A comilança
Sobre os banquetes natalinos
Desde que o homem é homem comunga em torno do alimento, mas não basta que comamos juntos, a refeição deve oferecer uma fartura que garanta a saciedade e deve haver sobra. Uma boa mesa de celebração deve causar nos comensais a sensação de que eles são muito poucos para dar conta da quantidade e ou variedade oferecida. É esperado que os convivas aleguem estar mais que satisfeitos, devem se declarar totalmente incapazes de ingerir um bocado a mais que seja.
A cortesia amorosa do cafezinho
Regras da cortesia amorosa: ao contrário do que dizem, não vivemos uma época de vale-tudo no sexo e vale pouco no amor.
Para os mais apocalípticos vivemos tempos selvagens, onde o sexo tornou-se um açougue e a intimidade afetiva está extinta. A relação sexual casual, impessoal, sem palavras, teria afogado em gozo as verdadeiras trocas. De fato, por vezes é assim e não significa nada grave para os envolvidos. Mas, só para complicar esse raciocínio alarmista, temos uma instituição, representante do recato e da civilidade: o cafezinho, um encontro curto e marcante, como a bebida que o nomeia.
Suponhamos que duas pessoas se conhecem, pode ser na internet, num jantar de amigos comuns, na aula de inglês, na academia, trocaram telefones na parada de ônibus, num sarau, num encontro de meditação ou entre as estantes do supermercado. Podem ter havido alguns beijos ou até uma transa na saída de uma festa, talvez meio alterados pelo álcool. Porém, nada nesses encontros prévios, nem mesmo o sexo, significou qualquer autorização para a intimidade, nem para ilusões ou expectativas sobre a relação. Até que se tome um cafezinho.
Ele será marcado em um lugar público, na impessoalidade do shopping ou em um lugar mais simpático. Essa proposta já diz algo dos envolvidos. Aí começam as pistas, a partir das disponibilidade de horários, das partes da cidade com as quais se tem intimidade, do meio de locomoção. Para muitos casais que se iniciaram virtualmente há o desafio de ver-se pela primeira vez e, principalmente, do efeito causado pela presença do outro.
O desejo erótico responde a variáveis muito peculiares, lapidadas com nossa identidade. Chegar de bicicleta ou num carrão, ter uma aparência certinha ou desalinhada, frágil ou possante, são dados que podem ou não coincidir com a cartilha que regra a excitação de cada um. A sociedade é cheia de clichês sobre a sedução, mas os desejos não são assim tão estereotipados. Ainda bem. Aliás é bem comum que alguém se surpreenda supondo que seria lógico gostar de uma pessoa assim, mas só consegue sentir desejo sexual por pessoas assado.
Então, nossa dupla de candidatos ao amor se encontrará para o dito cafezinho. Um café pode resultar em amor, amizade ou na conclusão de que não há o que fazer juntos. Nesse último caso, em geral partem sem ressentimentos, pois o cafezinho é uma aposta mínima, não será uma saída vexatória. É diferente de um convite para jantar ou para ir um cinema, que são um passo adiante.
Na mesa do cafezinho, o destino está depositado em tudo aquilo que dizem ter desaparecido: as palavras, os olhares, as delicadas sutilezas do encontro e da erótica. Seguimos tendo nossos métodos de cortesia amorosa. A liberdade sexual é contemporânea do cafezinho.
A cristaleira
Reformando tudo, iludido-nos que nada devemos ao passado…
No recinto vazio do apartamento recém comprado reinava ela. Reluzente, portentosa, revestida de espelhos por dentro e laca brilhosa por fora. Não contente com isso, a maldita cristaleira tinha um dispositivo de luz interna. Aquele palácio iluminado de breguice parecia dominar minha futura sala. Móvel imóvel, embutido, perfeitamente encaixada num vão que parecia ter nascido para recebe-la. Declarei-lhe guerra.
Sílvia, minha arquiteta, acostumada com meus orçamento e bom senso limitados, suspirou e ponderou que então teríamos que pensar algo para colocar naquele buraco, quem sabe se lhe déssemos uma nova maquiagem? Venceu a falta de dinheiro e o bom senso dela e hoje, em sua forma original, vivemos as duas em completa harmonia. Por vezes meus olhos a encontram e, já uma velha amiga, me pergunto como foi que lhe questionei a permanência.
