros, de discursos fanfarrões, pois viu a ascensão do nazismo acontecer e, estarrecida, constatou a massiva adesão popular às bravatas de indignação mais caricaturais. Os oradores performáticos e exaltados eram os “cidadãos de bem”, pedindo a eliminação dos culpados por macular a sociedade ideal que eles presidiriam. Por azar, ela pertencia à categoria dos ratos a serem exterminados. Sobreviveu reclusa num porão durante toda a Segunda Guerra, na qual perdeu sua família, exterminada em Auschwitz. Lá fora, os nazistas e seus asseclas vociferavam o quanto precisavam vingar sua pátria reduzida ao descrédito. Em vez de tentar uma saída econômica e diplomática, a indignação do povo alemão encontrou um judas para malhar e na guerra seu caminho. Não estamos, creio e espero, à beira do fascismo da mesma maneira, embora tapados de ódios e indignações.

A altura da voz e os atos de violenta intolerância são um mecanismo rudimentar, utilizado por povos e indivíduos quando enfrentam crises de identidade. As crianças bem pequenas, por exemplo, podem puxar o cabelo de outro bebê e chorar como se eles mesmos tivessem sofrido a agressão. Isso não é artimanha, é confusão de limites. Quando estas bordas, no sentido de onde termino eu e começa o outro, ficam tênues, é que as mordidas na caixa de areia começam. A maior parte da violência provém desse tipo de disputa territorial que está nos primórdios da identidade, essa frágil autoimagem que congrega o pouco que sabemos de nós mesmos.

Nas crises econômicas as tempestades raramente abalam os muito ricos, mas a classe média vive suas benesses como um barquinho pequeno e inseguro. Seu poder aquisitivo oscila e, decorrente disso, seu status social é mais frágil. Quando naufragam os privilégios daqueles que não os têm garantidos, os gestos de desespero são esperáveis. Nestes casos, é o prestígio e, portanto, um dos fundamentos da identidade, que ameaça se afogar. Ninguém quer parecer-se com os pobres, cuja miséria emoldurava a riqueza alheia.

Neste momento de crise, os limites que separam indigentes de pobres, e remediados de médios ficaram mais tênues. É hora, portanto, de gritar, morder o coleguinha e perder a elegância. Afinal, se não sabemos mais o que somos e, principalmente, quanto valemos, alguém deve ser responsabilizado, aos gritos, por isso. Cortem-lhe a cabeça!

Nossas tantas Alices

Por que Alice virou um “nome de época”?

Andam nascendo muitas Alices. Essa questão de nome de época nos pega sem nenhuma consciência de estarmos participando de um coletivo de repetidores. Aqui em casa fizemos isso nas duas gestações, nas quais nos apaixonamos por nomes para nossas filhas que pareciam perfeitos e originais. Chegada a época de creche ou escola, a maior parte dos pais surpresos descobre-se bem pouco original.

Há nomes que evocam um jogador de futebol em alta, um personagem da novela, atriz ou modelo famosa. Mas os verdadeiros nomes de época não tem origem tão clara, só passam a soar bem e não sabemos por que. Porém não creio que em relação à escolha de Alice isso seja tão enigmático.

Fazem cento e cinquenta anos que Carroll escreveu uma história que havia contado, durante um passeio, para as filhas de um colega. Entre elas estava Alice Liddell, por quem tinha declarada preferência. Ela gostou tanto daquela trama, na qual a protagonista tinha seu nome, que pediu que a escrevesse para ela. Convidado a publicá-la, ele acrescentou alguns personagens e cenários, compondo o inesquecível Alice no País das Maravilhas. Mas o que fez dessa história maluca, cheia de charadas lógicas, criadas por um matemático gago que dava aulas soporíferas, um clássico? Por que até hoje nascem Alices, francamente inspiradas pela heroína desta narrativa?

Carroll cativou seu público infantil inicial por criar trocadilhos e mal entendidos entre as personagens, que soam parecidos ao pensamento das crianças. Além do típico humor inglês, que mistura duras críticas com toques de absurdo e caricatura. Provavelmente, o sucesso da história foi decorrente da complexidade de linguagem, dos personagens e cenários oníricos e principalmente a irreverência tão diferente dos contos morais e pueris que eram dirigidos às crianças.

