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O insuportável do corpo feminino

Com quantos tabus não se faz um corpo feminino?

Por muitos séculos perdurou a ideia de um sexo único e a mulher seria um homem com órgãos sexuais internalizados, o que a tornava incompleta, inferior.
É espantoso o tempo que a ciência e a medicina demoraram para descobrir como funcionava a reprodução humana. As especulações sobre o ainda misterioso prazer sexual das mulheres e as teorias delirantes sobre o tema perduraram por séculos.
O corpo feminino está cercado de tabus; há muito nele que não se sabe e muito que não se quer saber. Por que? A psicanalista Diana Corso nos conduz a uma reflexão do que pode ser “o insuportável do corpo feminino”, programa da série: “A sexualidade como ela é” de curadoria de Fabricio Carpinejar.
Café filosófico CPFL
Publicado a 04/12/2016
para assistir, copie e cole este link:

25/11/17 |
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Cada tempo com a presença de que se precisa

Será que um dia a comunicação digital fará parte naturalmente de setting analítico?

A importância do atendimento presencial para a psicanálise é o tema deste artigo produzido pela psicóloga Diana Lichtenstein Corso especialmente para a EntreLinhas, revista do Conselho Regional de Paicologia.

A psicanálise é um encontro estranho, que viola todas as regras convencionais da etiqueta do convívio, mas ainda acima de tudo é um encontro. Os interlocutores falam muitas vezes sem olhar-se nos olhos, os silêncios são parte do diálogo, momentos em que alguém pode parar para pensar na presença do outro sem que isso gere maiores incômodos. Em um encontro social, se ficamos em silêncio, impactados pelo que dissemos ou escutamos, isso é no mínimo constrangedor, já em uma sessão analítica os momentos quietos fazem parte do ritmo do diálogo.
Esses momentos quietos não são tão comuns como se imagina no anedotário da psicanálise, onde se repre-
senta um analista mudo, olhando no relógio e tomando notas e um paciente falando meio sozinho. Embora não sejam a maior parte de uma psicanálise, faz parte poder estar juntos, escutando o ritmo da respiração e os barulhinhos do ambiente. É por isso que, mesmo quando uma psicanálise não está passando pelos seus momentos mais eloquentes, continua sendo um encontro, onde se suporta tanto o ritmo no qual um paciente consegue se expressar, quando o tempo necessário para que o analista diga algo que seja realmente interessante.
Nesses encontros, o simples fato de estar juntos, acompanhando-se, testemunhando-se, sentindo o aconchego da rotina dos encontros, já produz efeitos terapêuticos. Por isso, acredito que o atendimento virtual, quer seja via imagem, para os pacientes que trabalham “cara a cara”, ou telefônica, para os trabalhos “de divã”, é viável apenas como uma continuidade do trabalho presencial, quando seu uso se faz necessário.
Sei que há colegas que já empreendem atendimentos que são quase totalmente virtuais, ou mesmo total- mente virtuais, mas não posso depor sobre isso por falta de vivência. Jamais comecei um trabalho assim, sem nun- ca ter me encontrado com o paciente em termos físicos, reais, só me ocorreu de empreender esse tipo de trabalho quando algum paciente precisa que nos encontremos e isso não é possível pela distância e algum impedimento para que ele se desloque. Já ocorreu por períodos da vida de algum paciente, que passou a morar longe ou que mora longe e não está conseguindo viajar, ou mesmo de forma alternada, também com pacientes e supervisionandos que a distância física nos barra o encontro regular.
Outra modalidade de recurso à comunicação virtual é com os adolescentes que já estão em atendimento e que por vezes se atrapalham com os horários ou estão com dificuldades para sair de casa, nesses casos é preciso que a montanha vá até Maomé, buscando os meios possíveis, quer por telefonemas, com imagem ou sem, quer via mensagens trocadas com agilidade, para presentificar-se dentro do que eles estão podendo suportar. Não é raro que com os adultos, em determinadas fases ou momentos isso também
aconteça, às vezes uma sessão vira uma troca de mensagens.
Como sinto limitações nesses momentos, tanto para respirar o mesmo silêncio nos telefonemas ou sessões virtuais com imagens, quanto para fazer essas trocas de mensagem surtirem um efeito mais significativo, acabo considerando esses encontros virtuais um pouco menores do que os presenciais. Mas penso que aqui há algo de geração, em que me sinto em processo de ser talvez superada.
Houve épocas em que uma análise ocorria todos os dias, os pacientes de Freud mudavam-se para Viena e dedicavam-se às suas análises que eram mais curtas e intensas. Hoje um processo prolonga-se ao longo de mais tempo, numa rotina mais pausada, com intervalos maiores entre as sessões, não mais se suspende uma vida para pensá-la, agora vamos vivendo e tentando elaborar o que está nos ocorrendo ao mesmo tempo.
Se a experiência psicanalítica pôde modificar-se tanto assim, considerando também que para as novas gerações o espaço virtual não é sentido como algo assim tão diferente do presencial, não vejo por que considerar que a absorção do virtual ao setting analítico não acabaria sendo incorporada. É um exercício de futurologia, pensando na psicanálise sendo exercida entre gente nascida já em sua vigência, que sente -se mais cômoda no ambiente virtual do que eu. Para mim é algo menor, mas para estas novas gerações que têm seus telefones e computadores como espaços genuínos de encontro, veremos como será.

Um olhar infantil sobre o diferente

A intolerância será tanto mais forte e, portanto, violenta, quanto mais restritas forem as possibilidades de criar, cooperar e dialogar. Quanto maior a pobreza de espírito de um grupo social, tanto menores seus recursos simbólicos, portanto, vai ter que utilizar-se de uma gramática binária para se descrever: eu, bom, não eu, ruim.

IHU on line – Revista do Instituto Humanitas Unisinos
EDIÇÃO 491 | 22 AGOSTO 2016
Entrevista concedida a João Vitor Santos

