Comportamento
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A maconha e o demônio

confrontando teses paranóicas de que um jornal só se posicionaria pela descriminalização por interesses comerciais.

Se você não acredita em meu Deus deve acreditar em meu demônio. Em síntese, essa é a lógica  binária e pueril que infelizmente domina hoje muitas discussões, negando que o mundo tem muitos outros tons.

Fiquei contente com a posição da Zero Hora sobre a maconha porque rompe com esse simplismo. Ela coloca-se como muitos clínicos que também enfrentam esse problema: não endossando o consumo, mas sendo favorável a liberação. O que queremos é tirar o problemas da sombra do delito para melhor enfrentá-lo. Sabemos dos perigos da legalização mas conhecemos muito bem os graves tormentos da ilegalidade.

A repressão nunca conseguiu diminuir o consumo da maconha e as ações educativas, num ambientes de proibição, tendem apenas envolvê-la numa bruma que exagera seu perigo e a torna atraente por ser pretensamente transgressiva. Acreditamos que jogar às claras e desmistifica-la é o melhor caminho.

Essa posição, que aliás é uma tendência mundial, parte de um fato simples: existe um contingente enorme de consumidores que não estão dispostos a abrir mão de seu hábito e agem com desdém aos conselhos dos profissionais de saúde. Resta-nos muda nossa abordagem para estar perto deles. Se quisermos nos aproximar desse contingente, a primeira coisa é sair da posição de verdade, da postura arrogante de quem se julga com o monopólio do saber sobre o que é bom para os outros. Essa clínica que só consegue apontar a abstinência como estratégia não funciona mais. Não podemos seguir infantilizando e subestimamos o consumidor. E mais, qualquer droga, quando afunda alguém, nunca é só ela. Ela apenas é um atalho para o pior, mas é um sofrimento, uma desesperança, uma tristeza uma depressão que realmente levam a isso.

O campo da clínica é duro porque é sempre perpassado por dúvidas, raramente somos taxativos. Mas quando vejo nossos colegas, adversários dessa posição de maior tolerância, ao invés de argumentos, sacar teorias conspiratórias, reduzindo o complexo problema das drogas à futuros lucros publicitários, disso tiro uma certeza: o que está em questão é o esgotamento teórico do paradigma repressivo.

(publicado em Zero Hora em 12/03/2015)

Fabrício e a vaia

Um jogador destemperado e uma torcida mimada.

A vaia é o vestibular do mundo adulto. Se você já recebeu e matou no peito é porque deixou a infância onde tudo eram afagos e elogios. A vida adulta é trabalho e critica, e a forma mais dura da cobrança é a vaia. Pessoalmente não acredito na sua eficácia. Ela fala mais da impotência e da falta de educação de quem a produz do que da performance de quem a recebe. Ela por si mesma não tem uma força educadora, construtiva, mas ela está aí, cada dia mais.
Fabrício anteontem não matou a vaia no peito. Ele tem o preparo para ser jogador, mas não para ator, para encenar uma personagem que o ultrapassa. Não compreendeu que as vaias fazem parte do contrato que assinou e que o futebol é também um espetáculo catártico, um catalisador de emoções, um lugar onde buscamos um sentido épico que a vida nos nega. Temos gladiadores modernos que deixamos que saiam vivos da arena, mas nem por isso cobramos menos sangue. Fabricio escutou isso do modo errado e voluntariamente abriu suas veias para nós. Seu destempero o afundou e gozamos de sua falência moral. A torcida o derrotou.
Fabricio recebia vaias pelo conjunto da obra, deixou o time na mão várias vezes com expulsões desnecessárias, comprava brigas tolas, se excedia de todas as formas. Existem jogadores que derrotam as vaias. Valdomiro usou-as para se aperfeiçoar. Trabalhou mais e mais até ser o melhor cobrador que já pisou no Beira-Rio. Não acreditava na predestinação e no talento, mas sim no trabalho exaustivo que deve ser aliado ao dom natural. Fabrício queria uma admiração sem contrapartida, um incentivo mesmo no erro. Ele não lapidou seu talento, não domou sua fúria, permaneceu como uma criança mimada e birrenta. Não entendeu que existe um outro mais mimado em campo, a torcida.
O Internacional tem uma torcida maravilhosa. Quantas vezes juntou o time do chão e o empurrou para a vitória. Mas nessa quarta feira, sem querer, deu um tiro no pé. Posou de consumidor exigente e criou mais um problema para um time ainda em montagem. Creio que o momento é de guardar as vaias para desestabilizar os adversários.
Dizem que o treinador Rubens Minelli preparava o time para enfrentar 12 adversários. Os 11 da equipe adversária e o juiz. Insistia: o juiz não é nosso amigo, ele não vai nos compreender nem nos perdoar. Ele é mais um pedra na nossa chuteira. Espero que os treinadores do Internacional não precisem dizer que temos que enfrentar 13 adversários, como o juiz, a torcida também não é nossa amiga, não vai nos compreender nem nos perdoar.