Carroll inventou a primeira heroína feminista da história da literatura infantil. É por isso que continuam nascendo tantas Alices. Ela explorou o País das Maravilhas debatendo, desobedecendo, questionando as figuras importantes do lugar, sendo irônica . Em nenhum momento teve medo ou vontade de voltar para casa. Ao contrário, para viabilizar as aventuras, foi mudando de tamanho sempre que necessário para ir a um novo lugar ou escapar-se de uma enrascada.

Paira uma dúvida sobre a pedofilia do autor, dado ao seu fascínio por meninas a quem inclusive fotografava adormecidas, com as roupas em sugestivo desalinho. Arisco dizer que Carroll era seu genuíno admirador. Não importa a identidade de gênero que ele teria assumido ou que teríamos lhe atribuído hoje, talvez gostaria de ter sido uma delas. O fato é que ele fez da pequena Alice Liddell o protótipo das meninas destemidas que hoje os pais querem colocar no mundo. E isso há cento e cinquenta anos!

A bela adormecida tamponada

Uma mulher indisponível, nem pornográfica, nele erótica, é uma imagem sinistra…

Nas imagens pornográficas as mulheres aparecem explicitamente ofertadas ao olhar e ao acesso dos interessados. Estes, ao menos imaginariamente, podem dispor delas para seu prazer. Quanto mais pornográfica e menos erótica for a representação, mais visíveis serão os orifícios “disponíveis”. A transformação de alguém em uma imagem incumbida de encenar fantasias alheias, sem levar em conta as que ele próprio possa ter, é o cerne da pornografia e o avesso do erotismo. As pessoas que consomem esse gênero não são egoístas ou pervertidas. São apenas neuróticos triviais que utilizam representações anônimas daquilo que imaginaram para atingir o gozo sexual.

É necessário que o outro seja passivo? Sem problemas. Dominante? OK. Cai bem que esteja encontrando prazer nas mãos de alguém do sexo oposto que não seja eu? Tudo bem. Preciso ver duas pessoas do mesmo sexo se desejando? OK.. Vários participantes, todos desejando uma só mulher? Para tudo há uma solução: a indústria pornográfica arregimenta pessoas capazes de praticar os contorcionismos necessários, a serviço de um Kama Sutra comercial pouco encontrável numa real cena de sexo.

Agora imagine uma dessas mulheres, linda e loira, colocada em posições clássicas da pornografia mas com todos os orifícios de seu corpo tamponados. Olhos, boca, nariz, ouvidos, vagina, ânus, cobertos com uma massa branca que a impede de qualquer relacionamento, ativo ou passivo, com o mundo. Numa urna de vidro, ao lado das fotos, estão os tampões, modelados em seu corpo.

No espaço de exposições do Santander, em Porto Alegre, entre outras instalações instigantes, os artistas Laura Cattani e Munir Klamt propõe essas fotos, da mulher tamponada, nem pornográfica nem erótica: sinistra.

Eles chamaram o conjunto das obras expostas de “Aporia”, traduzível por “impasse”, “beco sem saída”. Esse é o efeito desse corpo indefeso e inacessível. A anti-bela-adormecida dos retratos não está à espera nem de um príncipe que a beije, nem de um voyeur que a contemple. Ela tem seu corpo fechado, mas permanece em poses de disponibilidade, representando um paradoxo de passividade interditada.

No local, travei um diálogo com uma moça que trabalhava ali. Perguntei de quem era a obra. Ela entendia que eu indagava quem era a moça e dizia não saber informar a identidade da modelo. Insisti e ela também. Após o reiterado mal-entendido, compreendi que ela não aceitava o anonimato da retratada. Afinal, se era seu corpo, por que não seria ela identificada? Ficamos nessa conversa de surdos porque ambas nos angustiamos frente às fotos. Uma mulher cheia de rolhas é um doloroso retrato da passividade feminina. Ele nos mostra que fomos educadas para estar sempre alheias ao mundo e disponíveis para o uso.

