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Cadê meu trono?

o que temos por dentro que nos torna tão suscetíveis à cobiça por privilégios?

Yanis Varoufakis, Ministro das Finanças da Grécia, é um cara charmoso e irreverente, usa jaquetas e camisas esportivas – sempre sem gravata – em todo tipo de evento oficial e se desloca em sua moto. Ele contou um episódio embaraçoso (mencionado na revista Piauí 102) que ilustra a tentação dos privilégios.

Anos atrás, ao viajar para dar uma palestra, usava a passagem de primeira classe fornecida pelos organizadores do evento e percebeu-se olhando para a turma da classe econômica com um sentimento de superioridade. A revista menciona que ele teria se horrorizado ao viver na própria carne o quanto era fácil ser cooptado pelo prazer de estar acima da plebe.

O que temos por dentro que é tão facilmente despertado assim que nos oferecem um assento bacana, como notou Varoufakis? Rapidamente, a poltrona de primeira classe se transforma em trono, como se finalmente tivessem reconhecido nosso direito de nascença a ocupá-lo. Se examinarmos o conteúdo das fantasias mais banais, essas que nos pegam quando estamos distraídos ou adormecendo, veremos que nelas somos sempre reconhecidos por merecida grandeza, a qual nunca julgamos nunca ter sido suficientemente celebrada. Detalhe: a comparação é fundamental, pois é preciso que haja aqueles que consideramos pobres, medíocres ou feios, para que o brilho da conquista seja ressaltado.

Não há quem seja imune a algum tipo de ressentimento, o reconhecimento recebido é sempre menor do que a expectativa. O tráfico de privilégios tem vilipendiado todo tipo de boas intenções políticas, parecemos marcados por essa sede de modo incurável. Talvez seja uma memória infantil do lugar especial que só usufruímos quando muito pequenos, no papel de coisa fofinha da casa. Logo criamos chulé e ninguém mais quer beijar nosso pé gordinho. Pelo jeito, a experiência deixa alguma nostalgia, omitindo o fato de que o preço pago pelo lugar especial costuma ser o papel de objeto, no qual tornamo-nos espelho do desejo dos outros. Muitas celebridades morrem tentando anestesiar-se dessa cilada que é a captura no imaginário alheio. Nosso sentimento de ter vida própria, portanto, se beneficia de uma certa frustração. Apesar disso, nos queixamos de falta de atenção, pois consideramos sempre injusta a distribuição do prestígio.

Vimos o presidente uruguaio Mujica sair do seu mandato no mesmo fusca velho em que entrou, assim como o então governador Olívio Dutra nunca deixou de ir de ônibus ao trabalho. Golpe publicitário desses senhores? Creio que não. Eles se mantiveram a salvo do delírio de grandeza que nos acomete assim que ganhamos um assento de primeira. Talvez soubessem que ficamos reféns daqueles que nos oferecem um lugar de exceção. Uma lição a seguir nestes tempos de debates éticos.

Mães também se aposentam

A maternidade não era mesmo um cargo vitalício?

Ela foi mãe dedicada, para cuja casa os filhos adultos e netos acorriam em procissão. A presença deles era motivo de júbilo, suas notícias recebidas como cartas de amor. As reuniões de família eram preparadas com zelo de jantar romântico, o prato preferido de cada um sempre lembrado e as restrições alimentares respeitadas. As conversas à mesa, como no tempo do finado marido, requeriam delicadeza diplomática.

Filhos se melindram fácil, toda palavra corre o risco de esbarrar em inevitáveis ressentimentos e pendências. Cada um deles tem certeza de que a mãe simpatiza mais com o marido, esposa ou filhos do irmão ou da irmã supostamente preferido, que sempre julgam ser outro. Nas separações e nos momentos de falência acolhia-os de volta ao ninho, comiam e dormiam com ela, assistiam filmes em sua tevê sábado à noite. Depois sumiam, embarcados em nova paixão, projeto ou em um grupo de amigos inseparáveis.