Diana Corso observa como as crianças apreendem a ideia de diferente, em uma perspectiva que não exclui e que busca um crescimento emocional e cultural para absorver a “variabilidade de modos de ser, viver e pensar”
“Quando nos associamos para brincar ou criar, as diferenças entre nós são úteis, interessantes, diversificam o que estamos fazendo. Já quando somos passivos, como os alunos de uma escola tradicional, ou só ficamos brincando sozinhos e observando os outros, tornamo-nos competitivos e não suportamos as diferenças”. A elaboração é da psicanalista Diana Lichtenstein Corso acerca da relação tolerância/intolerância sobre o diferente, o que não é igual a mim. Ela observa essa relação a partir das experiências infantis. “As crianças não notam diferenças de forma estereotipada, elas observam o que a cultura as treina para ver”, aponta. Assim, a ideia do diferente para os pequenos é algo muito volátil em meio ao seu mundo de descobertas e transformações. “As diferenças que estereotipamos em nossa sociedade, de gênero, cor da pele, status social, são variáveis mínimas em relação a essa polissemia da infância”, explica Diana, ao lembrar que as crianças se atêm tanto a essas diferenças quanto às de tamanho, de altura, por exemplo.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a psicanalista analisa como a criança pode ser tomada como uma terra sem formas, portanto aceitando qualquer moldura para ver o outro. Para Diana, muito mais interessante é oferecer para crianças o acesso a um crescimento emocional através do contato com os diferentes. Isso permitirá que ela desenvolva um verdadeiro olhar sobre o outro para além dos preconceitos forjados nos estereótipos e convenções sociais.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que medida a intolerância é inerente ao ser humano e em que medida surge na relação com o meio em que se vive?
Diana Lichtenstein Corso – Vamos situar o aparecimento da agressividade entre os bebês, aqueles um pouco maiorzinhos, que conseguem brincar perto uns dos outros. Veja bem, não estou me referindo a crianças que brincam juntas, mas apenas por perto, reparando no que o outro faz e por vezes trocando, oferecendo e disputando objetos. São criaturinhas ainda em fase de construção da sua capacidade de representação simbólica, já conseguem “papar” [alimentar-se] e dormir de brincadeira, esconder-se do olhar do outro e reaparecer com júbilo, por exemplo, mas não bolar em conjunto com outra criança uma trama para partilhar, criar uma fantasia em conjunto, contracenar com personagens, ou mesmo seguir regras grupais de uma brincadeira. Estamos falando, então, de rudimentos de sociabilidade.
Nesse contexto, surgem as maiores disputas, por brinquedos, pela atenção dos adultos, por entrar em certo lugar. Onde o outro está, o que a outra criança estiver fazendo, torna-se objeto de cobiça. Quanto menores, mais as crianças funcionam em espelho, pois ainda estão definindo seus próprios contornos, como se houvesse um só lugar, aquele que acabam de descobrir observando o outro e ali querem estar.
Bom, conto essa história de bebês porque a agressividade, a intolerância em nossa sociedade tem justamente a ver com a solidez da imagem que cada um tem de si. Por exemplo, se alguém vale somente por ter um smartphone, por ter um carro, uma roupa com etiqueta tal, não vai suportar que todo mundo possa ter. É preciso dividir o mundo entre os que, para usar o código das crianças pequenas, estão no balanço e os outros que ficam olhando de fora. É diferente quando numa sociedade consegue-se trocas mais simbólicas, que passem pela palavra, por um olhar capaz de perceber a beleza ou de despertar a curiosidade de forma mais complexa do que códigos rudimentares de ter ou não ter um número restrito de objetos que vão dizer quem é alguém — está no balanço — e quem não — ficará olhando.
Essa possibilidade de associar-se para criar, que é a brincadeira infantil propriamente dita, está no coração de tudo o que fazemos de criativo, desde a arte propriamente dita, até uma equipe científica ou que desempenha determinada tarefa prática conjuntamente de modo eficiente e colaborativo. Quando nos associamos para brincar ou criar, as diferenças entre nós são úteis, interessantes, diversificam o que estamos fazendo. Já quando somos passivos, como os alunos de uma escola tradicional, ou só ficamos brincando sozinhos e observando os outros, tornamo-nos competitivos e não suportamos as diferenças, pois precisamos do outro como espelho e contraponto.

IHU On-Line – Como o sentimento de intolerância aparece na infância? Como é elaborado pelos pequenos e como perceber a necessidade de intervenção? De que forma as crianças veem o diferente? O quanto podem ter essa perspectiva alterada pela ação dos adultos que a cercam?
Diana Lichtenstein Corso – As crianças não notam diferenças de forma estereotipada, elas observam o que a cultura as treina para ver. Até é interessante ressaltar que a infância é muito variada em termos de formatos, tamanhos e capacidades. O ritmo de crescimento é muito, muito variado. Há crianças de três a dez anos de todo tipo de tamanho, há os que têm complexão física mais encorpada e os quebradiços, os que crescem como pipoca estourando e os que demoram muito, passam a infância inteira estilo mignon, os atléticos, os capazes de concentrar-se, os líderes, os tímidos, eles são variados entre si e também em relação a si próprios. É comum o amiguinho voltar das férias todo diferente, cresceu ou mudou de jeito.
Nesse sentido, as diferenças que estereotipamos em nossa sociedade, de gênero, cor da pele, status social, são variáveis mínimas em relação a essa polissemia da infância. Se não for instruída para isso, uma criança não observará a cor da pele do amigo, mas sim sua altura, seu jeito de falar ou de calar, enfim, ela escolherá os critérios do que é mais importante para ela. Ater-se aos nossos padrões de preconceito adulto é para as crianças um treinamento recebido dos adultos.

Associações e exclusões: sofrimentos normais
Situações radicais de exclusão e bullying na infância ocorrerão principalmente se elas se organizarem em grupos passivos, com padrões restritos e pouco colaborativos. Aí vale a lógica dos pequenos, dos que têm poucos recursos simbólicos. Por outro lado, entre as crianças temos alguns dramas de associação: as panelinhas, os grupos de três, organizados para deixar um de fora, os clichês que organizam uma turma de colégio entre populares, nerds, gays, e tantas outras categorias. Esses são recursos de trocas amorosas, em geral do homoerotismo básico que aparece muito forte na pré-puberdade, quando as questões de quem vale o que para ser desejado ou admirado pelos outros tornam-se muito importantes.
São sofrimentos normais, que, se o “sucesso social” não for uma obsessão para a família, serão encarados com mais leveza e até um certo humor pelas crianças. Porém, se a criança estiver inserida em um contexto em que o prestígio no grupo e a capacidade de liderança, que tomam como prova do potencial para o exercício do poder, forem um grande valor, acima dos de solidariedade, tolerância e companheirismo, esses jogos grupais serão fonte de grandes dramas e péssimos para a construção de uma identidade mais definida. A criança tenderá a diluir-se na massa, obedecendo às regras mais rudimentares de comportamento e formas de ser, estabelecidas por um senso comum que nunca deixa de ser pobre de espírito.

IHU On-Line – Há um limite entre a intolerância e a violência? Quando a intolerância se perfaz em força e violência, essencialmente na infância?
Diana Lichtenstein Corso – A intolerância será tanto mais forte e, portanto, violenta, quanto mais restritas forem as possibilidades de criar, cooperar e dialogar. Quanto maior a pobreza de espírito de um grupo social, tanto menores seus recursos simbólicos, portanto, vai ter que utilizar-se de uma gramática binária para se descrever: eu, bom, não eu, ruim.

