Para onde vai o macho gaúcho?

Reflexões sobre identidade gaúcha e homossexualidade

O gaúcho e sua condição pampeana, criou para o país uma imagem de um centauro guerreiro defendendo a mais disputada fronteira do país. Um lugar rude e viril, onde as disputas eram levadas a ponta de faca. Enfim, se o Brasil teve o seu faroeste aqui foi um dos palcos.

A paz, a modernidade, a integração com o mercosul tornaram obsoleta a imagem guerreira. Nossa identidade, esvaziada do passado de lutas, deixou solta uma ponta de virilidade sem rumo. O gaúcho, agora mais urbano, distante do cavalo, precisa reinventar uma identidade, aquela que serviu para seus avós hoje é mítica. Enquanto não inventamos outra, o Brasil segue nos vendo da mesma forma e é neste ponto que suge um fato que merece atenção.

Hoje um subproduto dessa antiga imagem viril chega às avessas. Basta sair do estado para ter que aguentar as mais variadas piadas de gaúcho onde o que sempre está em jogo é o amor entre os homens.

Respeitadas as devidas distâncias, se a tendência continuar, o Rio Grande do Sul ainda vai ser para o Brasil o que Pelotas é para o nosso estado. É claro que nos dois casos se trata de uma atitude defensiva, e de uma lógica elementar: se o homossexualismo está lá, então não está aqui. Na verdade a questão está mais para quem enuncia o tema em jogo do que para a dita população que seria o alvo da discriminação. Se alguém insiste muito em piadas homossexuais desconfie, ele tem questões pendentes com o assunto .

A fama de Pelotas, que nas últimas eleições rendeu polêmica, parece ser o olhar de um interior rural e atrasado, fortemente patriarcal, para com uma população urbana, mais tolerante, educada, refinada e com traços do matriarcalismo português. Imaginem um lugar, no começo do século, onde a última palavra fosse da mãe e não do pai, ora, isso é terra de maricas no imaginário do nosso pampeano.

Agora é o Brasil que vinga Pelotas, desta vez é o homem à cavalo de bombachas que tem sua masculinidade questionada. Não se trata de casos simétricos, Pelotas nunca fez propaganda de sua virilidade e o gaúcho sim. Seria até interessante para nós gaúchos reclamar uma paridade, seríamos mais cultos num país inculto e isso seria visto como efeminado. De fato, até nos consideramos mais cultos, mas nunca foi a imagem que vendemos.

Provavelmente a origem desta fama deve-se mesmo à imagem do gaúcho tomada como denegação. A psicanálise usa esta palavra para designar uma enunciação que encobre uma verdade afirmando o contrário de maneira exagerada. No caso, quem muito se diz macho tem dúvidas sobre sua virilidade que nem ousa admitir, usa este mecanismo para convencer a si mesmo. A sabedoria popular capta intuitivamente este movimento e desconfia da masculinidade propagandeada. Ora, a imagem nacional do gaúcho, dentro das mais variadas identidades regionais, é a que mais tem marcado, dentre as suas outras qualidades e virtudes, a idéia que aqui é terra de macho.

Nós dissemos que aqui era a terra de Malboro, agora temos que agüentar. Brinca-se com a propaganda deste cigarro por que vem acompanhada de uma frase: “onde os homens se encontram”, entendido aí outros encontros. Ou seja, evoca um mundo onde só existem homens, sua rudeza e bravura. Aliás, nada incomum se compararmos com muitas narrativas épicas mundo afora, onde as mulheres estão fora de cena ou são atrizes coadjuvantes das façanhas masculinas.

Não há muito a fazer com esta fama crescente, trata-se de uma herança passada com uma leitura presente. Um mal entendido por defasagem histórica. Acredito que ninguém perde o sono com isso, afinal é do âmbito de uma brincadeira no jogo das identidades regionais. Devemos nos preocupar disso tanto como Pelotas faz, ou seja, calar e dizer que se trata de um problema de quem enuncia.

Mas do que mesmo que iríamos nos defender? O que é hoje a homossexualidade? Talvez devessemos pensar sobre outros olhos. Recentemente os franceses elegeram o socialista Bertrand Delanoe, gay assumido, prefeito de Paris. O social-democrata Klaus Wowereit , que deve governar Berlim, anunciou que era homossexual e isto não afetou sua imagem. Na Inglaterra o candidato a líder do Partido Conservador, Michael Portillo, anunciou que teve experiências homossexuais no passado. Pelo menos os ventos que sopram da Europa parecem dar a entender que nem tudo cabe dentro do modelo tradicional de família.