A cristaleira deixada pelos antigos donos do apartamento que comprei era, na verdade, um patrimônio: bem feita, tinha a grande qualidade de estar já pronta, por que tirá-la? Fora o estilo bem diferente do meu, seu maior defeito era atestar a presença anterior daquelas pessoas. Imóvel usado sempre traz consigo marcas, escolhas e cicatrizes deixadas pelos antecessores. Ao chegar, a atitude mais comum dos novos proprietários é achar tudo horrível, derrubar paredes, colocar abaixo banheiros e cozinhas em perfeito estado, enquanto luminárias, pisos, trincos e torneiras são trocados por modelos na moda. Há algo mais do que gosto pessoal que se revela nessa renovação compulsiva à qual tendemos.
Ao nascer, costumamos herdar várias cristaleiras, metaforicamente falando, mas lutamos para ser originais. Pelo menos na própria existência queremos ser os primeiros a chegar. Isso se reproduz nos imóveis que ocupamos, como se houvesse uma contradição insolúvel entre a presença anterior e a nossa. Como na cristaleira, tentamos suprimir seus traços para garantir algum ineditismo no lugar que ocupamos no mundo. Na vida como no imóvel, grandes ou pequenos embutidos das gerações passadas vamos carregar. Ficar completamente contemporâneos na superfície não elimina a existência de raízes sob a terra. Colocar tudo abaixo não resolve isso.
Somos obrigados a caracterizar por escolhas pessoais, ou que se caracterizem pelo “novo”, cada milímetro do nosso corpo e dos lugares que ocupamos. O problema é que, além do desperdício de material, dinheiro e trabalho, lá onde julgamos colocar um traço próprio em geral estamos sendo escravos de modismos e propagandas. A quebradeira apaga um acervo que testemunha alguma história, do local, da família, de uma cultura, alem de não garantir nenhuma singularidade ao morador. Por que transformar o lindo parquê do nosso passado num frio porcelanato sem nenhuma história para contar?
A cristaleira
Entrar na vida é como mudar-se para um imóvel usado, por vezes precisamos botar abaixo para fazer do nosso jeito, por outras vale a pena valorizar o passado que vem embutido em cada lugar.
No recinto vazio do apartamento recém comprado reinava ela. Reluzente, portentosa, revestida de espelhos por dentro e laca brilhosa por fora. Não contente com isso, a maldita cristaleira tinha um dispositivo de luz interna. Aquele palácio iluminado de breguice parecia dominar minha futura sala. Móvel imóvel, embutida, perfeitamente encaixada num vão que parecia ter nascido para recebe-la. Declarei-lhe guerra.
Sílvia, minha arquiteta, acostumada com meus orçamento e bom senso limitados, suspirou e ponderou que então teríamos que pensar algo para colocar naquele buraco, quem sabe se lhe déssemos uma nova maquiagem? Venceu a falta de dinheiro e o bom senso dela e hoje, em sua forma original, vivemos as duas em completa harmonia. Por vezes meus olhos a encontram e, já uma velha amiga, me pergunto como foi que lhe questionei a permanência.
A cristaleira deixada pelos antigos donos do apartamento era, na verdade, um patrimônio: bem feita, tinha a grande qualidade de estar já pronta, por que tirá-la? Fora o estilo bem diferente do meu, seu maior defeito era atestar a presença anterior daquelas pessoas. Imóvel usado sempre traz consigo marcas, escolhas e cicatrizes deixadas pelos antecessores. Ao chegar, a atitude mais comum dos novos proprietários é achar tudo horrível, derrubar paredes, colocar abaixo banheiros e cozinhas em perfeito estado, enquanto luminárias, pisos, trincos e torneiras são trocados por modelos na moda. Há algo mais do que gosto pessoal que se revela nessa renovação compulsiva à qual tendemos.