Interceptei a mensagem de um E.T.

vistos de fora, somos no mínimo engraçados!

Primeiro informe ao planeta Zorg.

Estou muito animado no meu primeiro dia no planeta Terra. Orgulhoso de ter sido escolhido para a missão de reconhecimento dessa curiosa civilização semi-inteligente.

Já posso dizer, num primeiro relance, caso queiramos entrar em contato e trazer presentes: o que eles mais precisam é de gás carbônico. Cada grande cidade possui enormes usinas fixas de produção de CO2 com gigantescas chaminés. Como isso não é suficiente, uma manobra coletiva permite uma distribuição mais eficiente a partir de pequenas usinas móveis.

Existe um ritual de solidariedade que possibilita tornar a atmosfera mais compatível com a espécie que domina o planeta. Logo que sai o sol, cada família que tem posses, pega o seu produtor móvel de CO2 e sai distribuindo fumaça em rotas aparentemente aleatórias. A solidariedade se repete perto do meio-dia e ao redor do entardecer. Os mais prestativos fazem isso em outros horários e inclusive à noite. Isso possibilita cobrir toda a extensão das cidades com uma atmosfera amigável.

É um povo de uma persistência admirável, entopem as vias e quase não saem do lugar por horas. Exceção das micro usinas, de apenas duas rodas, talvez usadas também para transporte, afinal, essas circulam.

Sem esse gás creio que eles não vivem. Por essa razão existem poucas pessoas vivendo em áreas verdes. Creio que a concentração de oxigênio lhes seja prejudicial. Talvez somente indivíduos particularmente robustos possam sobreviver em tais condições. Motivo pelo qual, eles se esforçam para derrubar as florestas produtoras de oxigênio e umidade.

Mesmo assim, com todo esse empenho, alguns precisam usar CO2 concentrado. Existe um dispositivo bem inteligente que permite uma dose direta. É um canudo fino, branco, que ao ser aceso em uma das extremidades, garante um suprimento para os mais débeis. Evidentemente, quem está em volta aproveita um pouco da fumaça.

Fora a necessidade extrema de gás carbônico, nada mais poderia explicar a audácia em usar tais dispositivos móveis. É visível um contraste extremamente desigual entre as usinas móveis, todas em metal rígido – apenas as rodas são macias – e a fragilidade dos humanos. Eles possuem corpos sem exoesqueleto, são constituídos basicamente de carbono e água, e o cerne é de uma quebradiça estrutura de cálcio.

O exercício da solidariedade da fumaça é perigosíssimo. Muitos perdem a vida pois a usinas são bólidos primitivos que, não raro, colidem entre si ou atropelam humanos e animais, causando danos irreversíveis. É de um absurdo “custo humano”, para usar o vocabulário local.

Não fosse CO2 o gás da vida, diria que nem entre as civilizações semi-inteligentes poderíamos classificar os terráqueos.

Vida interior

Perdido em pensamentos, na missa…

Devo à formação católica grande parte da minha vida interior. Sem as missas, não sei se teria desenvolvido a imaginação. Logo que comecei a frequentar a igreja, as celebrações mudaram do latim para o português, mas bem poderiam ter continuado assim, para mim seguiu soando grego. Como não entendia o ritual, as rezas prosseguiam alheias. Só restava me entreter com as janelas e os pensamentos.