A postura preconceituosa para com a homossexualidade deve ser compreendida a partir de duas chaves: a da intolerância e da dificuldade de assumir um caminho heterossexual.

A tolerância é a palavra de ordem que define o nosso ideal ético moderno. Como os ideais existem para indicar mais o que gostaríamos de ser do que o que somos, na verdade reflete o quanto somos ineficazes para lidar com a diferença. Fabricamos caprichos estéticos, cultuamos novos hábitos alimentares, vestuários e um ideal de sociedade globalizada, mas o que mais tememos é a incompetência, o fracasso, somos intolerantes a qualquer forma de fracasso. A homossexualidade que assusta é aquela que aponta uma derrota no caminho da heterossexualidade. Seriam aqueles que teriam desistido antes da linha de chegada.

Isto nos enlaça com a segunda questão. Originários de uma anabolizada família nuclear, somos provenientes de uma cultura que confunde pai, rei, deus, sábio numa figura que se condensa. Identificar-se é tornar-se como aquele a quem se ama, portanto, um desenlace possível da história de amor ao genitor do mesmo sexo é incorporá-lo. Esta super figura paterna está em franco esvaziamento e cada vez mais tem mais amor do que certezas a oferecer. É mais “seja alguém porque te amo” do que “seja alguém como eu”.

O que levaria um homem a amar uma mulher? O único caminho para isso é identificar-se com esta figura patriarcal ao ponto de assumir sua forma de amar, heterossexual portanto. Assim sendo, o homem se faz igual ao seu pai, aquele que tem nas mulheres seu objeto de desejo. Mas há acidentes nesta estrada e é visível o quanto o compartilhamento de uma mulher, no ciúme por exemplo, pode possibilitar a comunhão amorosa homossexual. E por falar de histórias de “gaúchos”, vide o conto de Jorge Luis Borges chamado “A Intrusa”, filmado por Carlos Hugo Christensen: nele dois homens amam-se através da mesma mulher. Na verdade é sempre assim, pai e filho partilham a mãe e esposa nos primórdios. Mas o que os impediria de livrar-se da intermediária?

Ficaria cada vez mais difícil fazer-se heterossexual se pensassemos que a questão com o pai hoje seria mais amorosa que identificatória, mas isto é hipótese por amadurecer…

Para as mulheres o quadro é ainda mais labiríntico. De qualquer maneira, cabe dizer que o amor homossexual desperta nos heterosexuais a conscência da fragilidade de sua própria condição. Intolera-se o homosexualismo porque sua forma sintomática de amar revela que não há uma que não o seja. Se o sujeito não se afoga em dúvidas sobre o sexo de seu parceiro, certamente as terá sobre o tipo de relação, a dominância, sua capacidade de desejar e ser desejado, a estabilidade da relação, a paternidade, e por aí segue. No campo do amor e do sexo habitam todas as incertezas e é lá que cada vez mais buscamos respostas.

Os homossexuais lembram a todos que no amor fazemos o que podemos e que ali nossa alma se revela. Diga-me a quem amas e eu te direi quem és. Apaixonados por um ideal de autoconstrução, como se pudessemos fazer com nosso ser o mesmo que fazem com os corpos nas academias, vivemos como fracasso sempre que descobrimos que o objeto amoroso é o fantasma que guardamos no armário.

É por isso que a questão do homoerotismo toca a todos e ficamos querendo achar um lugar onde ela esteja, pois, de certa forma, está dentro de cada um de nós. Para livrarmo-nos dela criamos territórios para projetarmos nossas próprias inseguranças. Assim se criou Pelotas, Campinas, São Francisco…

Hoje a homossexualidade não é mais considerada (pelo menos para a ciência digna deste nome) uma doença, um desvio, não há mais mais discriminação, castigo ou exclusão direta. Houve um grande avanço, mas nem por isso a homossexualidade deixou de estar contra corrente. Continua sendo muito difícil viver sob esta condição. Existe uma minoria que assume e luta pela sua condição e encontra um certo conforto nesta posição, porém também há uma parte oculta maior que sofre por não ser aceita.

Nosso ideal social é pouco se lixar para o que diz a sociedade, a aspiração do individualismo seria a independência de um olhar alheio. Pois é, mas isso é o ideal, os seres reais de carne e osso esperam um reconhecimento o tempo todo. Vivemos para esperar um olhar, uma palavra que nos devolva uma idéia que somos importantes e que temos um lugar nesse mundo gelado. E é neste sentido que ser homossexual é difícil. De uma forma geral a sociedade não baixou a guarda, são tolerados mas não são amados. Isto não quer dizer que não possam, em certas situações, serem idealizados.