Imposturas

É mais fácil falar do que não vivemos, os verdadeiros protagonistas da história são pouco eloquentes.

Rachel Dolezal, dirigente da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor preferia ser considerada negra, em vez de afrodescendente. Essa precisão linguística só chamou a atenção depois dela ter sido denunciada como “falsa negra” pela própria família de origem europeia.

Tania Head, famosa sobrevivente do 11 de setembro não existe. Alegava ter fugido da torre sul enquanto seu noivo David morria na torre norte. David tampouco existia. A verdadeira nem estava em Nova York no dia da tragédia.

Binjamin Wilkomirski escreveu Fragmentos, livro muito premiado e traduzido em várias línguas, narrando sua experiência de criança judia nos guetos da Polônia e nos campos de extermínio. O autor era um suíço que nunca saiu seu país durante a infância. No auge do seu sucesso, a BBC filmou o encontro dele com uma mulher que teria sido sua parceira de infortúnios. Apesar do evento meloso, ela era na verdade uma americana que tampouco esteve nos lugares onde teria sido supliciada.

Os relatos falsos são mais dramáticos e explícitos do que os dos verdadeiros sobreviventes. Basta observar a elegância enxuta das memórias de Primo Levi, por exemplo. O problema é que esses mitômanos, mentirosos por delírio ou mau-caratismo, desvirtuam o importante depoimento dos verdadeiros protagonistas da história. Aliás, pela minha experiência, estes últimos não costumam ser muito eloquentes.

Quem viveu episódios traumáticos guarda em relação a eles uma reserva cheia de dor, auto-recriminações e duros questionamentos sobre a condição humana. É por isso que minha tia-avó respondeu, quando a questionei na infância, que o número tatuado em seu braço, resto indelével do campo de concentração, era “um telefone que ela não podia esquecer”. Nem mais uma palavra. Nunca mais.

A presença de uma falsa afrodescendente nesse grupo de impostores depõe do caráter igualmente traumático da escravidão, cuja memória se atualiza na desigualdade racial que insiste em sobreviver. Essas falsas vítimas, que assumem uma identidade marcada pelo sofrimento alheio e lhes emprestam uma narrativa fantasiosa, são porta-vozes dos sentimentos de uma maioria culpada pelos feitos de seus antepassados. É por isso que seus embustes têm sucesso.

É inacreditável quão longe chegamos em termos de frieza, de crueldade. E se fossemos nós nesses momentos, teria sido nobre ou covarde nossa posição? Depois da escravidão, extermínios e guerras, nossa história é uma ferida aberta. A mentira das falsas vítimas, assim como os discursos dos fascistas e racistas que negam a legitimidade dos fatos, depõe da dificuldade de lidar com ela. O passado nos questiona e o presente ainda pede que nos posicionemos. É hoje, não ontem, que podemos mostrar de que fibra somos constituídos.

Velhos libidinosos

A quem interessa livrar-se do sexo tão cedo?

Um fazendeiro americano octogenário foi preso por assédio sexual. Não se trata de um vovô tarado, como tantos que destruíram vidas de netas e crianças da vizinhança, mas de um marido que insistiu em fazer sexo com a esposa doente. O casal vivia um amor tardio, ambos viúvos conheceram-se no coral da igreja e nos últimos anos constituíam um par romântico. Infelizmente, ela ficou com Alzheimer e por isso a relação entre ambos foi considerada criminosa.

Os especialistas de acusação, contratados pela filha, e da defesa obviamente divergem. Os primeiros dizendo que a demência faz o encontro deles equivaler-se ao estupro de uma criança por um desconhecido; já para os que não o culpam, o desejo erótico, assim como a fome, é uma busca de satisfação que a doença não suprime e pode inclusive ser benéfica.

Nesses quadros a memória não desaparece de forma contínua, há lampejos de reconhecimento. Quem convive com um desses doentes que se perdem de si mesmos, percebe que alguns laços afetivos sobrevivem, assim como rudimentos de carinho e alegrias. De fato, não sabemos se aquele ato sexual foi um abuso repulsivo ou o patético resto de um romance, mas não nos surpreende que o caso tenha sido rumoroso.