Não sei se meu órgão da fé é avariado ou a se ideia de um deus zangado, ressentido e exigindo adoração nunca me fez sentido. O fato é que sempre estava na missa dividido. Tentava me conectar com aquela solenidade e não conseguia, então devaneava.

Experimentei várias fases de distração: a matemática, quando contava as pessoas multiplicando o número de bancos pela média dos ocupantes, ou calculava quantas lajotas havia no piso, ou ainda buscava descobrir a altura do teto comparando com animais de que conhecia o tamanho. A fase artística era difícil, pois sempre achei a iconografia das igrejas católicas com um pé no sinistro.

Exceção feita às poucas missas a que fui na catedral de Santa Maria, de belíssima decoração. Minha alma volúvel se deslumbrava com as pinturas de Locatelli e ali fui o mais próximo do bom católico, vencido não pela fé, e sim pela estética.

Tive também a fase da pura viagem, tédio total: nessa, simplesmente inventava histórias, conduzia as fantasias aleatórias para filmes mentais. Antecipava os cowboys justiceiros que me aguardavam na matinê, ou os piratas na sua procura obstinada por tesouros.

Mas por que ia à missa se resistia a ela? Porque me mandavam e eu obedecia, seguia os passos dos pais. Minha mãe dentro da igreja junto comigo e meu pai no fundo, às vezes saindo para fumar. Ficava no meio-termo, dentro como minha mãe e com a cabeça lá fora como meu pai.

Da cerimônia, gostava apenas da hora do Pai Nosso, a única oração que conhecia de cor e minha deixa para entrar de verdade na missa, sabendo que já estava agradavelmente no fim. As missas a que assistia com as minhas avós transmitiam uma sensação diferente. A fé delas parecia mais genuína e contagiante e transformava minha eventual companhia em alta e nobre missão. De qualquer forma, mesmo sem elas, nunca achei que perdia meu tempo. Afinal, aquela era a minha religião, ainda que pela metade. Eu não acreditava, só que a missa fazia parte fundamental do mundo dos meus sonhos.

Saía da igreja de alma leve, como quem tira botas apertadas, como quem lava e seca seus pecados logo cedo e a perspectiva da próxima só em uma semana. A luz forte da manhã de domingo prometia um dia livre e feliz. Havia uma inexplicável alegria extra, vá que Deus fosse tão generoso que abençoasse até os ateus distraídos.

19/01/15 |
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O silêncio dos automóveis

Se eles falassem, revelariam nosso desalmado coração.

Como seria se nossos carros pudessem falar? Dizer como foram companheiros e possibilitaram muitas das nossas aventuras. Mas não é assim, eles não falam. Porém não falam por que não podem ou por que não queremos ouvir suas histórias tristes? Eu sou mais pela segunda opinião. Os carros sofrem demais, sua conversa não é animadora.

Tudo começou em 1982, quando uma Caravan bordô saiu de São Bernardo e veio para Porto Alegre. Não ficou dois dias na concessionária. Saiu de lá carregada, a família inteira veio buscá-la. Estava orgulhosa com o seu casal jovem e dois meninos. Moravam na praça Japão e tomava banho toda semana. Um aranhão leve na lataria era sanado imediatamente. Sentia que tinha encontrado seu lugar no mundo.

Mas essa vida de viagens à praia e buscar as crianças na escola durou pouco. Sem aviso, um dia qualquer, foi levada de volta a concessionária. Nunca soube por que nem pelo que foi trocada.

Sua vida mudou. Seus novos e sucessivos donos reclamavam que ela bebia muita gasolina e ia sendo passada para frente. Mal se acostumava a uma nova garagem e já estava noutra. Nem dava tempo de se apegar. Conheceu bairros mais pobres e a periferia. Seus novos donos mal trocavam o óleo. Esqueceu o que é um tanque cheio. Autorizada nunca mais, vivia de peças usadas e improvisadas. As viagens à passeio acabaram, de madrugada fazia compras na Ceasa de dia entregava ranchos.