IHU On-Line – Qual o papel das fábulas e dos clássicos infantis no desenvolvimento das crianças? Em que medida essas histórias solidificam convenções sociais e fecham perspectivas e em que medida abrem um horizonte para o novo e aceitação para o diferente?
Diana Lichtenstein Corso – As histórias que a infância de cada época adota para si não cria o modo de ser das crianças, é esse modo que edita a ficção de cada época. Por isso, em nossos livros escritos sobre o assunto, com o Mário Corso , tomamos as histórias como reveladoras de um modo de ser, de estar no mundo, dos gêneros se definirem, das famílias se organizarem, dos valores, enfim do tecido social que nos organiza.
Os contos ditos tradicionais, ou seja, que vêm acompanhando várias gerações, guardam apenas um núcleo da trama idêntico uma geração após outra. Alguns, como é o caso da Rapunzel após Enrolados , da Bela Adormecida após Malévola , da Branca de Neve após Branca de Neve e o Caçador , ou mesmo João e Maria caçadores de bruxas , estão tão recheadas de novas referências de gênero que estão se tornando muito diversos de suas versões mais consagradas no passado. Mas, se formos olhar, essas mesmas versões que tomamos como clássicos já são radicalmente modificadas das suas fontes da tradição oral, que por sua vez passaram por várias modificações antes de chegar às crianças, como as versões picarescas ou cheias de maneirismos voltadas ao público adulto impressas, recompiladas e recontadas por vários autores. A ficção, quanto mais atrás pudermos encontrar alguns traços de constância em determinada história, mais ela irá contando das nossas transformações históricas.
Histórias são verdadeiros documentos de história social, reveladoras da subjetividade dos habitantes de cada tempo e lugar e do que eles partilhavam de comum naquelas coordenadas específicas. Essas questões da multiplicidade de identidades possíveis, principalmente no que diz respeito a gênero, onde masculinidade e feminilidade, antes drasticamente diferenciadas agora se embaralham, assim como da diluição das hierarquias familiares, que tendem à horizontalidade, estão fortemente representadas na ficção infantil. O cinema é o modo de expressão artística que mais rapidamente absorve e difunde essas novidades, ele visa grandes públicos, então tenta traduzir-lhe os desejos. Não podemos dizer que ele cria uma tendência cultural, ele é criado por ela e, por sua vez, ajuda a consolidá-la.

IHU On-Line – Hoje, é comum perceber que crianças não têm mais medo e aceitam criaturas como bruxas, lobos e monstros não como manifestações do mal. Ao mesmo tempo, veem-se princesas, príncipes, reis e rainhas não mais como figuras tão cândidas e bondosas. Como observa esses movimentos? Quais as questões de fundo que suscitam?
Diana Lichtenstein Corso – O medo é importante na infância, ele ajuda a delimitar os lugares e as pessoas seguras: se meu quarto não é a floresta, o papai não é o lobo mau e a mamãe não é a bruxa, portanto, posso dormir em paz. Só que para que haja todas essas exclusões, a floresta, o lobo e a bruxa têm que estar rondando do lado de fora, para garantir o aconchego do interior.
Além disso, como todos temos dentro de nós fantasias que são representadas pela maldade e pelos perigos desses cenários e personagens aterrorizantes, deixá-los de fora, mas de certa forma acessíveis, garante que nossas coisas ruins e pensamentos assustadores fiquem depositados neles. Outrora, outros temores, de um mundo mais mágico, pelas crendices e pela religião rivalizavam com a ficção. Hoje, isso empalideceu e por isso, embora as crianças e adolescentes não “acreditem” na veracidade dessas histórias, eles morrem de medo igual, ou seja, mantêm esse hábito de outorgar seus medos e fantasias a personagens que os encarnem e ajudem a dar conta deles.
A arte dá conta dos nossos conteúdos mais difíceis de elaborar, e isso vale igual para o que é oferecido às crianças, pela literatura, televisão, quadrinhos, cinema, teatro, games. Nesse sentido, como dizia antes, agora as personagens não são tão estereotipadas: gêneros, padrões de beleza e comportamento, vêm se modificando. Depois do Shrek , de Valente , Frozen e tantas recriações dos contos de fadas, temos claro que as crianças maiorzinhas não querem ser tratadas como bobas com personagens simplórios. Ainda gostam de um final feliz, mas adoram as nuances, como a transformação da princesa do Shrek em ogra, o oposto da tradição.
Já os bem pequenos ainda precisam lidar com menos variáveis, por isso gostam de personagens um pouco mais planas, mas apreciam que elas tenham seus perrengues e suas inquietudes. Crianças, como povos, quanto mais acesso tiverem a um crescimento emocional e cultural, menos simplórios serão seus raciocínios e, portanto, melhor poderão absorver nossa maravilhosa variabilidade de modos de ser, viver e pensar.■

Marcas de nascença

Além de um nome, ao nascer recebemos uma pequena vinheta, que frequentemente será nosso mito de origem particular. Cabe a nós fazer disso uma sina ou o simples começo de uma história.

Minha mãe conta que nasci invertida, de parto normal, o que já em si é uma temeridade. Jura que convenceu aos doutores desatentos de que estava em trabalho de parto mostrando-lhes meus pezinhos, que chegavam antes da cabeça. Comecei a vida colocando os pés pelas mãos. Deve ser por isso que até hoje sou um tanto impulsiva.
Como psicanalista, conheço muitas histórias sobre o nascimento. Elas são atribuídas a cada recém chegado como um mito de origem. Funciona como um signo, explicam por que somos assim ou assado, só que é um horóscopo particular. Algumas delas são narrativas familiares, mas há a variante privada: é o momento que consideramos paradigmático do que nos tornamos. Todos temos uma vinheta do passado como uma espécie de mito particular de estimação.
Por vezes essas histórias dizem respeito ao parto, como a minha, por outras dão conta de seu modo de ser enquanto bebê. Também existem aquelas que atribuem o sentido de uma vida a um trauma, um susto, uma doença, morte ou frustração. Teu berço era uma caixinha de sapatos; ele era o gêmeo menor, o outro comia tudo; eras um bebê enorme, guloso, tua mãe virou um fiapo; choravas o tempo todo; dormias tão tranquilo que nos esquecíamos de ti. Quantas histórias, parecidas com essa, você conhece a seu respeito ou dos outros?
É difícil dizer o que nos determina. Os astros alinhados na hora em que saímos do corpo materno? A genética, guardando o tesouro dos nossos humores, doenças e dons? A sociedade que nos abriga? O status dos nossos familiares? Talvez a ordem em que nascemos: primogênitos, do meio, caçulas? Parte de uma prole extensa ou únicos? Seria o nome recebido, síntese da prescrição de desejos paternos?
As variáveis são muitas e sempre há alguém que coloque a ênfase, ou acredite, na exclusividade de uma ou outra. Mais fácil é rastrear as histórias familiares que se enlaçam com nossa chegada, nossos primórdios. Em geral temos uma ou mais, e quase todas são um pouco bizarras, excêntricas. É inegável que somos determinados pela biologia e pelo contexto, mas sobre isso monta-se uma versão: é a narrativa familiar que nos torna peculiares.
A história de cada um de nós é como um jogo de xadrez: o desenlace é influenciado pela jogada de abertura. A vantagem é que, embora sejamos um jogo de cartas marcadas, muitas delas são coringa. Em resumo, há jogo de corpo, mobilidade, plasticidade: podemos variar o ponto de vista, o tom da narrativa, o estilo. Cada humano nasce como uma trama a ser editada e continuada.
Você já lembrou qual a sua história? Feito isso, tente descobrir como conversou com ela ao longo da vida, se fez dela um xeque mate ou uma abertura de jogo. Talvez tenha se empenhado para confirmar as predestinações, ou para contradizê-las. Bem, como eu cheguei atravessada, talvez seja por isso que decidi dedicar-me à psicanálise, a arte do imprevisto, do indizível. O inconsciente é essa razão oculta que determina um sentido e uma verdade ao que parece enviesado, estranho e impulsivo.