Até que um dia teve que submeter-se a uma perigosa cirurgia cardíaca, estava avisada de que seu caso era grave. Antes de internar-se, revisou seus guardados, deitou ao lixo muitas “bobagens” que atesourava, editou as lembranças, organizou os documentos. Foi um mau bocado, mas sobreviveu e algo pareceu ter se quebrado.        Na saída do hospital, tomou uma decisão atípica: esta segunda vida, mesmo que curtíssima, seria para uso pessoal. Fechou o apartamento, voltou para o interior, para a cidade natal. Foi viver junto com uma irmã mais moça, também viúva, partilhavam os cuidados de uma boa funcionária. Era uma aposta, uma aventura, mas nunca é tarde para isso. O genro médico ficou furioso, como afastar-se dos melhores hospitais a esta altura?

No cidade enturmou-se novamente, conhecia as histórias de que falavam, tudo lhe voltava aos borbotões. Ao invés de ficar desmemoriada, lembrava-se do passado mais remoto em detalhes. Agora, em suas visitas, os filhos tinham que disputar a atenção na sala da mãe e da tia com a animada roda de chimarrão dos vizinhos. Eles eram bem vindos, mas ela impacientava-se caso a distraíssem da sua nova rotina. Não levou consigo muitas lembranças, uns poucos porta-retratos lhe bastavam.

Ela não era gato, mas ganhara mais uma vida. Restava-lhe coisa pouca, mesmo restrita e cheia de dores chatas estava disposta a viver sua aposentadoria. Aposentara-se do casamento, da família, dos vínculos, encontrara uma forma tardia de liberdade. Os filhos incrédulos não entendiam o abandono. Gostamos de acreditar que ter filhos é um sacerdócio vitalício, tanto que quando isso não se confirma custamos a engolir a mágoa. Porém, mães e pais idosos por vezes se aposentam, respeitar-lhes essa opção envolve a dura verdade de que os filhos podem não ser a cereja do bolo.

A vida em cinza

Uma Cinderela com boas pitadas de erótica feminina, as prateleiras exibem o produto perfeito. O encontro de 50 tons de cinza com as consumidoras da paixão sem ambiguidades.

Imagine que você fabrique um produto qualquer: uma esponja de aço, por exemplo. Seu sonho de empresário seria tornar-se Bombril, que em nossa língua é sinônimo desse objeto. Agora imagine que os amantes almejassem o mesmo: ser tão perfeitos um para o outro que suprimissem a concorrência. Esse é o segredo de Christian Grey e Anastasia Steele, protagonistas de um amor absoluto em “50 tons de cinza”, escrito pela norte-americana Erika Leonard James.

Respeitosos às leis do mercado, os amantes da história reúnem-se em torno de uma mesa de negociações para acertar detalhes de seu contrato. Não se trata de um casamento, mas sim de um código de comportamento sexual, submissão e domínio. O acordo não é pacífico, há escaramuças e desentendimentos, como em qualquer novela romântica, mas é para apimentar o final feliz, que se dá ao cabo de três volumes e filmes.

Numa cartada só, a Sra. James conseguiu suprimir a maior parte das interrogações e tormentos  que nos preenchem e ocupam. Gastamos a existência a indagar qual nosso valor e o que gostaríamos de conquistar, o que é ser um homem e o que é ser uma mulher. Além disso, atrapalham-nos para amar as lembranças infantis do prazer e do terror de ser subjugados e protegidos. Para Christian e Anastasia está quase tudo resolvido.

Eles são virgens, ela de corpo e ele de coração. Ele é riquíssimo, jovem e  belo. Sim, os príncipes ainda existem. E como as Cinderelas também, esse cobiçado solteiro fica mesmerizado quando pousa os olhos na desmilinguida universitária que aparece para entrevistá-lo para um jornalzinho de faculdade. O que ocorre entre os dois é um desejo incontrolável à primeira vista, que logo se transforma em juras de amor.

Rapidamente a relação torna-se o negócio mais importante para ele e o projeto de vida prioritário para ela. Ele quer subjugar-lhe o corpo, mas acaba entregando-lhe a alma. Ela cobiça possuir a alma dele, mas entrega seu corpo com um prazer minuciosamente descrito. Apesar dos chicotes, cintos e palmatórias próprios da cena sadomasoquista, o livro difere das clássicas publicações do gênero ao dedicar grande espaço à exploração do corpo e dos prazeres femininos, dos quais Anastasia goza amarrada e amordaçada.