Ao nascer, costumamos herdar várias “cristaleiras”, metaforicamente falando, mas passamos a vida obstinados em ser originais. Nem que seja na nossa própria existência queremos ser os primeiros a chegar. Isso se reproduz nos imóveis que ocupamos, como se houvesse uma contradição insolúvel entre a presença anterior e a nossa. Como no caso da minha cristaleira involuntariamente herdada, tentamos suprimir seus traços para garantir algum ineditismo no lugar que ocupamos no mundo. Na vida como no imóvel, grandes ou pequenos embutidos das gerações passadas estamos fadados a carregar. Ficar completamente contemporâneos na superfície não elimina a existência de raízes sob a terra. Colocar tudo abaixo não resolve isso.
Como assinalou minha tolerante arquiteta, ao implicar com todas as heranças, você terá que arcar com os custos de preencher as lacunas do que erradicou. Já que na vida nosso orçamento de forças costuma ser limitado, é de bom alvitre decidir em quais renovações investir os esforços: não haveria uma cozinha que sem reformas seria impossível de usar? Tem certeza que a prioridade é a cristaleira?
Há heranças indesejáveis, como a mania de limpeza da sua vó, o humor infantil do seu pai, podem ser os antepassados perdulários ou que emprestavam o que não tinham, os sovinas, marcados pelo egoísmo, as mães severas ou desligadas, os pais ausentes ou policialescos, grandes ou pequenos dramas que recebemos ao nascer, embutidos no nome de batismo. Quem sabe vale a pena focar no que realmente obstrui o caminho, como uma família marcada pelas repetidas falências, ou pelos desentendimentos entre irmãos, ou pela incapacidade de mover-se do lugar de origem? Em caso de decidir no que investir o orçamento da reforma, chame um bom psicanalista. Esta profissão costuma entender da arquitetura da mente.
Em nossos tempos de gente que se orgulha de “ter feito a si mesmo”, heranças costumam ser incômodas. O valor maior está nas escolhas pessoais, ou que se caracterizem pelo “novo”, em cada milímetro do nosso corpo e dos lugares que ocupamos. O problema é que, além do desperdício de material, dinheiro e trabalho, lá onde julgamos colocar um traço próprio em geral estamos sendo escravos de modismos e propagandas. A quebradeira apaga um acervo que testemunha alguma história, do local, da família, de uma cultura, além de não garantir nenhuma singularidade ao morador. Por que transformar o lindo parquet do nosso passado num frio porcelanato sem nenhuma história para contar?
A delicada arte de ajudar
Empatia: a arte de ajudar sem soberba
A delicada arte de ajudar
Aeroporto lotado, um bebê desses que recém aprenderam a caminhar, grita, chora e se desespera por um tempo que parece infinito. Está no colo da mãe exausta, que já não o acolhe, ele corcoveia e acaba atirando-se no chão. Também lacrimosa, ela só suplica que pare. Bebês entram em inércia, assustam-se com os próprios gritos, estão exaustos mas não conseguem estancar o pânico.
Entre os adultos presentes, trocávamos olhares cúmplices de enfado, incômodo e irritação. O tempo foi dando lugar à preocupação: o estado da mãe não dava pistas de que a situação seria contornada, ela precisava de ajuda. Havia outras mães, famílias, crianças de várias idades, mas na prática estávamos todos paralisados.
Para alívio geral, outra mãe e seu bebê de idade similar aproximaram-se da dupla. Ela iria tentar acalmá-lo, pensei. Mas ela era mais esperta e melhor pessoa do que eu. Tomar o pequeno desestruturado em braços dar-lhe o consolo necessário iria colocar a mãe dele numa posição inferiorizada, de incompetência. É claro que a colapsada mulher teria ficado grata igual, afinal ela tinha perdido o controle.
Nossa samaritana teve uma ideia ainda melhor: entregou ao seu bebê um biscoito e pediu que ele fosse levar para o amiguinho que estava muito triste. O menino fez de bom grado e ainda lhe ofereceu seu próprio bico. O pequeno berrador conseguiu aceitar a oferta generosa, vinda de alguém do seu mesmo tamanho. É como se ele visse um espelho de si mesmo, mas em um momento de calmaria. Se a mãe daquele simpático bebê tivesse tentado pegar o sofredor no colo, ou mesmo dizer à outra o que fazer, teria tido muito mais dificuldade em desfazer a cena.