A polêmica em torno do casal de senhoras maduras e gays que recentemente trocou um beijo nas telas brasileiras, onde as telenovelas são formadoras de opinião, fala do mesmo fenômeno. Certamente dois tabus foram rompidos naquela cena, mas pouco se falou do preconceito contra a sexualidade dos idosos.

Por que preocupa-nos tanto manter o desejo erótico tão delimitado? Beijos, carícias, olhares e juras de amor são controlados não somente no que diz respeito aos clichês de gênero, mas também aos parâmetros do tempo. Acredita-se que o desejo dure enquanto temos corpos férteis e bonitos. A imagem de velhos na cama, com suas peles enrugadas e seus cabelos brancos, beijando-se, penetrando-se e trocando olhares lânguidos é tão inadmissível  para o senso comum quanto a de pessoas do mesmo sexo protagonizando a cena. Talvez até mais, por quê?

Os desejos sexuais, prescritos por lei ou não, são como dizem os advogados de defesa do senhor, uma carga vital importante e persistente. Não vivemos sem comer e a gula é admissível ao longo de toda a vida, mas o sexo sempre foi considerado optativo e temporário. A experiência erótica ocupa muito mais espaço imaginário do que real: é tão rocambolesco, neurótico e cansativo o roteiro de fatos e fantasias que envolve a vida sexual, que espera-se que um dia acabe. Soa até tentadora a ideia de que todo esse imbróglio seja finito, de que também disso se aposente. Então chegam esses velhos a dizer-nos que não haverá descanso, que seguimos até o fim à mercê dos impulsos eróticos. Assim é, aproveite se quiser e puder.

A cortesia amorosa do cafezinho

Regras da cortesia amorosa: ao contrário do que dizem, não vivemos uma época de vale-tudo no sexo e vale pouco no amor.

Para os mais apocalípticos vivemos tempos selvagens, onde o sexo tornou-se um açougue e a intimidade afetiva está extinta. A relação sexual casual, impessoal, sem palavras, teria afogado em gozo as verdadeiras trocas. De fato, por vezes é assim e não significa nada grave para os envolvidos. Mas, só para complicar esse raciocínio alarmista, temos uma instituição, representante do recato e da civilidade: o cafezinho, um encontro curto e marcante, como a bebida que o nomeia.

Suponhamos que duas pessoas se conhecem, pode ser na internet, num jantar de amigos comuns, na aula de inglês, na academia, trocaram telefones na parada de ônibus, num sarau, num encontro de meditação ou entre as estantes do supermercado. Podem ter havido alguns beijos ou até uma transa na saída de uma festa, talvez meio alterados pelo álcool. Porém, nada nesses encontros prévios, nem mesmo o sexo, significou qualquer autorização para a intimidade, nem para ilusões ou expectativas sobre a relação. Até que se tome um cafezinho.

Ele será marcado em um lugar público, na impessoalidade do shopping ou em um lugar mais simpático. Essa proposta já diz algo dos envolvidos. Aí começam as pistas, a partir das disponibilidade de horários, das partes da cidade com as quais se tem intimidade, do meio de locomoção. Para muitos casais que se iniciaram virtualmente há o desafio de ver-se pela primeira vez e, principalmente, do efeito causado pela presença do outro.

O desejo erótico responde a variáveis muito peculiares, lapidadas com nossa identidade. Chegar de bicicleta ou num carrão, ter uma aparência certinha ou desalinhada, frágil ou possante, são dados que podem ou não coincidir com a cartilha que regra a excitação de cada um. A sociedade é cheia de clichês sobre a sedução, mas os desejos não são assim tão estereotipados. Ainda bem. Aliás é bem comum que alguém se surpreenda supondo que seria lógico gostar de uma pessoa assim, mas só consegue sentir desejo sexual por pessoas assado.

