Zero Hora
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Dio come ti amo

O jeito enviesadamente lúcido com que as crianças lêem o mundo.

A promoção era irresistível: em troca de dois rótulos de Omo, uma entrada para ver o filme Dio come ti amo. Para quem não é da época, enchia cinemas como um Titanic. Tempos do blockbuster à parmegiana.

Elvira, a moça que trabalhava lá em casa, não pestanejou, recortou as embalagens e não pensava em outra coisa. O problema é que a barbada só valia nas matinés de dia de semana. Como fazer se uma das suas tarefas era cuidar de mim? Simples, levar-me junto.

E lá nos fomos, Elvira, eu e uma centena de outras jovens mulheres com seus passaportes de caixa de sabão em pó. Marca séria, além de lavar ainda mais branco, levava suas clientes fiéis ao cinema.

Esperto, saquei que se tratava de um filme religioso. Já tinha visto outros na escola. Seria mais uma mensagem sobre a benevolência do nosso criador e como Ele, apesar de não sermos merecedores, nos atura e nos ama. Enfim, fiquei contente com a quebra de rotina e, de inhapa, alimento espiritual.

O filme era italiano, percebi pelo título. Na minha família se falava um pouco de italiano. O que me ajudou na tradução de Dio foi o Porco Dio, uma das palavras de entusiasmo que escutava dos meus adultos, uma espécie de interjeição, servia para sublinhar momentos. Nunca entendi bem o sentido, duas coisas opostas, mas o padre nos dizia que religião é fé e fé é mistério. Portanto, existem coisas da religião que não entendemos. No meu caso particular, o mistério da fé se apresentava no Porco Dio. De qual natureza de Deus estavam a falar? Lembro também um expressivo e enigmático campo semântico que envolvia hóstia e cachorros, mas isso é outra história…

Na matiné eu era o mais jovem da fila, talvez o único representante masculino e, ao meu ver, também o único que se comportava bem diante de um momento solene. Havia uma excitação no ar, estavam todas algariadas. Esperava mais seriedade, na missa ninguém se comporta assim.

O porteiro fez uma cara feia para mim. Não sei se era porque eu não tinha os cupons mágicos mas, pressionado pela multidão, e pela conversa da Elvira sobre a premência e importância dela ver o filme, entramos. Depois Elvira me contou que ela e o porteiro eram conhecidos e outras coisas.

Começou o filme. Porco Dio, que religião estranha! Seria a mesma que a minha? Haviam muitos olhares e muitos beijos, muitos e demorados beijos. Mas, na essência, era uma religião do amor, não havia dúvida. Havia uma moça que amava muito a Deus e a um rapaz e cantava isso para todos. Para não estragar a surpresa de quem não viu, não conto com quem ela ficou. Enfim, um enredo positivo, comovente, muitas choravam. Por isso não entendi porque minha mãe, quando soube que fui ver essa mensagem de fé e esperança no amor de Deus e dos homens, ficou tão braba com a Elvira. Coisas de mãe são como a fé, cheias de mistérios.

18/07/15 |
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Livros impróprios ou pais censores?

A literatura nunca é perigosa, muito pior é o silêncio censor.

Pergunte a um professor de literatura do ensino médio qual é o seu maior dilema em aula e a resposta provavelmente será: quais livros devo sugerir para serem lidos e debatidos. Mas atenção, a questão não é que o professor não tenha suas escolhas e preferências, seus livros de estimação, o ponto é como não ferir suscetibilidades, principalmente dos pais da garotada e raramente dos seus alunos. Se o assunto é sexo o campo é sempre minado. O resultado é que os professores se autocensuram e escolhem obras menos polêmicas, enquanto os jovens precisam buscar informação sobre sexo em outros lugares. Geralmente em becos bem mais escuros e a sós.

Saber é poder e no que toca ao sexo, nessa idade, vale como nunca, por isso os adolescentes são tão ávidos por obras que lhes forneçam alguma informação. O desafio de sua vida nesse momento é fazer laços afetivos entre seus pares que os ajudem a se desgrudar do amor dos pais. Ora, sexo, erotismo e amor se confundem na cabeça do nosso jovem, ele está a mercê de uma certa fascinação e da supervalorizada expectativa que temos sobre a questão. Seria útil se houvesse um manual de instruções, ainda que fosse vago, impreciso, imperfeito. A questão é que, por sorte, os manuais não funcionam, seu alcance é limitado.