O bebê foi generoso porque sua mãe também o era, deixou o assunto ser tratado entre gente pequena, evitando a usual competição entre mães. Foi uma lição de empatia: só tem reais condições de entender uma dor aquele que passou por uma experiência similar, e qual mãe não passou? Sem dispor dessa conexão também podemos ajudar, e muito, mas sem a soberba de achar que estamos sabendo o que o outro está sentindo. Convém ser humilde, admitir respeitosamente que nossa inexperiência atrapalha e deixar-se guiar por aquele que sofre.
Fui mãe de bebês e trabalhei com eles. Tem horas em que a gente só pensa em morrer ou livrar-se da criatura, em que as mães sentem-se tão desamparadas quanto seus filhos. Acho que todos nós adultos, irritados e paralisados, estávamos impactados, tendo evocações dos pais e filhos que fomos e somos. Por sorte existem no mundo aqueles que são capazes de entender que pessoas crescidas às vezes também precisam de biscoito e bico.
A esperança equilibrista
Sobre os 25 anos da morte de Elis Regina
São 25 anos sem Elis Regina. Ela legou um repertório escolhido e interpretado com tal paixão autoral que certas músicas são indissociáveis da sua versão. Partiu deixando em todos a impressão que perdemos um parente. A arte dela nos pega de diversas formas, mas em mim uma foi particularmente inusitada: quando me tornei mãe e me propus a entoar cantigas de ninar, imiscuiu-se entre as cucas e bois da cara preta “O Bêbado e a Equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, cantada por Elis.
A ex-madrasta
sobre os efeitos da separação sobre os padrastos e madrastas que perderam contato com seus enteados.
O desencontro se deu numa loja de departamentos: sem ser vista, ela pôde observar com calma a moça que circulava entre as araras. Tentava em cada traço recordar a garotinha insone que lhe pedia muitas histórias antes de dormir. Foram tantas noites juntas lutando contra os medos do escuro. A jovem mulher não evocava em nada sua menina, sua boneca Emília depois de engolir a pílula falante. Tornara-se uma desconhecida. Depois de tantas conversas sem pé nem cabeça, hoje não imaginava nada sério para lhe dizer. Devia estar com vinte e quanto? Passara-se mais de uma década da separação e todas as fantasias de manter contato foram dolorosamente dissolvidas. No fim do casamento, parecia-lhe óbvio que manteriam um laço. Com o tempo sua incredulidade foi dando lugar à resignação: era apenas a ex-esposa do papai.
As novas configurações familiares produzem padrastos e madrastas órfãos de uma família que sentiram como sua. As razões para esses afastamentos são infinitas, mas a central é que essas relações com os enteados são vistas como um gesto romântico, que consiste em cuidar e valorizar os filhos do outro. Alguns vínculos podem se tornar fortes, porém poucos driblam o fim do casal.
Depois de uma separação os filhos mantêm uma fantasia duradoura de reunificar a família. Aliás, mesmo que já não se gostem seus pais ainda serão obrigados a se encontrar, discutir providências, finanças, partilhar festividades, resolver problemas. Já o novo casal do pai ou da mãe é visto como uma obstrução a esse fantasioso propósito de reencontro do casal parental. O amor recém chegado sempre vai acabar herdando uma culpa, que em geral não teve, pelo fim de uma família, que podia ser ruim, mas era a que originou aquele filho.
Claro que há exceções, mas frequentemente, quando chega ao fim um relacionamento onde o filho é só de um, parece ser a hora perfeita para uma espécie de vingança. O padrasto ou madrasta serão condenados ao ostracismo, numa demonstração de fidelidade aos pais, e ressurgirá o despropositado desejo de que o casal original volte a se encontrar. Numa separação, frente à partilha dos afetos, o ex-enteado tomará o partido do seu pai ou mãe, além de deixar claro aos pais originais que nunca os substituiu, apenas aceitou aquela madrasta ou padrasto como parte do pacote do novo casamento.
Em pé, na loja de departamentos, lembrava o passado quando a garota a fizera sentir-se quase uma mãe. Seu ex-marido aprovava a intensidade da relação, a mãe da menina educadamente aceitava a ajuda. Hoje, sem ao menos um nome certo para o que sente, resolveu sair de cena sem chamar a atenção.