Ora a homossexualidade apresenta-se como um discurso de uma certa liberdade, seria alguém a quem nem a biologia dobrou, ele faria o que quer com seu desejo. Seria quem realmente optou por um caminho. Além do mais apresentaria-se com quem sabe de fato gozar, como se fosse Tirésias, aquele que experimentou os dois lados.

A homossexualidade é investida da idéia de que sabe mais do que os outros sobre o gozo. Por isso talvez, as mulheres façam de alguns homossexuais os mestres da feminilidade: eles saberiam do desejo dos homens e dos dons femeninos capazes de suscitá-los. A idealização do homossexualismo subentende a idéia de que tendo que escolher entre um e outro eu poderia ficar com os dois. Mas isto é mais uma representação projetiva dos heterossexuais misturada com delírios do individualismo do que a real gama de predicado dos homossexuais.

Não existe a homosexualidade como conjunto, ela não constitui um quadro clínico ou uma personalidade em particular. Os homossexuais são tão diferentes uns dos outros como a pluralidade de indivíduos da nossa sociedade. Só possuem traços comum nas piadas sexistas e nos esteriótipos para TV, fora disso, na vida real, são tão diferentes entre sí como são ímpares os indivíduos que atendem o apelo de viver numa sociedade múltipla como a moderna.

A homossexualidade é plural, é o constrangimento social que lhe dá contornos pois os coloca numa situação que pede uma ação reflexa. Procurar a essência do homoerotismo na busca de uma identidade sexual não vai dar em lugar algum, nem para os homossexuais nem para ninguém.

As maneiras sexuais de gozar, as fantasias que comandam a cena sexual se esgotam em sí mesmas, não definem personalidades ou pelo menos nada que seja relevante. Diria mais: talvez as formas de não gozar, as formas de insatisfação e de impotência conformem discursos e personagens mais homogêneos.

A idéia de perversões sexuais, às quais a homossexualidade esteve identificada até a pouco, ofereciam um raciocínio fácil. Fora do normal, tudo é errado e condenável. É claro que temos problemas gravíssimos no campo do que seria o comportamento perverso, vide a pedofilia. O problema é que a questão é mais complexa, o raciocínio fácil nos desarma frente a realidades onde a perversão se instala dentro do comportamento padrão. A postura de colocar um parceiro sexual de uma forma perversa, ou seja, onde ele é dessubjetivado, coisificado e traumatizado pode ser encontrado num casamento abençoado na catedral. Infelizmente não temos garantias.

Mas já que falamos de casamentos, as uniões gays costumam ser como quase todas, indo de crise em crise, alternando alegrias com tristezas, momentos de ternura com a pior brutalidade, enfim a conjugalidade homossexual não inventou um casamento diferente.

Bem sabem aqueles que arcam com a tarefa de seguir o caminho da homossexualidade que não se trata de uma sexualidade intermediária, mas de uma tortuosa trajetória onde simplesmente equaciona-se de forma não convencional as questões da identificação e do amor. O homem homossexual não necessáriamente é efeminado, só o será se tiver motivos para buscar uma identificação feminina, uma homossexual mulher absolutamente não precisará se virilizar, a não ser que precise lançar mão de uma identificação masculina, e não faltam heterosexuais que ostentam as mesmas confusões identificatórias embora tenham família, cachorro e papagaio… Assim a única certeza que temos é que um homossexual é aquele que deseja alguém de seu mesmo sexo, ou seja, é uma particular história de amor.

A dita opção homossexual é falsamente optativa, “escolhe-se” amar alguém do mesmo sexo tão pouco quanto escolhe-se parceiros heterossexuais. Gostamos de dizer que temos um “tipo”, somos inclusive capazes de fazer um perfil físico-psicológico do nosso príncipe ou princesa, mas acabamos descobrindo que o amor é um sintoma de que todos padecemos. O amor é o encontro repetitivo e insitente com nossos maiores enigmas e suas respostas. As mulheres, por exemplo: vivem dizendo que querem Van Dammes e passam namorado Woody Allens, ou vice versa.