A maior tortura era quando uma diligência pedia ir ao aeroporto. Ficava sempre perplexa, eram muitas camionetas novas, marcas e modelos que nem suspeitava que existissem. Se sentia envergonhada por estar sem calotas. As vezes imaginava que elas quisessem saber do seu passado, da sua experiência, mas estavam todas entretidas entre si e ela nunca conseguia entrar na conversa. Notava nelas uma ponta de vergonha por serem vistas falando com uma velha.

Seu atual dono, um serralheiro, soldou na capota uma espécie de gaiola de ferro para transportar os portões que conserta e entrega. Era como uma coroa, mas significava o avesso. Para seu desespero uma dessas encomendas foi na rua em que passou seus melhores dias. Podia ver dali a casa onde um dia se sentiu tão amada.

Rezava para que o serviço terminasse. Não queria ver nem ser vista. Como sempre, quanto tememos um encontro ele acontece. Sua antiga família passou numa camionete novíssima. Menos mal que não a reconheceram. Queria morrer, mas não ali. Mal conseguiu arrastar os pneus até sua casa antes de fundir o motor.

Quando fores reclamar da brevidade da nossa existência pense nos nossos amigos automóveis, esses sim tem uma vida curta e conhecem a decadência muito rápido.

(publicado em ZH, 06.01.2014, interino do Fabricio Carpinejar)

05/01/15 |
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Ladrões de cavalos

Todo mundo foi nobre no passado, mas Luiz Corso sabia desmontar essa pretensão com muita graça.

Poucas coisas divertiam mais meu pai do que falar talian, o dialeto vêneto que se sobrepôs aos outros dialetos tornando-se uma língua comum aos nossos ítalo-descendentes. Sempre que podia encontrava com os conhecidos para gastar a nostalgia da sua língua mãe. Como tantos, aprendeu português na escola. Meu avô no fim da vida esqueceu o português e só falava talian, azar de quem não entendesse. Uma das minhas bisavós jamais aprendeu o português, todos que lhe interessavam falavam talian, para que falar outra coisa? Uma densa pátria cultural e afetiva comum unia essa comunidade.

Nessas tantas rodas de fala, sempre alegres, descontraídas, havia apenas um momento em que a conversa tomava um rumo que desagradava meu pai. Não lembro se ele nomeava esse fato de alguma maneira, eu hoje chamo de “nobreza retroativa”. O fato é que, vez que outra, lá pelas tantas, alguém puxava o assunto: o que tua família fazia na Itália? E então eram lembradas tradições, profissões, terras e uma pompa tal, que de forma alguma combinavam com os imigrantes que aqui aportaram. Mal comparando, sabe aquele papo de reencarnação, em que todos foram nobres ou distintos na outra vida e ninguém foi escravo nem camponês?

Ora, a esmagadora maioria de quem veio para este, na época, fim de mundo, era pobre. Não tinham terras nem posses, só esperança, às vezes um ofício e força para trabalhar. Vieram lutar contra a miséria e foram vencedores. A meu pai soava falso esconder a pobreza dos antepassados. A dureza da chegada na América fora heróica e terrível, muito sofrimento e trabalho duro. Na opinião dele, dessa epopéia deveríamos nos orgulhar, não da pátria perdida onde não tínhamos lugar, onde a crise despejou os mais vulneráveis.

Quando chegava a vez do meu pai falar da sua família na Europa, fazia um anticlímax dizendo que se perdia nos séculos desde quando, de geração em geração os Corso seguiam no mesmo negócio, todos aprendiam com os pais os segredos do ofício e de como essa tradição os unia e identificava a família na comunidade. Mas “esquecia” de falar a profissão dos antepassados, ao que um da roda insistia: mas afinal, o que faziam? A resposta era seca: “Roubávamos cavalos!” A piada desmontava o clima da nostalgia pela perda de uma Itália de fantasia.