Uma Cinderela ao contrário: vinte anos da morte de Lady Di.

Lady Di foi uma princesa diferente, casou-se para ser infeliz para sempre. Ascendeu e morreu como sua precursora midiática Grace Kelly, mas representou o lado obscuro das celebridades do fim do século XX. Cada tempo tem a princesa que precisa.

Lady Di foi a primeira princesa-celebridade à inversa: casou-se para ser infeliz para sempre. Foi célebre em sua transformação de uma nobreza obscura na princesa mais midiática que a monarquia britânica já teve. Não estou falando de presença em tabloides, fofocas e outras bobagens que oferecem o material que mantém o reinado em pé. No caso da nossa princesa, ela foi icônica em sua beleza, em seus segredos que nunca foram secretos, em sua oposição silenciosa e escandalosa à opressão real da rainha mãe. Todos sabemos sem saber dessas coisas, tão provavelmente inverídicas ou verídicas, tanto faz, mas certamente formatadas pelo interesse popular. Cada tempo tem a princesa que merece…

Diana foi a Cinderela ao contrário: foi escolhida, casou-se, caiu nas graças do povo mas não da casa real. Criou brilho próprio como diplomata e filantropa, teve vazadas suas depressões, anorexias e a dor pela frieza do marido. O príncipe, o mundo todo sabia, tinha sua paixão, que nunca foi ela. Diana é uma princesa mártir: ocupou seu lugar público, guindada a ele pela condição de esposa, sem nunca ter tido o direito ao trono no coração do aparentemente insípido consorte. Sua atuação pública, além dessa condição de uma certa marginalidade entre os nobres (apesar de sua linhagem), é de uma dedicação às causas humanitárias mais destacada do que havia sido visto em suas antecessoras.

O povo tinha de tudo para se identificar com ela: uma nobre que “não fazia parte”, como todos nós plebeus somos excluídos da nobreza; uma princesa com enorme coração, contrariando a vocação monárquica a ser mimados e indiferentes à fome. Lady Dy foi, então, uma nova síntese de verdadeira nobreza com seu oposto, os oprimidos, os plebeus sem valor frente à realeza, as mulheres abafadas e deprimidas pelo casamento. Ela ascendeu aos céus da admiração e também declinou em público, celebrizou-se pelo carisma e pelo sofrimento, em sua vocação para o martírio que angariou todo tipo de sentimento, menos a indiferença.

Muito se disse sobre a condição de celebridade que logo se colou à sua figura carismática, mas não podemos esquecer que a mistura de monarquia com show business já havia sido inaugurada em nosso tempo pela classuda Grace Kelly. A atriz loira e perfeita que subiu ao trono de Mônaco realizou o sonho de todas as plebeias: ser vistas pelo príncipe, escolhidas e levadas ao altar real.

Kelly já era icônica antes de tornar-se princesa. Como soberana, venceu, sem concorrer, todos os títulos de beleza nobiliárquicos e politicamente foi ativa em várias causas humanitárias e artísticas. Não é à toa que o casamento de Diana Spencer, 32 anos mais nova do que a mítica soberana loira do pequeno principado, foi referenciado no de Kelly. Este foi constantemente evocado durante a pomposa cerimônia televisionada da a transformação de Lady Di em Princesa de Gales.

Mas Diana era outro tipo de princesa, mais afeita à condição tumultuada das atrizes e figuras públicas contemporâneas, onde o escândalo não é feito de traições aos “bons costumes”, mas sim de exposição dos momentos de fragilidade pessoal, que também compõe o glamour. Por isso, nossa Cinderela britânica às avessas, é representante do “infelizes para sempre”. Hoje, fazem vinte anos da sua morte, em um acidente automobilístico, como James Dean, Grace Kelly e tantos habitantes reais do nosso imaginário. Eles foram mártires da velocidade e da nossa voracidade midiática.

Hoje as princesas são outras: anti-princesas, Valentes, Maravilhosas e guerreiras. Parece menos perigoso para as mulheres, pois lutam batalhas reais, arriscam suas vidas, mas, como se costuma nos contos de fadas, sempre vencem. AS herdeiras de Lady Di são soberanas feministas, adiam a escolha de um príncipe, privilegiam a sororidade. Elas protagonizam cenas perigosas, mas nenhuma delas vitimou tantas mulheres quanto a depressão, grande inimiga do passado, antes que pudessem combater no mundo real. Lady Di ficaria surpresa se pudesse ver quão longe as novas princesas puderam chegar, talvez o

13 razões para morrer em vez de crescer

Por que as fracas razões do suicídio de Hannah soariam convincentes para outros adolescentes?

E se a vida adulta fosse um lugar para onde ninguém quer migrar? E se nosso presente fosse um futuro que ninguém quer ter para si, nem nós? Há um rumor de que muitos dos que são hoje adolescentes correm o risco de desistir da vida antes de virar adultos. O medo de que esteja ocorrendo uma espécie de epidemia suicídio de jovens, similar ao mito do suicídio de lêmingues, diz muito dos adultos que os trouxeram ao mundo e dos que ocupam-se deles enquanto terminam de crescer. Talvez, para os mais velhos, seguir adiante, deixando a adolescência para trás, esteja equivalendo a morrer.

Essa preocupação diz respeito, evidentemente, aos bem nascidos, os que “têm tudo”. Os outros são dizimados na guerra do tráfico ou na carnificina da prostituição, assim como ocorre com os que vivem em nações em guerra. Para estes, o futuro não é uma opção, a realidade incumbe-se de tirar-lhes a vida na flor da idade. Onde foi que falhamos para temer a desistência de tantos entre os que poderiam dar-se ao luxo de realizar os melhores sonhos que idealizamos para eles? Por que eles se negariam a receber essas dádivas que nossa sociedade injusta oferece a tão poucos?  Precisamos vê-los aproveitar o maravilhoso pacote de diversões adolescentes que lhes vendemos para alicerçar a crença no ideal da eterna juventude. Pais e adultos em geral têm investido fortunas em produtos, elixires, comportamentos e promessas que lhes forneçam a ilusão de ter devolvida e preservada uma adolescência de plástico, de filme publicitário, provavelmente em nada parecida àquela que viveram.

Um encontro bem sucedido entre a indústria de entretenimento e seu público acendeu esse rastilho de pólvora: o pânico dos adultos de que seus adolescentes se suicidassem. 13 Reasons Why, o seriado, chegou às telas caseiras dez anos depois do livro que lhe deu origem, Os 13 porquês, de Jay Ascher, lançado em 2007. Trata-se da história do suicídio de Hannah Baker, uma garota norte-americana de classe média. Rapidamente os jovens jogaram-se em maratonas para assisti-lo, enquanto seus mais velhos passaram a alarmar-se com ele, temendo uma onda de suicídio coletivo. Um seriado não tem o poder de ser uma espécie de Flautista de Hamelin, cuja melodia levaria nossos jovens a jogar-se de um precipício como os ratos. Nossos temores dizem mais da relação que nós adultos temos com a juventude do que da vontade concreta dos adolescentes de tirar a própria vida.

