Quem tem medo de Disney World?

Estudo psicanalítico do imaginário Disney

Com o passar dos anos, precisamos adaptar o olhar de modo a perceber que a literatura e a mitologia talvez não tenham perdido espaço, acreditamos que elas buscam outros caminhos para manter sua eficácia, este texto é uma tentativa de seguir uma destas trilhas.  Podemos muito bem alardear o simples desaparecimento das formas tradicionais de transmissão cultural e lamentar o vazio deixado pela falta das narrativas orais, do convívio com a família extensa, etc.,  e não estaremos equivocados. Porém, pensamos que devemos buscar os atos de preservação do acervo discursivo da nossa cultura lá onde se encontram  hoje, sob pena de dizermos que desapareceu algo que apenas mudou de lugar.         

Dedicaremos este estudo às adaptações de Disney aos temas clássicos, ou seja os filmes de desenhos animados, pois a complexidade não permite que abordemos toda a abrangência dos produtos de entretenimento Disney como seria o ideal. Nossa questão é fazer uma avaliação crítica da produção Disney nesta área e pensar o que ela tem proporcionado às crianças. Em que medida os temas Disney estão substituindo a narrativa dos contos de fada, ou melhor, seriam eles os contos de fada contemporâneos?

O que se pode esperar de Disney? Não pouco, mas o fato é que parece haver uma desproporção entre o uso e a desconfiaça. Hoje é impossível criar uma criança sem a influência da indústria cultural, particularmente da indústria Disney, a maior representante no campo de produtos culturais para a infância.

Não há muita escolha para os pais: os seus filhos vão falar disso, vão querer ver os filmes, vão ganhar os bonecos, vamos encontra-los nas bolachas do leite matinal. A cada festa de aniversário de qualquer amigo lá estarão os personagens, no bolo, nas lembrancinhas, dentro do chocolate. Quem tem crianças na sua vida não tem escapatória, vai conviver com o mundo Disney. Talvez esta invasão, esta não opção, este convívio forçado, seja uma das fontes de um certo mal-estar. Supondo, bem entendido, que estamos falando de pais minimamente atentos aos movimentos de seus filhos.

Nas críticas que se fazem à influência destes filmes e produtos, costuma esquecer-se o óbvio: o papel dos pais na função de apresentar, escolher, incentivar, comprar, compartilhar. É como nas constantes queixas que encontramos sobre o tempo abusivo das crianças frente à televisão, provenientes de adultos que não reconhecem sua própria dependência da telinha. Da mesma forma, a queixa sobre a violência da TV é encontrável em famílias onde a agressividade latente surge no trânsito, no futebol, no culto das armas, na irritabilidade cotidiana. É sempre difícil perceber o quanto se está implicado na própria queixa e a relação paranóide com os meios de comunicação é sintoma disso. Diga-se de passagem, que o cinema sucumbe à mesma fantasia persecutória que antes marcava a relação com a TV, o rádio e a imprensa: eles penetram em nossos cérebros e determinam nossos pensamentos.

Com os filmes e os personagens Disney a margem de manobra dos pais é maior. É difícil determinar que movimentos fará o controle remoto da TV em mãos de nossos filhos, mas os filmes costumam vir pela mão dos pais um a um, com companhia e certa algazarra. Os brinquedos também, são parte de um diálogo ativo de pais e filhos, por isso fica difícil considerar-se uma pobre vítima da manipulação publicitária. Quando os pais introduzem seus rebentos no universo Disney, o fazem porque este já é parte de seu acervo, transmitem isto assim como outras coisas que são intrínsecas à sua história, músicas, brincadeiras, comidas…De certa forma já somos todos filhos de Disney. Afinal, há quantas gerações, desde Branca de Neve, ele nos ajuda a sonhar. Nossa infância e de nossos filhos são muito mais Disney do que suspeitamos e não está certo que por isso sejamos mais americanoformes.

Certamente o mal-estar, para uma certa camada pensante, vem de outro lugar. Nossa formação intelectual foi feita ouvindo falar mal da indústria cultural, principalmente a americana, e falando mal de Disney. Junte estes dois e não poderia sair coisa boa. Não faz muito tempo que qualquer crítica intelectualmente séria teria que levar o selo de que o fim está próximo e nossa marcha ao caos é inevitável. Falar de Disney sem uma crítica azeda e apocalíptica pareceria impossível. O fato é que pouco se vê os educadores contemporâneos discutirem o papel da indústria cultural Disney em seu amplo espectro e com mais dificuldade ainda se pensamos seu possível e provável papel formador.