Então, nossa dupla de candidatos ao amor se encontrará para o dito cafezinho. Um café pode resultar em amor, amizade ou na conclusão de que não há o que fazer juntos. Nesse último caso, em geral partem sem ressentimentos, pois o cafezinho é uma aposta mínima, não será uma saída vexatória. É diferente de um convite para jantar ou para ir um cinema, que são um passo adiante.

Na mesa do cafezinho, o destino está depositado em tudo aquilo que dizem ter desaparecido: as palavras, os olhares, as delicadas sutilezas do encontro e da erótica. Seguimos tendo nossos métodos de cortesia amorosa. A liberdade sexual é contemporânea do cafezinho.

Memórias feitas com sangue

Apesar dos rios de sangue, poder e dinheiro se afogam, o tesouro que sobrevive é a herança cultural

O “México é um país feito por suas feridas”, escreveu Carlos Fuentes. Apesar disso é um país que mexe com nossas fantasias de prazer, pois dele esperamos o efeito eufórico de suas cores e tequilas, das Fiestas, da música dos Mariachis, das praias e da alegria com que se combate o luto. Realizei um velho sonho e fui para lá, gostei tanto que só penso em voltar.

Muito sangue se derramou em conflitos entre Astecas, Mexicas, Maias, quer seja em guerras ou sacrifícios rituais, além de que os espanhóis foram conquistadores cruéis. Sem contar os lances dramáticos da Independência e da Revolução Mexicana de 1910. Imperadores, conquistadores, revolucionários, políticos e artistas deixaram marcas difíceis de apagar, num povo que faz questão de lembrar.

Presenciei uma cena, no Museu de Antropologia, que pode ilustrar essa relação peculiar com a memória. O guia se esforçava para apresentar uma maquete do sítio arqueológico de Tehotihuacan a um grupo de turistas, quando uma senhora de traços indígenas aproximou-se e começou a explicar a seu neto do que se tratava aquele lugar. Parecendo nem perceber a presença dos estrangeiros, fez para o pequeno, em voz alta, sua própria introdução ao tema. Por instantes, as vozes do guia e da avó duelaram, até que ela o silenciou e partiu sem dedicar sequer um olhar aos outros presentes. Aquilo era seu por direito inquestionável. Em todos os lugares históricos e museus que visitei, partilhei a experiência com grupos de escolares que, acompanhados por seus mestres, aprendiam a história de seu próprio país.

Boa parte da população mexicana assume sua identidade Asteca ou Maia, assim como adota muito a sério a fé católica deixada como herança pelos espanhóis. Além disso é onipresente a memória de políticos e líderes populares que, entre outras coisas, valorizaram a educação e a memória. É também um país que sofre com o poder do narcotráfico, inflado por um estado apático ou conivente, enquanto milícias populares assumem o controle em periferias e povoados isolados.

Carlos Fuentes fala de dois Méxicos, o do “papel dourado” e o da “terra descalça”. Entre eles, o legado da revolução popular de 1910 parece ter erguido algumas pontes, que se traduzem na atitude prepotente e ao mesmo tempo digna daquela avó.  “Apesar de seus fracassos políticos, a Revolução Mexicana foi um êxito cultural. Tornou evidente a continuidade cultural do país, apesar das suas fraturas políticas”, acrescenta Fuentes. Além de toda a beleza natural e cultural daquele lugar, talvez precise voltar lá para terminar de entender como se faz para sentir que se tem um passado, uma história para reivindicar. Felizmente, o culto da memória não se afogou no rio de sangue que brotou dos altares de sacrifício e nunca deixou de correr.

25/05/15 |
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Ócio não criativo

A febre dos livros de colorir evoca o direito das crianças acamadas, no passado, de ficar quietas e obsoletas.

Na minha infância ficar doente não era tão mau negócio assim. A convalescença era um tempo de regalias e uma boa dose de atenção extra. Claro, não valia se fosse algo grave, que significasse preocupação, hospital ou, o pior de tudo: injeção. Tínhamos sarampo, varicela, rubéola, caxumba. Pegávamos tudo, pois não havia vacina para a maior parte delas. Quando um irmão, parente ou amigo aparecia doente, éramos levados para “pegar de uma vez”, essa era a única forma de ficar imunizados. Nas famílias numerosas essas doenças faziam tantas vítimas quanto crianças houvesse na casa. Um amigo meu conta que uma das suas maiores tristezas era de que ele nunca pegava nada, sentia-se privado das vantagens dos doentes.