Eu montando a cavalo sinto falta do mouse, dos botões, do retrovisor, dos pedais. Decididamente não fomos feitos um para o outro, minha intimidade com eles é pouca. Mas como nunca soube o que realmente fazíamos na Itália, meu pai era lacônico a respeito, tenho receio de que possa não ser piada. Peço então que não me convidem para conhecer seus cavalos. Tenho medo de ser assaltado por uma força atávica e, mesmo que desajeitado, sumir com a tropa. Afinal, é tradição de família!

13/12/14 |
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Tatuagens

O corpo ilustrado, visto por um destatuado.

Depois que meu cachorro se foi fiquei sozinho no quesito tatuagem. Todos são tatuados na minha casa. Inclusive me pressionam para fazer uma. Sinceramente, eu passo. As minhas razões são simples, coisa de geração, de idade. Um dos lugares onde mais me sinto à vontade é entre os da minha safra. Olho com entusiasmo as gerações que chegam, acredito serem melhores que a minha, mas fico no meu posto.

Nunca se precisou tanto do corpo para se fazer um eu. Sempre fomos desde um corpo, mas ele não precisava de tanta evidência, tanto protagonismo. Essa onda de tatuagens é similar à das academias, dos corpos esculpidos, das plásticas, dos cuidados extremados com saúde e alimentação. Hoje precisamos ser lindos, sarados e bem aprumados. Como cultivar a alma não anda em alta, apostamos as fichas no corpo. Por isso não creio que seja um modismo. Em resumo: como agora somos mais dependentes do corpo para obtermos uma significação, para sermos alguém, ilustrá-lo faz parte. Recebo pacientes cujas tatuagens foram decisivas para certas significações que de outra forma seriam difíceis.

Além disso não saberia o que tatuar. Geralmente as tatuagens são cicatrizes de uma significação, uma tentativa de fazer algo valer mais do que vale. Ou então desenhamos na pele algo que não queremos esquecer, que é nosso, mas de certa forma tem uma exterioridade. Enfim, algo que se situa na borda, está no corpo mas não entra. Como sempre ando em conflito com minhas identificações, teoricamente seria útil sublinhar alguma delas na minha pele, mas no meu caso, não tenho esperança que esse uso vá ajudar.

E há ainda a questão estética. Na minha infância tatuagem era algo marginal e transgressivo. Sem problema, eu achava isso bacana, mas acima de tudo elas eram cafonas, para usar a palavra da época. Vocês não sabem como as tatuagens melhoraram, algumas são praticamente obras de arte, enquanto as primeiras eram padrão cadeia. Mal desenhadas, mal acabadas, já nasciam tortas e desbotadas. Essa primeira impressão nunca me abandonou, tanto que emocionalmente elas me remetem primeiro a uma precariedade.

Mas a questão mais importante é a ideia de transitoriedade. Eu sei que não vou escutar as mesmas músicas a vida inteira. Meus gostos e referências mudam. Não tenho certeza que seguirei com as mesmas opiniões. Talvez as tatuagens sejam para ancorar certezas necessárias e não me sinto à vontade para tanto. Ou, pegando pelo lado da imagem, vocês já se viram em fotos antigas com roupas em que nos achávamos arrasando e hoje nos parecem cômicas? Sempre penso na tatuagem como uma roupa indespível, uma espécie de prisão a um conceito. Decididamente, a ideia de não poder ficar pelado ou retirar um signo passageiro me incomoda. Invejo quem tem o conforto de algumas permanências.

06/12/14 |
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Tema atrasado

Os temas atrasam, mas professores marcantes sempre chegam em boa hora!

Só havia uma coisa pior do que ouvir o som do Fantástico anunciando que o fim de semana acabou, era lembrar que eu não tinha feito o tema de casa. Minha procrastinação com temas era crônica, mas com as redações eu levava essa autotortura ao máximo. No meu tempo de ginásio era costume, os professores de português pediam a maldita redação semanal. Eu a escrevia mergulhado na angustia do ocaso dominical, com um olho na TV e a orelha no futebol do rádio.