A personalidade de Disney sempre forneceu uma resistência para o entendimento de sua obra, suas opções políticas sempre foram de um reacionarismo sincero. Mas afinal a questão é a obra e não o perfil de seu fundador, nesse caso foram argumentos ad homini que afastaram os críticos da dimensão da obra.

A nossa intensão é uma aproximação, se não neutra, por que impossível, pelo menos sem tantos preconceitos, como tem sido feito pela inteligência, sem tampouco cair na adesão do consumidor idiota que acha que o mundo kitch de Disney é o vestíbulo do paraíso.

Disney nos interessa por que lida com sonhos, recria mitos, reconta fábulas, adapta clássicos de literatura, enfim, fornece uma quandidade enorme de materiais para fantasias e aqui entra em nosso território: como fonte privilegiada de fantasias para ajudar as crianças a sonhar. Este é o fato, mas procuraremos explicitar qual tem sido o seu papel.         

Em seu conhecido livro “A Psicanálise dos Contos de Fadas”, Bruno Bettelheim ocupa-se de um trecho escrito por  Jean Piaget  em “A Construção da Realidade na Criança”: neste, uma pequena de quatro anos discutia com o mestre genebrino a respeito das asas do elefante, enquanto ele estava empenhado em lhe demonstrar que elefantes não voam. Ora direis, Dumbo é um elefante, Dumbo voa, portanto, elefantes voam.

Primeira versão Disney sobre o tema da discriminação, o elefante voador é uma realidade desde 1940. A origem da história é fruto de um quase acaso: dizem ter sido encontrada em esboço em uma tira impressa em uma caixa de cereais. A história de Dumbo, nas imagens na qual é narrada, é um fato de nossa memória infantil, difícil de ser diferenciado do que aprendemos da história “verdadeira” nos bancos escolares. Em nossas remiscências as enormes orelhas, a dor de dona Dumbo cruelmente separada de seu desprotegido rebento, existe tal qual a viagem de Colombo ou o grito de Dom Pedro. Relatos históricos e ficções tem equivalente lugar na memória insconsciente, tão vívidos e relevantes como os cheiros e cores das lembranças infantis.

O passado de cada um constitue um grande varal onírico onde permanecem penduradas as roupas coloridas do que já vivemos. Tal como o sonho, a memória despreza solenemente o critério de veracidade dos elementos em jogo, por isso elefantes voam. Ainda hoje é chocante o contraste da leveza do pássaro com o corpanzil do elefante. Estética comparável só na cena das hipopótamas que desempenham graciosamente a coreografia da “Dança das Horas” em “Fantasia”.

Qualquer um de nós pode perfeitamente evocar em sua memória os ditos trechos de filme, mas provavelmente discordará da seleção, dirá que estes não lembra espontanteamente, mas sim outros, e citará suas lembranças do sonho da infância.

Dumbo é tão atrapalhado para enfrentar o mundo como qualquer criança: belo somente aos olhos de sua mãe. Não tem como esconder suas duas gigantescas imperfeições, de forma a apontar a distância que sempre teremos do ideal que nos formata. Voa por que é justamente sobre estas imperfeições que temos que calcar nossa subjetividade, vir a ser no que nos falta para ser, diríamos.

Lembrar que um elefante pode voar, na verdade é tão absurdo como um ser humano de noventa centímetros descobrir que um dia vai ser tal qual aqueles bichos pernaltas que são seus pais, ele sente-se tão preparado para isso quanto o é uma hipopótama para o ballet. Como podemos constatar, as metáforas de Disney servem a algo mais do que a ideologia americana em cujos ideais crescemos pautados. As histórias que assistimos nos desenhos animados servem durante e após a infância para uma série de elaborações.