Pense bem nas suas dúvidas: você nunca sabe direito o que quer nem o que precisa para ser desejável. Além disso, sente-se ambivalente quanto aos prazeres da carne, nos quais sempre fantasia um tanto a mais do que realiza. Como as mulheres nunca tiveram um destino em aberto, o recato era imprescindível e as escolhas restritas, o leque dessas vacilações era para elas menos explícito. Com a liberdade, ganharam o benefício e o inferno das dúvidas. E. L. James tem a resposta para todos esses males: não enxergue cores, atenha-se ao cinza e viva uma vida Bombril.

Os homens que amam seus cachorros

Pequenos amores em grandes momentos não são irrelevantes…

Na época do impeachment do presidente Collor, os jornais estavam tomados pela indignação e pelo entusiasmo frente à movimentação popular. Também estava empolgada com o assunto quando fui, como de hábito, ler a coluna do Carlos Heitor Cony na Folha. Bem no meio da erupção social, no final daquela página, ele escrevia sobre suas cadelas setters que, se recordo bem, eram duas e dizia algo relativo à sua pelagem avermelhada. O que nunca esqueci foi da sensação boa que deu o encontro com aquelas divagações tão fora de propósito.

Podem chamar, a mim e ao Cony, de alienados, pelo menos estou neste caso em ótima companhia. Aquilo parecia ser uma nota de rodapé lembrando o que parecia não caber no contexto daquele momento. Longe dos cenários e comoções sociais, reduzimo-nos aos amores, aos afetos mais prosaicos, cuja simplicidade a relação com os animais domésticos simboliza muito bem.

Voltei a evocar essa história ao ler o cativante O homem que amava os cachorros, do cubano Leonardo Padura (Boitempo). É uma narrativa tripla que tem seu ponto de confluência no assassinato do líder soviético Leon Trotsky, cujos anos de desterro acompanhamos no livro. Como pano de fundo, temos a instalação do terror, que levou o sonho socialista à categoria de pesadelo, conforme Trotsky insistentemente denunciava. Ao ser expulso com sua família, o antigo chefe do Exército Vermelho conseguiu levar consigo sua cadela Maya. Aí temos o primeiro cão.

Num segundo eixo narrativo conhecemos o comunista espanhol Ramón Mercader, conhecido como aquele que matou Trotsky com uma picareta. Por último, temos o terceiro personagem central, que é Iván, um escritor desiludido que sobrevivia como veterinário prático, a quem o carrasco espanhol encontrou numa praia cubana. A empatia entre esses dois instala-se partir do interesse de Iván pelos cachorros de Mercader, um casal de borzóis, impetuosos animais russos da mesma raça de Maya. Aliás, teria sido o interesse pelos cachorros uma das formas do assassino aproximar-se do arredio Trotsky. Novamente os cachorros.

Para surpresa de Iván, aquele homem de aspecto doentio, que como ele amava os cachorros, tinha uma história inacreditável de crime, intrigas e clandestinidade para contar. O cubano, por sua vez, vive o ostracismo insular em companhia de sua mulher doente e do fiel cão Truco.

São histórias de sacrifício, idealismo, fanatismo, lucidez e desencanto nas quais os cachorros eram as derradeiras testemunhas silenciosas daqueles que pareciam ter esquecido de quem eram como indivíduos. As grandes paixões sociais movem moinhos, mas não suprem a relevância dos vínculos. Como naquela crônica do Cony, no pé da página da nossa vida resta-nos o que conseguimos amar, nem que sejam apenas os cachorros.

Socorro, barata!

Mulheres e baratas: inimizade letal, intimidade herdada.

Meu marido costuma perguntar-me: para onde estas olhando? Brinca que se uma manada de elefantes estiver marchando na calçada eu casualmente estarei reparando em alguma folhinha caída. Há uma exceção: tudo isso altera-se radicalmente quando o assunto é barata.

A simples presença desse inseto dito inofensivo torna-me uma observadora ninja. Não há ruído dele que escape aos meus ouvidos apurados e os olhos são capazes de visão noturna. Entre a percepção e o ataque de pânico costuma não haver lapso. Ondas de calafrios me percorrem e fico em pânico de que a barata me toque.