O resto da lição de casa era difícil, mas ao menos era objetivo: faça isso responda aquilo, calcule a circunferência da tangente da hipotenusa e dos seus dois filhos, os catetos. Mas redações tornavam o pior momento da semana em um inferno ainda mais quente: era necessário criar do nada. A letra crescia para ocupar as trinta linhas requeridas. Lançava a mão de parágrafos a cada momento, sabendo bem paragrafar dava para comer até duas linhas. Eu tinha inúmeras artimanhas. Já não sabia se estudava português ou matemática de tanto contabilizar espaço. Sabia de cor uma espécie de tabuada do trinta: fiz doze faltam dezoito.

Quando larguei da fórmula: começo meio e fim e das trinta linhas regulares aconteceu o momento mágico em que a tarefa virou. Comecei a gostar de escrever. A escrita não nasceu comigo, estas linhas que você está lendo existem graças à perseverança escolar e à insistência e correções dos meus professores.

Cada época tem a sua ideologia, um sistema de crenças que não nos damos conta. É invisível como o ar que respiramos, e a vivemos como se fosse a essência da natureza humana. Uma das atuais é o “eu me fiz por mim mesmo”. Ideia que esconde o quanto somos produto de uma história feita da dedicação de nossos pais, parentes, do acaso feliz de bons amigos e colegas. Somos o que somos graças aos outros.

Claro, em certo momento tomamos nas mãos o que fizeram de nós e fundamos uma trajetória. Mesmo assim seguimos com apoio, empurrões e elogios, mas tendemos a esquecer o que recebemos e adoramos dizer que desde cedo pegamos no facão e fizemos sozinhos o nosso caminho na selva. Minimizamos o que ganhamos e superestimamos nossos feitos. Não há maldade nisso, ninguém está mentindo, é assim que hoje nos concebemos. Isso é um subproduto do viés individualista que dá o tom do mundo atual. Lembramos dos outros só quando damos errado, então somos infelizes vítimas de cuidadores opressivos ou relapsos.

Eu tive a felicidade de ter bons mestres e hoje escrevo para agradecer a eles atrasado. O dia dos professores era ontem, mas entreguei tantos temas depois do prazo e eles aceitaram. Vão me perdoar o parabéns com um atrasozinho de nada. Prometo da próxima vez entregar na data. Prometo mesmo. Juro!

18/10/14 |
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Gambiarra

Uma ética de trabalho.

Sabe a Gambiarra, aquele atadinho com arame que se eterniza nos caminhos do cotidiano? É aquilo que fazemos apressadamente e não voltamos para corrigir. O interruptor que só fica ligado com ajuda do clips, o vazamento amarrado com pano, a joaninha no lugar do botão. Tenho alergia a esses enjambres.

Meu pai dizia que do futuro nunca se sabe, então, por que não fazer também um curso prático? O conselho era bom e fiz. Escolhi e me formei como torneiro mecânico pelo SENAI (já posso ser presidente!). Nunca duvidei de que iria estudar engenharia, logo, essa escolha seria também um passo nessa direção.

No SENAI encontrei o meu mestre zen da paciência e da meticulosidade. Jorge, meu instrutor de mecânica, era contra todas formas de gambiarra e classificava os mecânicos em dois grupos: os que usam todas as ferramentas e os que fazem tudo com o martelo. Na improvisação da ferramenta para ganhar tempo o resultado até pode ser igual, ou de uma diferença imperceptível, mas às vezes quebramos a peça, quando não quebramos o martelo. Enfim, ele lutava contra o espírito da pressa, da improvisação de materiais e instrumentos.

Claro, numa emergência o improvisador ganha, pois é necessário criar com o que se tem à mão. Ali a genialidade é fazer a melhor gambiarra. Mas em situações corriqueiras ela é a malandragem para terminar logo, a economia nos detalhes para tapear. É o vai de qualquer maneira ao menor custo. O que Jorge nos ensinava é que a gambiarra, mais do que uma maneira desleixada de produzir, é uma atitude, um jeito de ser. A esperteza é uma solução que não inclui o futuro: ali na frente aparecerá o furo.