A prescrição de repouso era coisa séria, tínhamos que ficar deitados, de pijama, durante dias a fio. Para nos distrair, além da permissão para ver um pouco mais de tevê, haviam as revistinhas e os livros para colorir. A comida, embora em geral parente da canja, tinha a enorme vantagem de ser na cama. Enfim, ficar doente era ser reis por uns dias, as coceiras e febres até que compensavam. Naquela época esse tratamento era excepcional: ser criança não era tão importante como hoje, em que se pensa na felicidade delas o tempo todo. A lembrança desses tempos de ócio e mimos está fortemente associada aos livros de colorir que, para minha surpresa, tornaram-se uma coqueluche (para manter-se no tema) entre os adultos. São publicações com títulos como Jardim Secreto, Floresta Encantada ou Jardim Encantado, com gravuras lindas, detalhistas, que exigem muita atenção, dias de trabalho e mão firme para serem preenchidas. Tentei comprar um desses e fui informada de que os milhares de exemplares estavam esgotados, aguarda-se uma nova tiragem.

Os livros de colorir não são criativos, não é preciso pensar. A escolha da cor é o máximo de desafio que eles requerem. Alguém criou esses jardins de traços para que pudéssemos habitar seus espaços vazios com nossas cores da infância. Talvez estejamos mesmo meio doentinhos, precisando de uma canja na cama e ficar parados sem culpa.

O bom daquelas doenças, em que éramos objeto de cuidados especiais, era o fato de que não havia culpa, pegava-se sarampo porque era o certo a se fazer naquele momento da vida. Agora, quando adoecemos, penitenciamos por estar cuidando pouco do nosso corpo: há de se fazer mais exercícios, prestar mais atenção na alimentação, organizar melhor nosso tempo para dormir mais e melhor. Estamos exaustos de tantos mais, sempre mais. Não estranha que tanta gente esteja optando por ficar com os lápis de cor na mão por dias, completando espaços em branco. Também quero.

O moicano

Pelo menos desde o século XIX a sociedade formata o mesmo adolescente que marginaliza.

“Seus cabelos estavam cortados quase até o couro cabeludo, com exceção de uma pequena tira no cocuruto da cabeça, puxada para baixo sobre a testa para formar uma franja”. Assim , o jornal britânico Daily Graphic descrevia um jovem infrator que estava sendo julgado. A personagem era esmiuçada em detalhes quase literários, em matéria que, além do corte de cabelo moicano, chamava a atenção para a vestimenta e postura do jovem meliante. Em suas atraentes narrativas sobre gangues juvenis, a imprensa ajudou a construir o estilo dos jovens delinquentes típicos de uma época turbulenta. Detalhe: estamos falando de 1898, século XIX.

Os Hooligans, como passaram a ser nomeados nos jornais, rapidamente assumiram os estereótipos e inclusive as denominações que lhes eram atribuídas, numa clara simbiose entre criadores e criaturas. A descrição do fenômeno é de Jon Savage, autor do livro A criação da juventude, leitura quase obrigatória nestes tempos de discussão sobre a redução da maioridade penal.

Os adolescentes de cada época têm o dom involuntário de revelar as fraturas do tecido social. Eles não são revolucionários natos, apenas são observadores, recém-chegados ao amor, ao sexo, à circulação no mundo externo. Para construir sua identidade aprenderão a buscar sua cotação em nosso sistema de valores. Curiosos a respeito dos adultos desde a infância, não levam em conta o que dizemos: é o que fazemos e pensamos que, mesmo sem querer, descobrem. A tendência é identificarem-se com os desejos mais secretos dos adultos, dos quais há pistas por todos os lados. Por exemplo: não temos o trabalho e a aprendizagem em grande conta, admiramos o sucesso dos que conseguem poder, prestígio e dinheiro sem esforço e à revelia de seus mestres, com muito prazer e tempo livre.