Graças essa fraqueza, sinto empatia com o drama dos pequenos, que gritam apavorados ao serem obrigados a aproximar-se do Papai Noel, de um cachorro ou do que for seu objeto fóbico. Isso acontece porque no começo da vida temos dificuldade de diferenciar onde termina o eu e começa o outro, assim como o que vem de dentro e de fora do corpo. Também nem sempre é fácil distinguir os adultos amorosos e confiáveis dos monstros. Já na escuridão, sentem-se diluídos, sem contornos, o que é fonte dos terrores noturnos.

Para todos esses males, temer uma figura facilmente encontrável organiza a geografia do perigo, tornando-o mais passível de controle: se o medo se focar no cachorro da vizinha, que sempre late quando passamos, ou no Papai Noel de Shopping, basta evita-los e estaremos seguros. O pequeno apavorado não tira os olhos do monstro, mantendo-o na mira.

Meu problema com as baratas é comum entre as mulheres que, tradicionalmente confinadas, partilharam o destino das crianças. A privacidade da casa era um não lugar, sua voz não fazia diferença, seu pensamento não era chamado a participar. Nunca sabiam bem quem eram, pois a identidade não vinha dali. Reinavam, mas num território de exílio dos homens públicos, em contato com a roupa suja dos patriarcas, em sentido real e figurado. Longe dos ritos sociais, que protegem e organizam o corpo e as ideias, convivendo com as fraquezas, doenças e vilanias dos que se bancam fortes e idôneos lá fora, elas sentiam medo.

A barata, forma renitente da sujeira imune mesmo à limpeza mais abnegada, é o pesadelo da mulher. Representa seu trabalho repetido de Sísifo, o castigo da sujeita invencível. Como todo objeto fóbico, deve ser próximo e assíduo. Frágeis como crianças, em seu mundo isento dos direitos civis e cheio de deveres servis, as fêmeas elegeram na barata um perigo que pode ser mapeado e combatido. Hoje isso não faria mais sentido, pois também somos figuras públicas, mas continuamos em pânico. Talvez ainda estejamos marcadas pelo longo período de dependência. Para mim, pelo menos, nada no mundo parece tão reconfortante quanto a paz que se instala uma vez que o monstro, de borco, cessa de espernear para sempre.

Música de cortar cebola

Várias formas de chorar, inclusive a da “sofrência”…

Na Adega das cebolas, estabelecimento acessível a consumidores seletos, não havia nada para comer, nem tampouco, apesar do nome, beber. Serviam-se lágrimas. Médicos, políticos, intelectuais, funcionários públicos, estudantes, iam lá para chorar as mágoas, literalmente. Após as mesas terem sido solenemente ocupadas, convivas constrangidos recebiam tabuinhas, facas de cozinha e uma cebola, que cada um cortava a seu modo. Os esguichos do vegetal eram a deixa para começar a chorar, copiosa ou delicadamente, e cada um narrava aos companheiros de mesa seus motivos. Concluído o rito de choro e confissão, todos retiravam-se considerando que o alívio sentido justificava o alto investimento.

Ambientada no pós-guerras alemão, a cena é contada por Günter Grass em O tambor, publicado em 1959. Ela sempre me intrigou, pois por vezes o consultório de um psicanalista parece-se com uma Adega das cebolas. Pelo menos a princípio de conversa. Chorar é como pontuação de frase: produz o ritmo que altera o sentido, mas não lhe define o conteúdo.

Boa parte das lágrimas é de caráter evocativo. Elas vêm depois do impacto, quando estamos repassando fatos, revivendo mentalmente aquilo que machuca. É claro que também podem surgir no momento traumático do rompimento, da morte, do fracasso, do sentimento de desvalia ou abandono, mas a dor quando brota costuma encontrar-nos estarrecidos, sem expressão.

Chegada a hora do pranto, há choros que são uma convocação, do tipo “faça alguma coisa”. Há os olhos que se molham numa frase, disfarçados, por vezes envergonhados. Há o choro silencioso, prolongado e sofrido, que exige respeito e silêncio da testemunha. Há também o choro catártico, do tipo da Adega. “Algum dia se designará nosso século como o século sem lágrimas, apesar de todos os seus sofrimentos”, escreveu Grass. E falava da Alemanha derrotada e estarrecida do século passado. Esse tipo de pranto, digamos artificial, parecia necessário logo após uma época em que não houve espaço para chorar, sobreviver era prioritário.