Ao longo de 13 episódios, ou capítulos, somos convidados a escutar as gravações deixadas após a morte de  Hannah, nas quais ela vai arrolando os acontecimentos que a motivaram a cortar os pulsos. Em cada uma das fitas cassetes, que ela deixa para serem ouvidas por aqueles a quem culpa pela sua morte, ela vai tecendo seus sofrimentos e responsabilizando uns e outros por isso. Ha situações graves, como por exemplo ter sofrido um estupro, assim como ter sido obrigada a presenciar situação similar ocorrida com uma amiga. Porém, encontramos também motivos mais pueris, como o desentendimento com uma amiga e o fato de uma poesia da protagonista ter sido publicada, anonimamente, à sua revelia, por um colega que admirava seu trabalho, e ter chamado a atenção na comunidade escolar.

A série foi considerada um alerta sobre os efeitos letais do bullying na adolescência. Na tela, a comunidade escolar e as famílias entram em uma espécie de histeria coletiva, como se todos os alunos estivessem em risco de suicídio, vitimados pelos maus tratos sofridos por parte de seus contemporâneos. Fora da tela, passou a considerar-se a série como um potencial gatilho que levaria seu público a imitar o ato da protagonista.

Quem consegue lembrar-se, sabe que os anos adolescentes não são fáceis de transpor, porém, se tantos se sobrepujaram a essas dificuldades, por que os jovens atuais não o fariam? A forma explícita em que o ato suicida é apresentado na série parece ter o potencial de funcionar como uma espécie de tutorial para ensinar aos jovens a matar-se, assim como muitos supõe que a violência nas telas ou games os levaria a empunhar uma arma e sair dizimando seus colegas. Embora o entorno social exerça fortes influências, tanto mais potencialmente negativas quanto mais frágeis sejam os indivíduos, o suicídio não funciona por simples contágio, assim como tampouco ocorre com a violência. Descartado isso, faltaria indagar por que as treze razões de Hannah soariam convincentes para sua audiência.

O que teria algum potencial para despertar identificação é a certeza da protagonista de ser vítima de maus tratos ou de descaso por parte, principalmente, dos outros jovens. Ela é branca, de classe média, inteligente, bonita e nasceu em uma família amorosa, com pais que tentam comunicar-se com ela, respeitar seus desejos e propiciar-lhe todas as condições possíveis para realiza-los. Mas Hannah sofre constantemente.

Ela enfrenta a selvageria própria da cultura fútil de aparências em que vivemos, ambientada naquele habitat, tão popular nos seriados norte americanos, em que o Ensino Médio equivale a uma espécie de ilha onde são confinados exemplares dos piores tipos de espécime humano. Nenhum de nós, após ter passado os anos adolescentes, discordará de que é um trecho da vida que pode adquirir tintas bem dramáticas, no qual somos destinados a viver em um lugar bem pouco arejado. Para piorar, somos uma péssima companhia para nós mesmos: a autocrítica feroz, tanto mais quanto espera-se tanto dessa etapa da vida, é a musa que canta durante todo o percurso adolescente.

Os outros são considerados um inferno quando os imaginamos fazendo eco ao autodesprezo que sentimos. Nossos contemporâneos, cada um às voltas com os mesmos dramas, são incapazes de olhar para fora, também imersos em suas próprias ruminações narcisistas e autodepreciativas. Paradoxalmente, os adolescentes precisam de amigos e amores como de oxigênio, como contraponto ao vazio deixado pelo enfraquecimento dos laços familiares. A tendência natural é, então, que amores sejam trágicos ou arrebatadores, enquanto as amizades envolverão pactos se sangue ou traições imperdoáveis.  Se esse olhar amoroso dos pares não for capaz de curar as feridas do desamparo, os adolescentes sentem-se frágeis, inconsistentes, à morte, mas raramente morrem disso.

Na vida de Hannah, seus colegas, tão autocentrados como ela são acusados da mesma incapacidade de empatia que ela própria demonstra amplamente ter. Ela não liga para as dificuldades alheias: a timidez paralisante, o medo de assumir-se gay, as durezas de uma família devastada pelas drogas, a rigidez militar dos pais de seus amigos, a dor de ter presenciado o suicídio da própria mãe, a fragilidade dos que cercam lideranças perversas. Nenhuma das histórias dos outros parece ter a mínima relevância para a jovem suicida. No palco, os holofotes focam apenas seu único e precioso sofrimento.

Por que solidarizar-se com tanto egoísmo? Certamente isso é uma tentação para aqueles que ficaram presos a uma posição infantil ou são eternamente saudosos dela, pois acreditam ter nascido para ser cuidados e admirados incondicional e eternamente. Tal atitude majestosa só cabe às crianças bem pequenas, que iludem-se na condição de bibelô da casa. Os adolescentes e adultos que recusam-se a admitir qualquer protagonismo nos revezes sofridos querem ser como esses bebês, iludidos no amor supostamente onipresente dos seus pais. Ao longo da infância vamos percebendo que não é bem assim, que eles são mais fracos e desatentos do que gostaríamos. Graças a isso vamos desligando-nos deles, interessando-nos por outras pessoas, por assuntos fora do lar, por brincar e falar, por crescer. A adolescência é o trecho mais decisivo dessa separação, quando começamos a partir de vez. Por isso mesmo é uma fase tão difícil, na qual duvidamos fortemente ter forças, ou mesmo desejo, de fazê-lo. Nesse sentido, o que mais preocupa na popularidade desse seriado não é que ele pudesse desencadear uma epidemia de suicídios juvenis, é sim tanta empatia como uma personagem cheia de autocomiseração e tão pouco disposta a incumbir-se de suas amarguras e de sua própria vida.

Tal identificação de fato pode ocorrer, não no sentido do suicídio, mas dos sofrimentos daqueles que acreditam estar sempre no centro dos olhares, tal como Hannah. Trata-se de um expediente bastante simples para lidar com a perda do lugar central que as crianças supõe ocupar no amor dos pais: projetá-lo fora de casa, supondo-se igual importância, mesmo que às avessas.

A tarefa da sedução amorosa, a que se entregam os adolescentes apaixonados, é um antídoto contra esse narcisismo infantil. Tomar medidas para despertar o interesse daqueles a quem desejamos depende de uma sabedoria oriunda da experiência de desencontros com o afeto e interesse dos pais. O apaixonado supõe que é preciso fazer algo para chamar a atenção e fazer-se amar. Se a queda do trono de criança majestosa não tiver ocorrido, todo tipo de dificuldade será sentida como uma rejeição insuportável, uma estocada a mais na dor da separação com os pais. Se acrescentarmos a isso o ingrediente de famílias que colocam seus descendentes, até avançada idade, como príncipes e princesas cujos desejos são uma ordem, teremos muitos jovens como Hannah. Serão incapazes de enfrentar qualquer revés com outra reação diferente de uma chantagem: se não for como espero, não brinco mais, vou morrer e a culpa será sua. Para estes, se sua presença não puder ser majestosa, quem sabe sua ausência seria?