Quasímodo, o Corcunda de Notre Dame, é o novo Dumbo, mais humano, mais órfão, numa deformidade sem esperança. Como qualquer criança, ensaia-se para o mundo em meio aos seu brinquedos, miniaturas nas quais tenta compreender o exterior que apenas contempla da torre que habita. Sonha com o dia em que entrará na vida, o dia em que descerá e terá uma vida comum. Ao contemplar o romance da cigana Esmeralda com Phebo, o chefe da guarda, em seus belos corpos e sedutores olhares que trazem as promessas que o amor faz ao humano, Quasímodo constata a realidade de que não tem vez nesta dança. Como uma criança, pode aspirar e suspirar junto aos seus brinquedos, aos seus amigos imaginários ou não, mas em última instância esbarra no fato de que seu corpo e seu ser não sabem e não podem participar daquele encantador “pas de deux”. Quasímodo vai descobrindo o mundo fora da torre, como a criança vai se abrindo para o que transcende seu ninho familiar.

Como vemos, histórias sempre servem como âncora metafórica da nossa andança pela vida. Assim, Bruno Bettelheim, no anteriomente referido trecho sobre o vôo dos elefantes, queixava-se basicamente do fato de não interessar à pesquisa sobre o tema da construção da noção de realidade a necessidade de fazer um paquiderme voar. A bem da verdade, Piaget ouviu, como poucos, as despropositadas versões científicas das crianças, dando-lhes um crédito até então inédito. Porém, escapava-lhe justamente o que nos interessa aqui: por que fabrica-se este absurdo imaginário e não outro, ao que ele serve.

Específicamente quanto ao vôo dos elefantes, poderíamos dizer que aquilo que é uma incômoda característica pode tornar-se uma virtude. Ao sair da caixa de cereais para a celebridade, Dumbo serve para reafirmar a eterna convicção americana na superação das frustrações, na força da auto-estima, etc. Podia perfeitamente ser um rouxinol afônico, que se tornasse cantor de ópera ou um esquilo perneta que escalasse o Everest! Poderia, mas não foi. Não foi porque o imaginário de alguém escolheu esta cena no seu acervo inconsciente para representar algo que lhe era próprio. Assim, o Ursinho Puff foi o escolhido para representar todos os ursos de pelúcia na grande assembléia do imaginário infantil; Pateta é o delegado dos “nerds”; Pato Donald daqueles a quem a vida nem sempre ajuda e Mickey do cidadão que dá certo por ter uma boa personalidade.

Talvez valesse a pena perguntar-se por que nos submeteriamos à supremacia do imaginário alheio, por que partilhar das arbitrariedades do outro se temos nossos próprios absurdos para criar. No entanto este questionamento é tão bobo quanto discutir se um paquiderme voa ou não. A organização da biblioteca de nossas lembranças é pessoal e intransferível, assim como a escolha dos livros e das versões que nos interessam. Mesmo assim,  por mais que reafirmemos a unicidade, a individualidade, a imparidade de cada subjetividade, não podemos esquecer que o material que nos constitui vem do discurso dos pais, da decodificação do fantasma parental que modelou o desejo que nos conforma. Psicanalíticamente falando, somos feitos de discurso do Outro.

Lembrando que Walt Disney não é nosso pai, nem avô, nem sequer tio, por que então teríamos que habitar em seu discurso, em seu imaginário? Sendo assim, carece responder por que atribuímos a um americano empreendedor e reacionário a honrosa tarefa de estabelecer um importante trecho do acervo imaginário com que se fabricam os novos seres humanos. Antes disto necessitamos esclarecer a missão que cumprem as histórias infantis, a bem de poder discernir entre esta tarefa ser realizada por um filme ou por uma narrativa provinda do adulto que cuida da criança.

DO CONTADOR DE HISTÓRIAS AO CINÉFILO

As histórias, todas as que embalam a imaginação dos homens, funcionam como fonte e espaço de devaneios. Sonhos emprestados sempre, de alguma forma, trazem a marca de alguém que narrou esta determinada seqüência de fatos e sentimentos. Toda história representa o discurso de alguém. Os autores clássicos são como ancestrais ilustres que contemplam desde as estantes, dando uma sensação de estar sendo protegido por um conjunto de sábios que aguardam pacientemente que os freqüentemos.

Quem está habituado a possuir ou freqüentar uma biblioteca, conhecem bem o fenômeno de pegar um livro ao acaso e “encontrar” exatamente aquelas palavras que dizem o que necessitavamos ouvir. Sintomática e inconscientemente somos levados a revisitar velhas leituras com a mesma liberdade com que freqüentamos outras lembranças. Se o inconsciente demonstra ter este critério, por que negariamos às leituras este caráter de vivências? As frases de uma poesia deixam marcas nada aleatórias, são trechos específicos que tudo dizem, pedaços de discurso que se deixam tomar, usar, dos quais nos apropriamos sem cerimônia nem piedade. 