Coube a um jovem cantor baiano chamado Pablo (nascido Agenor dos Santos), um ídolo de ocasião, instalar a coqueluche popular da “sofrência”. O neologismo define o pranto escancarado provocado pela sua música, quer seja em shows ou postado em vídeos. Suas letras de coração ferido não diferem em nada de outras baladas bregas, mas caiu das graças da audiência como uma licença para chorar em público, principalmente para os homens. A pequena epidemia de lágrimas causada por Pablo difere do rito contido da Adega de Grass. Aqui, o choro, como ocorre com o sexo, o corpo, o amor e nossos sentimentos em geral, torna-se espetacular, catártico e performático. Chorar faz bem, mas tenho uma triste saudade da privacidade dos afetos.

A cristaleira

Reformando tudo, iludido-nos que nada devemos ao passado…

No recinto vazio do apartamento recém comprado reinava ela. Reluzente, portentosa, revestida de espelhos por dentro e laca brilhosa por fora. Não contente com isso, a maldita cristaleira tinha um dispositivo de luz interna. Aquele palácio iluminado de breguice parecia dominar minha futura sala. Móvel imóvel, embutido, perfeitamente encaixada num vão que parecia ter nascido para recebe-la. Declarei-lhe guerra.

Sílvia, minha arquiteta, acostumada com meus orçamento e bom senso limitados, suspirou e ponderou que então teríamos que pensar algo para colocar naquele buraco, quem sabe se lhe déssemos uma nova maquiagem? Venceu a falta de dinheiro e o bom senso dela e hoje, em sua forma original, vivemos as duas em completa harmonia. Por vezes meus olhos a encontram e, já uma velha amiga, me pergunto como foi que lhe questionei a permanência.

A cristaleira deixada pelos antigos donos do apartamento que comprei era, na verdade, um patrimônio: bem feita, tinha a grande qualidade de estar já pronta, por que tirá-la? Fora o estilo bem diferente do meu, seu maior defeito era atestar a presença anterior daquelas pessoas. Imóvel usado sempre traz consigo marcas, escolhas e cicatrizes deixadas pelos antecessores. Ao chegar, a atitude mais comum dos novos proprietários é achar tudo horrível, derrubar paredes, colocar abaixo banheiros e cozinhas em perfeito estado, enquanto luminárias, pisos, trincos e torneiras são trocados por modelos na moda. Há algo mais do que gosto pessoal que se revela nessa renovação compulsiva à qual tendemos.

Ao nascer, costumamos herdar várias cristaleiras, metaforicamente falando, mas lutamos para ser originais. Pelo menos na própria existência queremos ser os primeiros a chegar. Isso se reproduz nos imóveis que ocupamos, como se houvesse uma contradição insolúvel entre a presença anterior e a nossa. Como na cristaleira, tentamos suprimir seus traços para garantir algum ineditismo no lugar que ocupamos no mundo. Na vida como no imóvel, grandes ou pequenos embutidos das gerações passadas vamos carregar. Ficar completamente contemporâneos na superfície não elimina a existência de raízes sob a terra. Colocar tudo abaixo não resolve isso.

Somos obrigados a caracterizar por escolhas pessoais, ou que se caracterizem pelo “novo”, cada milímetro do nosso corpo e dos lugares que ocupamos. O problema é que, além do desperdício de material, dinheiro e trabalho, lá onde julgamos colocar um traço próprio em geral estamos sendo escravos de modismos e propagandas. A quebradeira apaga um acervo que testemunha alguma história, do local, da família, de uma cultura, alem de não garantir nenhuma singularidade ao morador. Por que transformar o lindo parquê do nosso passado num frio porcelanato sem nenhuma história para contar?

Banheiro feminino

Banheiros públicos, onde elas se encontram, fazem fila e passam apertos…

Há um território em que fica muito evidente a diferença entre homens e mulheres: o banheiro. Num congresso recente ocorreu o de sempre: a longa fila de mulheres saía para fora do banheiro, de tal modo que o Cofee Break não passa de Pipi Break. Enquanto isso, o recinto equivalente masculino estava às moscas e os rapazes, livres das suas premências urinárias, puderam descansar e lanchar.