Mas estes são tipos raros, pois a maior parte dos adolescentes tende a não cair no canto de sereia dos mais velhos, que lhes oferece a comodidade hipnótica de ser mimado para sempre. Desse modo, seus pais nunca envelheceriam, jamais se tornariam superados e obsoletos e nunca criticariam os pais. Até os mais “malcriados” dos filhos acabam por revelar insatisfações com o ninho e apontam para fora dos limites do lar. Fora de casa, quer para os melhor preparados, quer para os mais imaturos, os desafios são assustadores e o convívio com os outros de sua geração a prioridade. Se pudéssemos dizer a um verdadeiro adolescente uma única frase, na tentativa de dar-lhe força para transpor os revezes dessa época seria: “acredita, isso acaba!”.

A ideia de passar vários anos em um convívio cotidiano com outros jovens igualmente destemperados, por horas imóveis em um único recinto, parece ter se tornado um pesadelo para boa parte das pessoas. Esse lugar é a escola. Se pelo menos tivéssemos clareza de que isso é temporário, ajudaria. Mas quando estamos lá parece que não haverá amanhã. O presente é opressivo, tem-se a sensação de estar preso em um filme infinito, sem cortes nem edição, em um único plano sequência. Do futuro, nada se espera, pelo simples fato de que um jovem custa a acreditar em sua capacidade de fazer algo com sua vida.

O futuro é tanto mais incerto quanto tem sido vendido como indesejável. Para muitos, ser adulto passou a equivaler a uma gincana de tarefas sem sentido, desprovidas de glamour. Pelo menos é assim que os desmemoriados dos pesadelos da juventude vendem o sonho de ser bonito, forte e sensual, como um estado que deveria ser ininterrupto. Mas são raros os adolescentes que realmente enxergam-se assim, mesmo os poucos que o olhar alheio coloca no pódio da existência. Isso sem contar o fato de que a maior parte considera-se carta fora do baralho das perfeições estéticas.

Hannah é linda, desejada por muitos e admirada por alguns, que lhe dedicam a amizade e lhe propõe alianças naquele ambiente hostil. O outro protagonista da série, uma espécie de narrador do seriado, é tão tímido quanto apaixonado por ela. O garoto custa a declarar-se devido à sua insegurança, essa teria sido sua falha, a razão que lhe coube. Portanto, o ambiente para nossa heroína não é mais hostil do que para seus contemporâneos, mas ela queixa-se, acusa, arma verdadeiras ciladas para os que convivem com ela de modo a provar a si mesma e à posteridade que não foi escutada, amada e respeitada o suficiente. Suas reclamações fazem eco em jovens e adultos porque gostamos de crer que alguém é mais responsável do que nós mesmos pelo destino que escolhemos.

Por outro lado, entre as motivações para seu ato, encontram-se, principalmente, as várias formas de opressão às mulheres, muito mais ameaçadoras quando elas encontram-se no auge de seus atrativos físicos. Constrangimentos verbais, postagem de fotos comprometedoras na rede, maledicência e, por fim, o abuso sexual propriamente dito, são práticas, infelizmente, correntes e tradicionais.

As adolescentes sempre lidaram com isso como se fosse inevitável, até que o movimento feminista começou a viabilizar-lhes a coragem para reagir e organizou uma pressão social para que suas denúncias fossem recebidas de forma respeitosa. Nossa personagem e suas amigas não partilham desses avanços, inclusive têm parca solidariedade entre si, mas a série revela sofrimentos que garotas e mulheres contemporâneas não têm deixado serem varridas para baixo do tapete. Portanto, poderíamos dizer que estamos frente a um seriado interessante, no sentido da denúncia feminista dos perigos do bullying contra as adolescentes. Curiosamente, não tem sido essa a razão de sua popularidade.

“Suicídio é para fracos”, diz uma personagem secundária, uma garota estranha, sofrida e forte que vai ganhando visibilidade ao longo dos capítulos. Ela é a única que realmente ousa criticar a protagonista principal, cujas reivindicações tantos, dentro e fora do seriado, parecem validar. Para a maior parte do público, estamos em permanente dívida com os adolescentes. É imprescindível provê-los de mais, sempre mais recursos e cuidados, ignorando que é justamente assim que se constrói uma gaiola dourada onde eles ficam presos em nossos sonhos e fadados a uma fragilidade poli-queixosa.

Se nossos verdadeiros sonhos forem os da juventude eterna, que gostaríamos de ter tido, crescer lhes seria proibido e tornar-se adultos uma derrota. “Viva rápido, morra jovem, seja um cadáver bonito”, é uma frase popularizada por James Dean, um dos primeiros ícones da adolescência tornada um ideal estético. A juventude tem deixado de ser um lugar de passagem para tornar-se uma espécie de Terra do Nunca, onde todos gostariam de ser congelados. Mas, assim como a ilha de Peter Pan, a tal adolescência eterna, associada a alguma forma de plenitude de prazeres e potencialidades, só existe no mundo da fantasia.

A volta dos rebeldes sem causa

As liberdades conquistadas na Revolução de Costumes do século passado deixaram uma bela herança. Espero que igrejas e governos não se unam, para fabricar alunos robóticos e desperdiçar esse legado de criatividade e capacidade crítica.

Não sei você, mas eu sou grata aos cabeludos da década de sessenta. Eles podem parecer meio desalinhados e confusos, com demasiada simpatia por substâncias ilícitas, mas para mim foram como irmãos mais velhos que deixaram como legado a revolução dos costumes. Essa herança, que facilitou a vida de muita gente nascida depois deles, está, infelizmente, ameaçada de extinção.

Os hippies marcaram posição, enquanto filhos, ao exercer a liberdade de escolher no que acreditar, de que modo viver, mesmo que isso desagradasse seus familiares. Depois desse confronto, as famílias tornaram-se mais democráticas e o abismo entre gerações suavizou-se. Não há mais tantos rompimentos, expurgos e diminuiu o esfacelamento de famílias devido às intolerâncias mútuas. Ainda há choros, críticas, inconformidades com os rumos tomados pelos filhos, isso é inevitável, só não é mais concebível ser ditatorial com eles. Pode ser que, como pais, ainda estejamos buscando o tom, a dosagem da autoridade necessária, lidando com a eterna indecisão a respeito do que permitir e proibir, mas com certeza as famílias tornaram-se menos dramáticas do que eram.

Depois deles, tudo se reacomodou: ninguém mais precisa casar virgem, porém a monogamia e o casamento seguem sendo um valor. Enfim, você conquistou a liberdade até de ser mais conservador do que seus pais se assim quiser. Independente dessa ou daquela conduta, o aspecto mais importante da herança da revolução de costumes dos anos sessenta é certeza de que cada nova geração pensa a vida de modo peculiar, provavelmente diferente dos mais velhos.