Compartilhamos trechos de histórias, ditos populares e estrofes de poesias, estabelecendo um acervo comum entre os habitantes de uma cultura, invocante de  uma certeza implícita de que todos saibamos o contexto de onde isto provém. “Ser ou não ser” já é uma frase indivisível e nem uma criança precisa ser informada de que isto está em Hamlet, de Shakespeare. Lilliput é sinônimo de um gigante em terra de minúsculos, tanto quanto Itú é lugar de coisas despositadamente grandes. Como vemos, não só o guia inconsciente do leitor errante na biblioteca usa os livros como acervo pessoal, mas a própria cultura confunde lugares literários com reais. Pasárgada, se os presentes não sabem, fica a algumas milhas de Timbuktu. Este último aliás, tantas vezes é mencionado como sinônimo de confins, pricipalmente nas revistas em quadrinhos, que ficamos surpresos de que realmente exista no continente africano, seguimos convictos de que foi lá que o gato perdeu as botas.

Assim como a geografia foi invadida pelos lugares imaginários, também a literatura teve seu território de preto no branco invadido pelos personagens technicolor, que vieram emprestar seus contornos definitivos às descrições literárias. Exemplo claro disso são os livros que foram roteirizados para o cinema. Dali por diante, os atores (desde que o filme seja marcante é claro) oferecerão para sempre suas imagens ao personagem: impossível imaginar a jovem malvada do “Anjo Azul” sem ver Marlene Dietrich;  Dorothy Gale, do “Mágico de Oz”, será para sempre Judy Garland e “Hamlet”  tem sua imagem calcada na do jovem Sir Laurence Olivier.

Aqui é  que voltamos a Walt Disney. Este desenhista, um belo dia jogou todas as suas fichas na aposta de dar corpo a um personagem da tradição literária infantil: Branca de Neve. A história da pobre moça que quase sucumbiu à inveja de sua madrasta, foi evocada milhões de vezes pela voz das mães e sucedâneos. Na verdade, trata-se do relato de como uma menina desperta para a vida de mulher através do beijo de um homem, mas não sem antes ter que matar a bruxa de sua mãe. Assim como a história de João e o Pé de Feijão  narra os revezes do crescimento de um menino, das lutas com o gigante do seu pai, do que ele precisa lhe roubar, da bravura necessária, Branca de Neve narra o vir a ser de uma mulher.

Estamos em 1937, a princesinha dorme em seu esquife mais uma vez, desta feita é Walt Disney que vem acordá-la. Retirada das suas inúmeras versões, tanto orais quanto escritas, Snow White ganha um rosto definitivo. Este, agora retorna para a literatura de tal forma que por mais que leiamos as inúmeras versões só poderemos imaginá-la com aquela cara, aquele vestido e aqueles gestos.

Faz parte do discurso oficial dos Estúdios Disney, a referência à aventura da criação do desenho de Branca de Neve. Desde o alto custo, inédito para um desenho animado, até o nervosismo da estréia para uma platéia de adultos, percebemos que assistimos a um evento que esperava marcar época e assim o fez. Assistimos ao nascimento de uma atitude de investimento no imaginário infantil e de infantilização do público em geral. Evidentemente que isto já vinha em estreita consonância com o conceito de infância que se processava fazia bem uns dois séculos, tal qual já lemos em Philipe Ariès à exaustão. Na estréia deste filme, porém, há um episódio importante da história da infância: abre-se o flanco da industria cultural para a infância assim como a massificação do imaginário infantil.

Através deste investimento, histórias já tradicionais da cultura ocidental sofreram transformações para melhor se adequar ao imaginário da época. Bruno Bettelheim, por exemplo, lamenta a ênfase dada na figura dos anões, seres que nunca crescem, mas lembra que eles estão ali para criar um contraste com o desenvolvimento da personagem título. Na verdade, observamos que estas pequenas testemunhas, seja sob esta forma, ou dos bichinhos que fazem a ativa figuração destas histórias de amor e bravura, estão sempre presentes e não só participam, como são objeto de ternos cuidados por parte da protagonista. Muitas crianças, quando perguntadas a respeito de que personagem gostariam de ser no filme respondem: -o coelhinho, pois a Branca de Neve é a mamãe e o Príncipe é o papai. Portanto não é de se estranhar a estréia para adultos. É a família moderna que deixa aos cuidados da tela uma certa encenação do seu mito de origem.