Há um tempo adoto uma prática “terrorista”, que conta  com a conivência de um homem solidário que age como batedor. Ele entra, verifica se há algum usuário em situação constrangedora e, quando o território fica liberado, dá a deixa para que possamos invadir o banheiro masculino. Na sequência é colocada uma sentinela na porta e as mulheres desafogam sua fila, numa espécie de alvoroço transgressivo. Já existem locais, evidentemente em ambientes mais civilizados, em que não há separação entre o Masculino e Feminino. Pelo jeito frequentar os mesmos banheiros não redunda necessariamente em assédios sexuais.

Mulheres vão ao banheiro com mais assiduidade. Isso se deve a razões fisiológicas, como os ciclos hormonais que nos transformam regularmente em esponjas que edemaciam e esvaziam. Também o fazemos em bando: quando precisamos confidenciar, a deixa é “vou ao banheiro”, ao que a(s) amiga(s) acrescenta(m), “vou contigo”.

A logística banheirística feminina é mais complexa. É necessário literalmente desmontar-se, removendo meias (que costumam romper-se), suspender saias e vestidos, tirar calças e roupa interior. Além disso, temos que sentar, ou, pior, não sentar. Desafiaria muitos homens a urinar semi-agachados, com as roupas arriadas, cuidando para que nem o corpo, nem as vestes que seguramos com as mãos, toquem na sujeira do chão ou da privada. Devia ser uma modalidade olímpica. Há o necessário papel higiênico, que eles raramente usam, o qual deve ser depositado num cesto nojento cujo conteúdo ameaça desabar sobre a equilibrista. Sem contar com os trâmites da menstruação, que tornam tudo isso muito mais demorado e complicado. Por último, resta nossa eterna insegurança que nos leva a consultar o espelho e retocar a maquiagem como se nosso rosto tivesse fugido enquanto não o estávamos vendo.

A pergunta é: por que os arquitetos e engenheiros, especialmente as profissionais mulheres, continuam planejando banheiros simétricos. Queremos igualdade sim, de salários e oportunidades, mas, relativo aos banheiros, a merecida consideração reside em levar em conta as diferenças, construindo banheiros maiores para as mulheres. Sinceramente, quando fico numa fila do banheiro feminino sinto como se, de alguma forma, fossemos punidas por querer ter uma vida pública. Pediram igualdade? Então tomem!

Até quando?

Até quando a morte terá que ser, além do fim, uma tortura?

A jovem Britanny Maynard, diagnosticada de câncer terminal aos 29 anos, fixou uma data para a própria morte e divulgou sua despedida antecipada. Sua partida ocorreu, como previsto, no dia primeiro deste mês em sua casa no Oregon, EUA, junto de sua família. Ela não estava ainda acamada ou decrépita. Como sua face ainda não tinha sido transformada pela doença, reagimos mal. Da morte queremos coerência, que só venha quando for a “hora final”, consola-nos que a partida seja o alívio de um grande sofrimento.

O início e fim da vida se parecem, e há uma piada que ilustra isso muito bem. Ela estabelece em sete os desafios da nossa jornada: o primeiro que enfrentamos seria controlar o xixi e o cocô, o segundo fazer amigos, o terceiro fazer sexo e o quarto fazer dinheiro; já nossa quinta meta seria continuar fazendo sexo, a sexta fazer amigos e a sétima e derradeira seria evitar as fraldas.

Por sorte, este ciclo hoje dura mais, portanto, podemos fazer sexo e amigos por mais tempo. Por azar, graças ao aumento da longevidade e dos recursos médicos, vamos apagando lenta e, não raro, sofridamente. Para aqueles em que a lucidez permanece intacta, as restrições da idade avançada são incômodas, mas eles tiram forças da persistente curiosidade pela vida dos seus e pelo mundo. Já outros, infelizes, abandonam a vida como bebês tardios: de fraldas, com escaras e uma percepção e capacidade de comunicação restrita ou nula.