Continuam havendo discordâncias entre as gerações, por isso debatemos, discutimos, mas certamente não rumamos para uma dissolução de valores, como querem supor alguns moralistas. Pelo contrário, considero os jovens contemporâneos admiráveis. Muitos deles combatem cotidianamente os fantasmas da intolerância, do machismo e da falta de cidadania. Há entre as novas gerações uma atitude de preocupação ecológica, de responsabilidade relativa ao futuro do planeta antes impensáveis.

Vejo o pensamento por trás do “Escola sem partido” como uma tentativa de neutralizar essas conquistas familiares. São pais que policiam os enunciados dos professores, punindo os que colocarem posições discordantes das deles Ora, a tarefa adolescente é justamente o exercício de pensar diferente dos pais, ver-se diferenciado deles, até para depois resgatar o que nossa herança tem de bom. Se cortarmos as arestas de tudo que é diferente teremos filhos que nunca crescem.

Cada filho escolhe, a partir do que os pais lhe oferecem, no que vai acreditar. Queiram ou não esses defensores do pensamento único, o mundo externo existe e expõe os mais jovens a uma gama de ideias que nenhuma censura consegue suprimir. Se quiserem perpetuar na família suas convicções religiosas, sua própria versão da história ou da ciência, sejam convincentes esmerem-se nos argumentos, discutam com os mais jovens!

Suprimir diferenças de pensamento é desejável somente para quem sente-se inseguro ao ser questionado. Porém, não se espere de um filho que seja mero repetidor dos pais nada além do eco. Sem liberdade de pensamento não acontecem invenções, quer sejam científicas, artísticas ou de comportamento.

Ao repetir velhos clichês sentimo-nos alinhados com a tradição, com nossos antepassados. É uma pena que isso seja falso: se você olhar a vida de seus pais e avós, principalmente daqueles de quem sente orgulho, verá que eles ousaram, romperam, batalharam e defenderam suas convicções.

Quanto aos descendentes, mesmo que seja sem causa, por falta de formação para construir argumentos, muitos alunos da “Escola sem partido” ainda serão rebeldes. Os aguçados conflitos de geração da década de cinquenta estão prestes a ressurgir e com eles as rupturas. O espaço democrático das famílias tem seus problemas, mas certamente acabou com a guerra entre pais e filhos. Agora, se você só souber gritar, impor e cercear, pode esperar pela jaqueta vermelha de James Dean em sua cozinha. Ela vai ressuscitar.

Pensando no chuveiro

Fala-se muito em foco, em concentração, dando a ideia de que na busca de uma solução para um problema deveríamos centrar nele o pensamento. Sim e não, às vezes é justamente quando nos distraímos que a questão pode usar todos os recursos de nosso cérebro e achar a saída do labirinto.

Fala-se muito em foco, em concentração, dando a ideia de que na busca de uma solução para um problema deveríamos centrar nele o pensamento. Sim e não, às vezes é justamente quando nos distraímos que a questão pode usar todos os recursos de nosso cérebro e achar a saída do labirinto. Como sou muito avoada, passei a vida lutando para prestar atenção no que devia. Por isso mesmo, custei a entender que era preciso relaxar para criar.

Costuma acontecer que na distração aconteçam as melhores ideias. Quando travo no momento de escrever é hora de ir para baixo da água!Lá, invariavelmente, vem uma solução, calmamente, sem precisar persegui-la. Uma frase redonda, aquela abordagem para um tema árduo que já tinha desistido de procurar. Por alguns anos achava que a mágica morava na minha banheira, até que fiquei sem ela e descobri que a pausa é a dona do segredo.

Já recorri a soluções piores, fui tabagista, uma forma péssima de fazer pausas. Mas o que têm em comum tomar um banho e fumar? No banho, cantamos sem preocupação com quem ouve, para tristeza dos que escutam, diga-se. Há quem ria sozinho das piadas que faz para si mesmo. As crianças cantarolam, fazem vozes, brincam por horas. Tomar banho é sempre uma forma de cair dentro de si; fumar também. Significava sair de cena, mesmo quando se fica no mesmo ambiente.

Como psicanalista, se ficar prestando atenção no que dizem meus pacientes focada em um esforço racional de coerência e de teorização, provavelmente farei apenas interpretações banais e inúteis. A novidade, necessária para desvendar seus impasses, surpreende tanto a mim quanto a eles: é uma palavra que soa diferente, um ponto de vista inusitado. Freud chamava isso de “atenção flutuante”, um tipo de escuta distraída e empática para o qual nos preparamos.

Para a grande maioria dos distraídos, há um elemento essencial, que faz diferença para que nos tornemos capazes de pensar algo que preste: é preciso importar-se com o problema, a questão, a tarefa. Não se trata de qualquer devaneio, ir janela afora atrás da borboleta azul, mas, sim, de fazê-lo possuído, envolvido com alguma tarefa. É fato que por trás da capacidade de concentrar-se está, sim, a possibilidade de relaxar, de fazer pausas, seja um banho ou fazer como uma amiga, que lava louça nessas ocasiões. Porém, a premissa é de que haja uma entrega. Portanto, o segredo encontra-se na motivação, a qual só surge quando algo nos diz respeito, nos agrada, envolve. Não é uma questão hedonista, de só fazer o que se gosta, mas, sim, de fazer as coisas da forma menos alienada e burocrática possível. Depois que nos enamoramos de um desafio, ele vai possuir nossa mente, como qualquer paixão.

11/06/16 |
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Turistas domésticos

As primeiras experiências antropológicas são a circulação das crianças nas casas dos amigos e parentes. Essa continuará sendo uma experiência sempre interessante.

Você não precisa pegar um avião, nem mesmo fazer uma mala para conhecer culturas diferentes. Basta deslocar-se para outra casa, de amigos, colegas de escola ou trabalho, de parentes da família estendida ou vizinhos. Na minha infância, fui visitante contumaz de casas alheias, ficava impressionada pelas diferenças culinárias, olfativas, arquitetônicas, pela linguagem e hábitos próprios daquela gente que não era a minha. Aprendi que entra-se numa casa alheia com o mesmo espírito curioso das viagens. É preciso tentar entender os hábitos dos nativos, estar atento a seus protocolos para não cometer nenhuma gafe e pronto para deixar-se questionar pela diferença. Nessas primeiras experiências, as mais emocionantes porque podia fazê-las sozinha mesmo sendo criança, aprendi alguns macetes, que aqui compartilho com o leitor.

Cada casa tem um cheiro próprio, aliás, antes mesmo das casas, os corredores de cada prédio o tem. É uma síntese, um ranço particular que mistura produtos de limpeza, comida, perfumes dos moradores, bodum dos bichos da casa, dos estofados e cortinas. Nunca deixe de respirar fundo ao ingressar pela porta, o nariz será seu passaporte carimbado.