A leitura poderia ajudar, existem obras da literatura que não fogem da raia, que tratam da questão. Como essas raramente são adotadas, os jovens as descobrem sozinhos, ou no boca boca e as leem sem discussão, ou então só com o entusiasmo dos amigos. A literatura tenta ensinar aquilo que nem os pais nem a escola conseguem. Ela mostra como a vida é complicada, como nossos pensamentos que parecem anormais são corriqueiros. Ela nos deixa menos sós, não somos os únicos a sofrer de angústia sem explicação, há outros que se sentem perdidos e sem rumo, que fazem besteiras sem saber a razão. A boa literatura é o único espelho dos abissais que são a diversidade e complexidade humanas e sua tênue fronteira com a loucura. Ela ajuda a pensar certos comportamentos, fornece novas palavras para sensações enigmáticas, renova a linguagem corrompida pela fala materialista e burocrática da política e da propaganda, funda mundos imaginários para descansarmos do presente. A riqueza de um texto tem o dom de recriar a linguagem envenenada pela banalidade do pensamento obscurantista daqueles que sabem o que é bom para os outros. Ela não necessariamente nos salva, mas fornece boas pistas para achar o fim do labirinto da adolescência.

A literatura adoraria ter tanto poder formativo como acreditam seus censores. Especialmente no sexo, é bom esclarecer que ela não cria fantasias sexuais, apenas fornece cenários que enriquecem e polemizam certas questões. Ninguém vai se tornar pervertido por saber que isso ou aquilo se faz. As fantasias que comandam a vida sexual já estão construídas num adolescente, apenas ele não as explicitou, não as explorou. Confunde-se a descoberta da própria sexualidade com a sua formatação que vem da infância. Não é sem influência, mas é como colorir um desenho que já está feito.

Na mesma linha de raciocínio: recorte algo que existe na realidade e todos conhecemos, coloque isso num lugar público visível e está feita confusão. Pode ser um beijo gay, o sexo mais banal de um casal, um adolescente fumando maconha, enfim, desejos e comportamentos nem tão incomuns ou obscuros. No julgamento de quem censura, tudo deveria permanecer oculto, como se a exposição do já existente justificasse e legitimasse esse fato.

Os pensamento censor acredita que a literatura, a propaganda, a novela não são amostras das várias formas de ser, pensam nelas como autorização e convocação à imitação. Na verdade só cumprem a função provocativa que abre portas para discutir o assunto. A questão é: quem tem medo de uma discussão? A reposta é óbvia: quem não tem argumentos senão escudado na suposta autoridade dos que pretendem nos livrar da perdição. Esses mesmos que veem o público como uns desmiolados que só esperam um exemplo para seguir.

Com o acesso à internet, hoje disponível na maioria dos lares, qualquer jovem encontra pornografia, apologia às drogas, incentivo ao suicídio, e qualquer outra bestialidade imaginável. Mas o detalhe: ali ele está sozinho, sem um adulto, sem um guia que o ajude a discriminar o que serve do que é lixo, do que destrói sua sensibilidade e embota sua inteligência.

A adolescência é um momento sem bússola. Longe de seus antigos pais protetores, que com o fim da infância perderam seus poderes, melhor deixar que eles ao menos estejam perto de alguém que já tenha mais estrada na vida. Os mestres e seus livros podem ajudar a lidar com o peso das exigências do sexo. Confie nos professores de literatura ou nos professores e orientadores que não fogem dessas discussões em aula. Talvez eles não tenham a mesma opinião que você, mas é um adulto tentando uma ponte para ajudar neófitos a discernir o sublime do vulgar no açougue que o sexo pode vir a ser para nosso adolescente. Se evitarmos as obras sobre sexualidade e erotismo nos currículos, vamos deixar que o único professor de nossos filhos na educação sexual seja a pornografia.

A maconha e o demônio

confrontando teses paranóicas de que um jornal só se posicionaria pela descriminalização por interesses comerciais.

Se você não acredita em meu Deus deve acreditar em meu demônio. Em síntese, essa é a lógica  binária e pueril que infelizmente domina hoje muitas discussões, negando que o mundo tem muitos outros tons.

Fiquei contente com a posição da Zero Hora sobre a maconha porque rompe com esse simplismo. Ela coloca-se como muitos clínicos que também enfrentam esse problema: não endossando o consumo, mas sendo favorável a liberação. O que queremos é tirar o problemas da sombra do delito para melhor enfrentá-lo. Sabemos dos perigos da legalização mas conhecemos muito bem os graves tormentos da ilegalidade.