Pouco podemos prever, resta deixar tomadas providências e prescrições junto a nossos familiares. Porém, tudo isso se complica quando o mesmo quadro de decrepitude ameaça aos que sofrem de doenças terminais agressivas e de mau prognóstico, muitos ainda jovens. Nesses casos, o contrassenso desse prolongamento inútil e doloroso da desesperança fica mais visível. Por que só lhes deixamos partir quando já parecem tão pouco vivos?

No processo de morte assistida, como foi o caso de Britanny, é o doente que escolhe o limite do que deseja suportar. Nossa legislação permite-nos decidir pouco sobre o fim: podemos, deixando um Testamento Vital, apenas recusar as piores torturas como a vida artificial e a reanimação. Ninguém espera partir em meio a dores, tampouco nos agrada ir aos poucos perdendo-nos de tudo o que somos. Por isso cabe debater e buscar alternativas para melhor seguir vivendo e também para deixar de fazê-lo.

Envelhecer quer dizer viver mais, não morrer aos poucos. Doenças terminais podem ser a dura realidade de saber antecipadamente de um prazo restrito de vida, que costumamos ignorar. Seja de um ou outro jeito, estamos falando de vida. Não é necessário partir cadavérico, fora de si, só para que os que ficam possam negar a existência do fim.

Eleições clubísticas

Quero-queros têm ninhos frágeis, no chão, por isso defendem o território aos esporões. Os debates políticos têm mostrado essa mistura de fragilidade dos argumentos com agressividade territorial.

Já vou assumindo, sou colorada. Nascida Peñarol, porque time em geral se herda, tornei-me colorada na adolescência por influência de um grupo de amigos queridos. Veio a calhar do meu marido pertencer ao mesmo time, senão é bem provável que tivesse virado a casaca, tal a consistência da minha opção. Time se escolhe por paixão, pelo prazer de pertencer a um grupo, de brincar de rivalidade. Não tem nada de racional, mente quem disser que pensou no caso.

Conto isso porque estou confusa nestas eleições, não sei se estamos num pleito político ou num campeonato nacional. Está me parecendo mais o segundo que o primeiro: os eleitores estão debatendo e, pior, votando, com paixão clubística. Vejo manifestações políticas com ânimo de hooligans, de gente que admite votar em um por ódio ao outro. Para melhor ilustrá-las recorrerei a uma comparação etológica. Nada como o comportamento animal para simplificar a visão das coisas.

Quem mora aqui no RS está habituado a encontrar-se com quero-queros. São aves conhecidas por esse nome similar ao som que produzem, bem comuns em nossos gramados, andam aos pares e têm um esporão nas asas. Ele serve para intimidar quem se aproxima de seu ninho, que é feito de forma rudimentar e no chão. A estratégia de defesa é necessária já que, ao contrário de outras aves que fazem elaborados ninhos no alto das árvores, os quero-queros precisam compensar a fragilidade de seu ninho no chão, construído com poucas palhas, à mercê de muitas ameaças. Por isso elas têm um território bem claro, basta colocar o dedinho dentro dele que o rito de constrangimento ao invasor se inicia.

Estamos discutindo política igualzinho a essas aves defendem seu território. Fazemos vistosos voos e procuramos intimidar mostrando as garras uns para os outros. Isso certamente ocorre porque, estendendo a metáfora etológica, nossos ninhos estão no chão, sentimo-nos indefesos frente à invasão dos argumentos alheios. Nossos argumentos são frágeis e pouco elaborados como um ninho de quero-quero. Quanto maior a agressividade dos argumentos, menor é a segurança que temos da integridade dos nosso território emocional. Preste atenção nos mais raivosos, certamente serão os partidários menos esclarecidos e convencidos, os que possuem argumentos tão frágeis e expostos como um ninho de quero-quero. Estes, que hoje são em um número assustador, escolhem candidatos como quem adere a um clube de futebol, amo este porque odeio o outro e vice-versa.

O resultado de um campeonato entristece a uns e deixa a outros eufóricos, mas é inócuo. No dia seguinte, fora os humores dos torcedores, nada mudou. Já na eleição é bem diferente: nosso futuro, pelo menos a médio prazo, depende da opção na urna. Péssima temporada para tantos quero-queros.