Assim como fez a imprensa no século XIX, nossa sociedade foi criando seus personagens marginais, alimentando sua identidade. A cada época construímos, mesmo sem perceber, um ideal de adolescência. Na nossa, o segredo é que se viva para consumir e gozar a vida, mais que seus antepassados e a qualquer custo. Isso serve para os que nascem em berço de ouro, mas também é a mesma fórmula que adotam os que, marginalizados, precisam chegar aos mesmos pódios pelos atalhos do exército do tráfico.

Portanto, quando queremos trancafiar os jovens, principalmente os mais pobres, responsabilizando-os por nossas cidades em guerra civil, é dos nossos desejos que estamos nos envergonhando. Ao acusá-los de perversos e imorais, esquecemos que eles são nosso espelho. Fazemos deles a lata de lixo onde despejar a incivilidade dos anseios egoístas que regulam a sociedade que constituímos. Além de injusta, é uma manobra inútil: são apenas nossas criaturas e nós os criadores.

Insanidades do destino

É possível criar uma Psicopatologia à la “Mynority Report”?

O recente episódio do copiloto que precipitou (propositalmente, até onde se sabe) o avião nos Alpes pode trazer um perigoso efeito colateral. Temo uma onda de preconceito contra qualquer abalo psíquico constatado. Não somente diagnósticos podem gerar perseguições, como creio que muitos possam evitar procurar ajuda temendo ser estigmatizados.

Quando a loucura ronda nossa vida, a sanidade revela seus limites. Quem teve um parente que se perdeu em delírios tem pânico de carregar dentro de si essa predisposição. Quem vê um amigo começar a ter pensamentos bizarros sente de perto a fragilidade da razão. Pode, afinal, explodir tal descontrole com qualquer um? A mente é como um campo minado? Não creio, sempre há um lento processo, em geral bastante visível, e é raro que seja completamente silencioso. Os agudos sofrimentos da alma devem ser acompanhados e os perigos podem ser reduzidos, mas nem por isso podemos prever tudo, como sugerido no filme Minority Report (Steven Spielberg, 2002).
Almejamos o conforto da lógica, negando que a loucura e a morte nem sempre são “justas” e previsíveis. É com certo alívio mórbido que descobrimos uma imperícia da vítima entre as causas de um acontecimento trágico ou triste. Se teve câncer, é porque fumava; se sofreu um ataque cardíaco, é porque era obeso; o acidente deveu-se ao álcool, a violência ocorreu porque a vítima se expôs. Nesses casos, parece que basta ser cauteloso e seguir as recomendações de saúde para estar a salvo. Quem dera.
Não conheço o caso do moço e sei que tudo o que lhe diz respeito será arrolado no cortejo das causas que tornariam previsível seu ato. O mesmo acontece em casos de suicídio e de atiradores de escola. Presume-se que alguém falhou na decifração das pistas que o sujeito foi deixando escapar. Porém, para cada suicida ou assassino em série, há milhares de pessoas que perdem a esperança de viver ou que nutrem graves mágoas e ressentimentos contra alguém ou contra todos, mas nada fazem. A maior parte dessas pessoas apenas rumina coisas que lhes intoxicam a alma nos momentos de angústia, tristeza e melancolia. Outras, poucas, vão enlouquecer de fato, ficar agressivas com os familiares, ouvir vozes. Raras, em número ainda menor, provocam tragédias. Para diferenciar um caso do outro, o melhor é proporcionar a todos os que sofrem oportunidades de receber acolhida e escuta.
Infelizmente, não temos uma previsão exata das consequências de determinados pensamentos e sentimentos. Dirigir com cuidado e viver saudavelmente contribuem para diminuir os riscos, mas não impedem as maldades do destino. Não podemos isolar e maltratar qualquer um que não se sinta psiquicamente bem como se ele fosse atirar um avião no chão. Cuidado com nossas fantasias onipotentes, a morte sempre ri por último.