A repressão nunca conseguiu diminuir o consumo da maconha e as ações educativas, num ambientes de proibição, tendem apenas envolvê-la numa bruma que exagera seu perigo e a torna atraente por ser pretensamente transgressiva. Acreditamos que jogar às claras e desmistifica-la é o melhor caminho.

Essa posição, que aliás é uma tendência mundial, parte de um fato simples: existe um contingente enorme de consumidores que não estão dispostos a abrir mão de seu hábito e agem com desdém aos conselhos dos profissionais de saúde. Resta-nos muda nossa abordagem para estar perto deles. Se quisermos nos aproximar desse contingente, a primeira coisa é sair da posição de verdade, da postura arrogante de quem se julga com o monopólio do saber sobre o que é bom para os outros. Essa clínica que só consegue apontar a abstinência como estratégia não funciona mais. Não podemos seguir infantilizando e subestimamos o consumidor. E mais, qualquer droga, quando afunda alguém, nunca é só ela. Ela apenas é um atalho para o pior, mas é um sofrimento, uma desesperança, uma tristeza uma depressão que realmente levam a isso.

O campo da clínica é duro porque é sempre perpassado por dúvidas, raramente somos taxativos. Mas quando vejo nossos colegas, adversários dessa posição de maior tolerância, ao invés de argumentos, sacar teorias conspiratórias, reduzindo o complexo problema das drogas à futuros lucros publicitários, disso tiro uma certeza: o que está em questão é o esgotamento teórico do paradigma repressivo.

(publicado em Zero Hora em 12/03/2015)

Fabrício e a vaia

Um jogador destemperado e uma torcida mimada.

A vaia é o vestibular do mundo adulto. Se você já recebeu e matou no peito é porque deixou a infância onde tudo eram afagos e elogios. A vida adulta é trabalho e critica, e a forma mais dura da cobrança é a vaia. Pessoalmente não acredito na sua eficácia. Ela fala mais da impotência e da falta de educação de quem a produz do que da performance de quem a recebe. Ela por si mesma não tem uma força educadora, construtiva, mas ela está aí, cada dia mais.
Fabrício anteontem não matou a vaia no peito. Ele tem o preparo para ser jogador, mas não para ator, para encenar uma personagem que o ultrapassa. Não compreendeu que as vaias fazem parte do contrato que assinou e que o futebol é também um espetáculo catártico, um catalisador de emoções, um lugar onde buscamos um sentido épico que a vida nos nega. Temos gladiadores modernos que deixamos que saiam vivos da arena, mas nem por isso cobramos menos sangue. Fabricio escutou isso do modo errado e voluntariamente abriu suas veias para nós. Seu destempero o afundou e gozamos de sua falência moral. A torcida o derrotou.
Fabricio recebia vaias pelo conjunto da obra, deixou o time na mão várias vezes com expulsões desnecessárias, comprava brigas tolas, se excedia de todas as formas. Existem jogadores que derrotam as vaias. Valdomiro usou-as para se aperfeiçoar. Trabalhou mais e mais até ser o melhor cobrador que já pisou no Beira-Rio. Não acreditava na predestinação e no talento, mas sim no trabalho exaustivo que deve ser aliado ao dom natural. Fabrício queria uma admiração sem contrapartida, um incentivo mesmo no erro. Ele não lapidou seu talento, não domou sua fúria, permaneceu como uma criança mimada e birrenta. Não entendeu que existe um outro mais mimado em campo, a torcida.
O Internacional tem uma torcida maravilhosa. Quantas vezes juntou o time do chão e o empurrou para a vitória. Mas nessa quarta feira, sem querer, deu um tiro no pé. Posou de consumidor exigente e criou mais um problema para um time ainda em montagem. Creio que o momento é de guardar as vaias para desestabilizar os adversários.
Dizem que o treinador Rubens Minelli preparava o time para enfrentar 12 adversários. Os 11 da equipe adversária e o juiz. Insistia: o juiz não é nosso amigo, ele não vai nos compreender nem nos perdoar. Ele é mais um pedra na nossa chuteira. Espero que os treinadores do Internacional não precisem dizer que temos que enfrentar 13 adversários, como o juiz, a torcida também não é nossa amiga, não vai nos compreender nem nos perdoar.