Quando uma mãe conta das malvadezas da madrasta, não sabe a criança por que uma adulta narraria a seu filho especificamente uma história em que os papéis parentais são tão desmerecedores da função. É claro que sempre existe a fada madrinha, assim como a mãe que era boa, mas infelizmente morreu. Os adultos não são totalmente trouxas e não lhes passa despercebido que os papéis título sempre ficam com os pais maus ou fracos. Mesmo assim os contos de fadas e bruxas continuam a ser contados, pois revelam aos filhos as dificuldades das relações familiares, onde filhos odeiam aqueles que mais amam e pais devoram suas crias.

Estas monstruosidades são justamente o hit destas histórias, mas se ocultam no relato, enquanto conteúdo latente. Trata-se de material tomado diretamente do inconsciente parental e transmitido ao filho, sem consciência da operação de elaboração que aí transita . Desta forma, no relato que o adulto faz da história, o conto antes de dormir, há um nível que escapa à criança e ao narrador também, algo que o adulto já sabe que tem que se sofrer. Os relatos escabrosos,  servem para alguma coisa na comunicação entre a criança e seus adultos: alertam para os desencontros amorosos, para a ambivalência da relação com os pais, para a presença do voto mortífero no amor paterno-filial, para o eterno problema do fracasso da idealização, para os perigos do incesto e muito mais.

Para aproveitar ainda mais um pouco das reflexões de Bruno Bettelheim, ocupemo-nos do que ele denomina a “mensagem reasseguradora” dos contos de fada. Esta consiste em “dar corpo e realidade ao monstro que a criança se sente”, assim como em dar conta da também monstruosa incapacidade dos pais de ver crescer seu filho sem experimentar uma vivência de finitude, de morte. No entanto, o que os contos reasseguram é um final feliz, nutrindo a ilusão de que não se passará pelo mesmo ciclo de infância, juventude, maturidade, velhice e morte dos pais, pois, os heróis como se sabe, viveram felizes para sempre. Aliás, poderiamos dizer, que o que as fadas emprestam aos príncipes e princesas é a juventude e a vida eterna.

A presença de adultos em um espetáculo infantil evidenciada por Disney na estréia de Snow White, é precursora do funcionamento que temos em nossas casas hoje: os pais também assistem e gostam. Na maior parte dos casos, o filme precede o conto ao pé da cama ou à leitura da história. A primeira vez que se assiste gira por volta dos dois anos e os pais acompanham, não mais estão em posição de narrador. Depois disso promovem a instalação do imaginário do filme na estampa da roupa, no motivo da festa de aniversário, no bonequinho, na aquisição do filme que a criança poderá ver repetidas vezes, no que não será mais acompanhada pelos adultos.

Sim, a história com seu poder de elaboração permanece, mas a diferença está na posição de pais e filhos, agora não mais frente à frente, narrador e ouvinte, mas sim lado a lado, espectadores da mesma história. O cenário se povoa da realidade tecnicolor, da beleza computadorizada, das imagens que são capazes de qualquer proeza para realçar a vivência de intensidade do que se passa na tela. Na verdade, seria como um livro que quisesse aprimorar suas ilustrações até que toda a intensidade da história saltasse para o ambiente em que estava sendo lido.

O debate que aqui travamos se assemelha ao que marca as relações do teatro com o cinema: há os que questionam a perda que se estabelece no cinema em termos de intensidade, de força da mensagem. O envolvimento que o cinema propõe, a entrega absoluta necessária para assitir a um filme, são considerados alienantes. Acrescentemos a isto a denúncia de que as histórias estejam sendo edulcoradas e teremos o risco de ver os momentos mais cortantes da nossa tradição cultural transformados em pueris enfeites de bolo.

A HISTÓRIA ORIGINAL

A adaptação de Hércules para os nossos dias, no desenho animado de 1997, coloca problemas tanto mais sendo para as crianças. Originalmente, o personagem Hércules é filho de um duplo adultério. Na história do mito greco-romano, Zeus trai mais uma vez sua esposa Hera. Desta vez torma a forma de Anfitrião (aproveitando-se de uma ausência deste) para enganar a sua esposa, Alcmena. Aqui já encontramos o primeiro de vários obstáculos. Toda a saga do herói grego vem permeada de seus problemas com Hera a esposa traída que quer, a qualquer preço, destruí-lo para vingar-se. Não bastasse isso,  num acesso de loucura Hércules matou os filhos que teve com Mégara.