(Publicado na Revista Vida Simples, edição de outubro de 2011)
A família reinventada
Sobre o livro A Família em Desordem de Elisabeth Roudinesco
Uma estrutura familiar consiste em um vínculo sexual e afetivo oficializado (civil e ou religioso), na união de dois seres humanos de sexos diferentes, que gera e cria uma ou mais crianças. Certo? Errado! A estrutura familiar se baseia numa relação nem sempre oficializada e quando isso ocorre cumpre mais a função de celebração dum amor.
A fila da padaria
Sobre relações amorosas contemporâneas
Devo ter uma obsessão por fila de padaria. Sempre que alguém se impacienta porque que não encontra um amor, acabo dizendo que pode estar em qualquer lugar -“até na fila da padaria”. Inconscientemente estou torcendo que encontrem um “pão”. Minha frase inspira-se numa gíria do tempo da Jovem Guarda: “pão” era um homem que ninguém, em sã consciência, expulsaria da sua cama.
A história do macaco
Sobre a paranóia nossa de cada dia, essa que nos cega para a solidariedade e os bons encontros!
Um sujeito dirige de madrugada por uma estrada erma quando descobre que está com o pneu furado. Pior, está sem macaco. Desesperado, enxerga uma luz ao longe. Deve ser uma casa, pode pedir ajuda. Começa a caminhada rumo à salvação, quando lhe ocorre que o julgarão inconveniente por acordá-los àquela hora, sendo um estranho e pedindo um macaco. Talvez atirem pensando ser um ladrão. Pode estar interrompendo um casal que namora e irão odiá-lo. Segue seu rumo imaginando cenários terríveis e que irão lhe negar o pedido, mas mesmo assim bate na porta. Quando ela se abre, nosso viajante já está furioso com os moradores e convicto que irão maltratá-lo. A primeira coisa que ele diz é: “Quer saber de uma coisa, pegue esse seu macaco e enfia…..!”.
Esta é uma anedota antiga, mas muito bem nos ilustra. Quantas vezes ocorre estarmos precisando de uma mão amiga e supomos antecipadamente que nos será negada. Ao invés de pedir ajuda, agredimos a quem nos quer bem, mal interpretamos seus atos, convictos de que traduzem rejeição ou má vontade.
Quando infelizes, olhamos tudo e todos com as lentes do mau humor e do ressentimento. Alguém deve ser culpado pela tristeza que sentimos. Sem perceber, odiamos todo mundo. Por que, então, não haveriam eles de sentir o mesmo em relação a nós? Melhor ainda, preferimos pensar que são os outros que odeiam. Aos próprios olhos, somos anjos que só querem o bem do próximo. Atribuir seus sentimentos ao outro é uma “projeção” – sentir que vem de fora o que está dentro – é assim que os psicanalistas chamam esse mecanismo. Considerar-se alvo de intenções ruins por parte dos outros não deixa de ser uma paranóia, forma da loucura que se serve fartamente da projeção.
Paranóico é o sujeito que acha que o mundo conspira contra ele. Nessa visão delirante, tudo gira em torno de si. Ele possui a certeza de ser o umbigo do universo. Alguém tão importante só pode ser a reencarnação de Jesus, John Lennon, Joana D’Arc ou Napoleão, conforme o gosto do freguês e o momento histórico. Dizemos que ele tem delírio de perseguição, pois de fato trata-se de alguém sempre alerta, que precisa ficar esperto para não sucumbir.
Mais triste é dar-se conta da paranóia cotidiana entre aqueles ditos normais. Na maior parte do tempo os outros não querem nosso mal, tampouco nosso bem, simplesmente estão ocupados com outra coisa que não nossa digníssima pessoa. Os outros são como os moradores sonolentos daquela casa, até abrir a porta e escutar o que queremos, não estão nem aí para nós. Mas, uma vez informados dos nossos pedidos, necessidades e queixas, em geral há em volta gente boa com quem contar. Teremos o macaco de que precisamos e, não duvido, ajuda para trocar o pneu.