Não levava jeito para mecânica e nem terminei a Engenharia. Mas posso dizer que aprendi que os atalhos sempre cobram seu preço. Luto contra a improvisação desde então e ela segue me irritando. Afinal, vivemos no país do jeitinho.

A escravidão marcará o Brasil por muito tempo ainda. Uma das coisas que fundou nossa concepção do trabalho foi a alienação a ele. A única saída do escravo para se proteger de ser desgastado como uma ferramenta, de ser visto como um bem não durável e descartável, era se esquivar das tarefas. O jeitinho brasileiro é o herdeiro dessa malandragem defensiva. Quando combato em mim a gambiarra me identifico com o país que ainda não elaborou totalmente esse aspecto do seu passado. Jorge intuía que a nossa saída era criar uma nova ética do trabalho como forma de mudar a malemolência nacional.

Pois é, do futuro nunca se sabe mesmo. Paradoxalmente, fui parar em outras praias, trabalhando com a vida das pessoas onde não existe uma maneira única de ser. E é tão difícil a empreitada da vida, que mesmo quando nossa subjetividade é colada com durex, tá valendo.

10/10/14 |
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Happy Harbor

Jequice do estrangeirismo dos imóveis

– Não senhor, Bois de Boulogne não é uma raça de gado de corte nem de leite.

– Não senhora, não é um molho, é um bosque em Paris, mas não me pergunte como se pronuncia. Aliás, estamos dando desconto para quem souber pronunciar o nome desse edifício.

Estas falas podem ocorrer na compra de um apartamento, mas nunca uma sala comercial pois essa será no Wall Trade Corporation Tower Prime Building. Ou coisa que o valha, que, mesmo com todo esse nome, talvez tenha apenas quatro andares.

Os nomes dos nossos imóveis comerciais tendem ao inglês, e os residenciais têm mais liberdade criativa, mas o francês comparece com maior frequência. É Maison pra cá Petit Village para lá. Confira você mesmo, a leitura dessas propagandas de lançamento em sinaleira pode ser bem divertida.

Até se conseguem imóveis com nomes em português, mas são mais baratinhos, vocês me entendem. Chic mesmo é uma engronha que a gente não pesca bem, mas que tem web space, fitness center, smart laudry, indoor pool, home theater, playground, petspace enfim, algo para você que tem lifestyle. Você compraria um apartamento onde nem ao menos existe um Espaço Gourmet? Sem falar no kids space com área baby?

Sabe o térreo? Isso não existe mais, agora é Apartamento Garden. E quando os atributos são em português é necessário um tradutor de eufemismos. Encontrei em um anúncio o “sistema de segurança perimetral eletrônica” e pensei logo em robôs circulando, mas era só uma cerca elétrica. Já achei no catálogo de um imóvel a promessa de um “Wireless totalmente sem fios”. Imagine, deve ser fantástico!

Houve quem quis proibir anúncios e impressos com palavras estrangeiras, o que acho que cai no outro extremo. Às vezes, é mesmo necessário e não há mal algum em usar uma palavra estrangeira quando não encontramos similar, ou de mesma precisão, no léxico pátrio. A questão é outra, aqui o uso e abuso de estrangeirismos serve para dar valor a um produto que se tivesse toda essa bola não precisaria desse truque.

Enquanto criticamos os Maiquisons, as Dienifers e Sheyslenes que nascem no subúrbio, moramos em prédios com nomes que também são uma versão brega de usar outro idioma para tentar nos autoenobrecer. Quanto menos sobrenome alguém acha que possui, mais supõe que o nome do filho precise se impor como ímpar. Nos imóveis vale o mesmo raciocínio: para esconder nossa jequice os batizamos com termos em outra língua.

Meu receio é que, se continuarem a construir edifícios com esses nomes, com tantos acessórios e supostas possibilidades, talvez queiram trocar o nome da nossa cidade para Happy Harbor. Menos mal, já que a outra possibilidade seria Gay Harbor, evocando algo que ainda deixa muita gente, chique ou brega, melindrada.