Cada família têm uma linguagem peculiar. Você pode nem sempre estar entendendo do que falam, pois aludem a piadas internas, usam palavras de outras línguas misturadas, além de que você não dominará os vocábulos e apelidos oriundos da linguagem infantil. Deixe-se levar pelo ritmo, pela música da conversa, sem precisar entender tudo.

Capítulo à parte, quando trata-se de famílias clássicas, para a distribuição dos olhares da mãe. À mesa, ela costuma orquestrar rotinas, conversas e silêncios sem sequer movimentar as sobrancelhas. Convém sentar-se num lugar onde você possa lhe ver o rosto e sempre aceitar suas oferendas de alimentos.

A diferença de estilos é facilmente observável nos prédios em que os apartamentos têm a mesma arquitetura. É instigante ver como os moradores os ocupam de modo tão diverso. Preste atenção, embora você seja visita, nem sempre usará a sala, muitas vezes um espaço reservado para “ocasiões especiais”, o que não é o caso de sua presença. O mesmo recinto no apartamento ao lado estará cheio de roupas, brinquedos e você não encontrará onde sentar, mesmo que tenham sugerido que o faça. Algumas casas têm ambientes que congregam o lazer e as refeições dos seus moradores, enquanto em outras os espaços comuns são utilizados como um corredor onde as pessoas encontram-se nas andanças entre a cozinha e o quarto. Nesse caso, procure ficar nos aposentos da pessoa que lhe for mais próxima.

A posição da televisão é decisiva, ela pode reinar absoluta ou estar ali onipresente e ignorada como músico de churrascaria. Os sofás podem ser dispostos como auditório, plateia permanente da pantalha que decidirá as conversas. Nesse caso, os moradores da casa não conversam entre si, apenas apartam a fala da tevê. Há casas onde ela não conta, mas são tão raras como aquelas que não passam de uma grande biblioteca onde até se dorme e come.

Os retratos são um ponto alto. Antigamente só as casas de famílias e, principalmente de vovós os tinham em excesso. Hoje não, qualquer um fará com eles seus arranjos. Os mais tradicionais recorrerão às imagens fabricadas em estúdios, adolescentes fazendo poses, casais de gala, gestações com pérolas e plumas, formaturas. Mas também há os que ousam fotos mais artísticas, em geral tiradas em viagens. Os antepassados são lindos de se ver, matronas carrancudas, patriarcas com bigode de limpa trilho, crianças constrangidas. Os moradores terão prazer em percorrer a galeria com o visitante detalhando cada imagem, não se constranja em perguntar, é um belo modo de conhecer-lhes a história e gostos.

Estas são algumas dicas, entre tantas outras, que poderiam ser ensinadas por qualquer pequeno turista doméstico acostumado a visitar outras casas e lhes decifrar a cultura. Tem muito adulto, habituado aos aviões, que poderia aprender com eles a respeitar as diferenças culturais das suas redondezas.

17/04/16 |
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Creme numa hora dessas?

Não temos como julgar o tempo, nem os métodos necessários para atravessar um luto.

Minhas duas avós eram húngaras, ambas chamavam-se Irene e tinham uma bela parceria. Essa amizade ficou um pouco estremecida em uma única ocasião: quando meu pai morreu de forma súbita e precoce e uma Irene precisou consolar a outra. Minha avó paterna perdera seu primogênito ainda jovem, enquanto a avó materna via-se às voltas com uma filha viúva de vinte e poucos anos eu, órfã ainda bebê.

Naquela ocasião uma silenciosa discórdia instalou-se ente elas por um motivo aparentemente pífio: a mãe de meu pai chorava copiosamente a perda do filho, mas isso não a impedia de passar creme no rosto várias vezes por dia, como era seu hábito. Uma Irene achou que o sofrimento da outra, a mãe enlutada, não era compatível com cuidar da pele. Disfarçou isso até para si mesma, mas acho que no fundo de seu coração, não aceitou. Para a avó materna, o ato de embelezar-se da vó paterna tornava questionável a veracidade de sua dor; como assim passar creme numa hora dessas? Escutei essa crítica quando ela me contou essa história, mas não consegui concordar.

Como minha avó paterna, e por causa dela, tornei-me adicta a hidratantes, tenho a pele muito seca e os passo várias vezes por dia, incomodada pelo ar condicionado, pelo frio, com as mais diversas razões e desculpas. Só não vou mentir-me que esse hábito tenha muito a ver com hidratação propriamente dita. Acho que essa carícia de creme era para ela uma forma de autoconsolo da qual me tornei adepta. Em vez de esperar pela ajuda alheia, ela se recobria suavemente, dava-se um abraço cremoso. Como a perda de um filho é a maior dor que pode existir, algo capaz de sequestrar a vontade de viver de seus pais, não soa bem  uma atitude que remeta à continuidade da vida. Somos contraditórios com aqueles que sofrem semelhante mutilação de seu futuro: queremos que quase sucumbam a uma dor insuportável, queremos que sejam fortes e sobrevivam.

Muitas pessoas costumam negar os momentos difíceis, saem imediatamente em viagem, afastando-se de tudo que os lembrava aquele que nunca mais voltará, entregam-se a duras jornadas de trabalho ou não tocam no assunto. Ignoram seus sentimentos e exilam os pensamentos que ajudariam a destilar a saudade. Há outras que afundam-se para sempre, não perdem a oportunidade de um apocalipse pessoal e deixam-se abduzir pela dor. Estes últimos, alheios à necessidade de sua presença e afeto por parte dos que ainda estão vivos, parecem indicar que a única pessoa que amavam é a que morreu. Pais que têm a vida de um filho ceifada, se tiverem outros, precisam superar-se para que estes não pensem ser insignificantes frente ao irmão morto.

O raciocínio a respeito do luto pode ser aplicado a outras situações difíceis, onde a vida é ameaçada ou perde o sentido que tinha. Por exemplo, quando se recebe um diagnóstico ruim da própria saúde ou de alguém muito amado, uma inesperada demissão, uma aposentadoria para a qual não se está preparado, uma bancarrota, uma desilusão amorosa. Condenamos tanto os que negam uma perda, quanto os que revelam-se incapazes de superação.

No raciocínio daquela Irene, que era sogra do falecido, encontramos essa tendência a avaliar com pouca tolerância os recursos utilizados por aqueles que sofrem. Queremos que sejam autênticos, que mostrem verdadeira entrega à sua dor, mas também que sejam breves e resolutivos, nada de depressões ou lutos arrastados.

Se uma Irene tivesse lembrado que, como a outra, era uma emigrante desgarrada de todo um passado e referencias, talvez tivesse entendido esse gesto solitário de sobrevivência psíquica. Cuidar da pele era tão válido como tantas atitudes pouco convencionais a que as pessoas recorrem quando a vida pede que se tenha uma envergadura quase sobre-humana.

Cresci passando cremes e acostumei-me a dizer que as pessoas que tiveram vida difícil têm a “pele dura”, sem dar-me conta que remetia ao episódio daquela Irene passando creme para sobreviver à perda. Minha avó materna estava errada daquela vez: há diferentes recursos e são uma sorte para quem os tem. A dor também se enfrenta com hidratante.