Assim como todas as outras “escolhas” sexuais, a idéia de escolha faz parte do delírio moderno de se crer sempre escolhendo. Mas a maneira de gozar e as fantasias que guiam a cena sexual dos humanos são uma das mais arraigadas e menos plásticas das forças que nos comandam. Se alguém duvida que pense em fazer alguma mudança nas suas próprias, querer não é poder. É tão difícil para um homossexual tornar-se hetero quanto o contrário. Não obstante uma geração de terapeutas anterior à nossa se empenhou arduamente nesta tarefa. Gostamos de nos pensar como optando, mas na vida sexual optamos no máximo entre a coca e a pepsi, não é pouco mas é só isso.

Os grandes centros são polos de atração para homossexuais pela sua possibilidade de viver alguma forma de anonimato, é difícil estar contra corrente em qualquer lugar, mas na pequena aldeia onde todos sabem de tudo é ainda mais. Em todo o mundo, a comunidade gay é migrante, vai exercer melhor sua condição longe do olhar dos que o viram crescer. A migração preferencial é para os grandes centros, a solidão da cidade faz bem, dilui os ditames de fazer família e ter criancinhas, outros destinos não tão ortodoxos são mais fáceis de serem aceitos.

Mesmo assim, constituem-se lugares preferenciais, a comunidade homossexual cria espaços onde volta-se momentaneamente sobre si. Este “guetos”, são uma faca de dois gumes, se é um lugar onde se encontra uma coletividade que não discrimina, um lugar onde se pode enfim respirar, um microcosmos onde se sentir normal, é ao mesmo tempo o que vai fazer a dificuldade de integração. Afinal, se existe uma identidade gay é menos por ser um grupo particular que sua orientação sexual lhes daria e mais por partilhar um olhar de exclusão que os segrega e os empurra à reivindicações comuns.

Amanhã o pedido é sair para a rua,vai ser comemorado o dia internacional do orgulho Gay (o dia mesmo é 28 de junho). O “orgulho” este que suponho seja entendido como uma palavra de ordem transitória. Num mundo sem discriminação soaria tão ridícula quanto alguém se reivindicar hoje do orgulho de ser macho. De qualquer forma é dia de afirmar que se sonha com um mundo diferente onde as fragilidades de uns não oprimam os outros.

Vai ser um dia colorido, os gays adotaram como símbolo o arco-íris, onde todas as cores estão representadas, onde cada um, ou cada nuance encontraria seu lugar. É um símbolo simpático, nas mais variadas mitologias sempre representou um elo entre o céu e a terra, uma forma de se comunicar com os deuses. Esperamos que seja também o símbolo de uma ponte entre os mortais.

Os portoalegrenses tem um não tão secreto orgulho de se acharem numa cidade especial. Por razões, dificilmente mensuráveis, acreditamos não estar numa província. Os índices nestes casos são tão múltiplos que até pode ser, mas estar na frente e ser cosmopolita, ou para aspirar a isso, vamos ter que dar conta de algumas coisas e uma em particular: a tolerância à diferença. Não faltam diferenças nesse mundo: raciais, religiosas, culturais, políticas, de classe, de orientação sexual, a questão é como conviver com elas. A cidade cosmopolita é aquela que suporta mais alteridades com um mínimo de tensão.

Acredito que um dos índices do tamanho de uma cidade é de como a parada Gay acontece e como reage-se a ela. O cosmopolitismo de uma cidade não é só isso mas também é diretamente proporcional a esta assimilação. Um pouco do tamanho de Porto Alegre pode ser medido pela passeata de amanhã à tarde no Brique da Redenção. Vá e veja.

Caderno de Cultura da Zero Hora
23/06/01 |
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3 Comentários
  1. José permalink

    Parabéns Mário!
    Já tinha ouvido falar sobre suas abordagens, mas nunca tinha lido nada seu e da Diana. Estou curioso para ler sobre os Contos de fadas no Divã e a Psicanálise na Terra do Nunca; tenho certeza que vou gostar.
    Achei fantástico “o medidor” do grau cosmopolita de uma cidade pela ação e reação em uma parada gay. Você está certíssimo !
    A próxima que tiver eu vou, mas acho que sei onde vai marcar a medida em Porto Alegre.
    Abraço,
    josé

    • Diana permalink

      Oi José

      o bom de colocar textos na rede é relembra-los
      eu tinha esquecido desse, faz tempo que escrevi, e na verdade é um dos que mais gosto
      ultimamente tem se dito tanta bobagem sobre esse tema que acredito ter que escrever outro
      um abraço

      Mário Corso

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  1. A tradição que atrasa

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