Conscientes das peculiaridades da subjetividade infantil, estamos num tempo que faz uma distinção muito clara no que é próprio e impróprio para o consumo infantil. Para os povos mediterrâneos que sintetizaram tal mito o problema não estava colocado, o produto cultural era sempre para todos.

Não é possível pensar hoje um Hércules herói infantil engendrado fora do casamento. Quando Disney contou a lenda de Arthur deparou-se com o mesmo problema, ele é concebido de uma maneira mágica, trágica e adúltera, semelhante a Hércules, a opção foi por tirar essa parte, começar com ele já menino.

Nesse sentido o Rei Leão sofreu problema semelhante. De clara inspiração em Hamlet não seria de bom tom fazer a mãe do herói desposar o tio pérfido e traidor. Porém, sem o desejo da mãe a atrapalhar o pequeno leão, não há a indecisão e procrastinação quanto ao ato da vingança quando a oportunidade se apresenta. Depois dessa retirada ainda podemos chamar isto de Hamlet?

A pergunta pode ser a mesma para Hércules. Sem a trama de sua origem, agregado a uma leitura livre do panteão grego, acrescentando um fundo maniqueísta, o que restou de Hércules? Os Estúdios Disney inventaram uma cisão entre Zeus e seu irmão Hades. Nem Hades, pelo que consta, nem Poseindon nunca reivindicaram o reino que não era seu. O acordo inicial sobre quem governava o céu quem ficava com os oceanos e quem mandaria nos subterrâneos não era assunto de discussão. Não seria comprensível para as nossa crianças e acredito que para a maioria dos adultos uma divindade não essencialmente boa ou o contrário, declaradamente má. O antropomorfismo do panteão grego é difícil de assimilar para quem nasceu ouvindo falar de deuses descarnados. Nossos deuses, hoje, aliás nem plural se pode usar, nosso deus é um modelo de virtudes, às vezes algo incompreenssível em seus desígnios, mas infinitamente bondoso. Dificilmente desceria a terra para seduzir uma donzela. Nosso atual deus não deseja, ele é sem faltas.

Talvez Hércules e Hamlet se prestem para pensar que, quando se trata de um mito, o que conta são sempre versões. Não existe o mito original, e se existiu ninguém mais sabe o que era inicialmente. Os gregos entre eles não contavam a mesma história de Hércules, haviam grandes discrepâncias locais sobre sua vida e seus feitos. Quando os romanos o contam já não é o mesmo. E o problema maior é que não temos sequer uma garantia que seja um mito grego. Herôdoto traz algumas razões para pensar que se trata de um mito egípcio que foi levado para a grécia. Ele próprio encontrou templos egípcios dedicados a Héracles ou a Chonsu-Neferhotep (seu nome egípcio), anteriores as gerações que fundaram o que hoje chamamos de cultura helênica. Hamlet , de Shakespeare, é apenas a mais espetacular e genial versão de um mito que o antecede. Já fora citada como uma lenda por Saxo Gramaticus, adaptada posteriormente por Belleforest, e não poucos mitologos dizem ser um eco de Orestes fundido com tradições nórdicas. 

Disney fez o seu Hércules, é a única resposta possível. Fez a versão possível para as crianças da nossa época. Rei Leão não é Hamlet e por que teria que sê-lo? O problema é pensar porque algumas pessoas possam pensar que isso é um pecado. Não há desvio da boa história porque não há a história correta. O que pode sim ser questionado é a genialidade com que se retransmite o mito, se está à altura de seus antecessores. A questão mais relevante é se as crianças conseguem apoio nesses filmes para trabalhar as suas problemáticas, assim como as narrativas tradicionais sempre se prestaram para pautar o crescimento dos habitantes de determinada época.                    

Seria possível se delongar detalhando as diferenças entre a versão “moderna” e a “clássica” dos dois Hércules com um claro prejuízo para Disney mas num dos aspectos talvez ele saisse vencedor. Uma das facetas importantes do mito de Hércules é a busca possível e lograda da imortalidade, Disney opta pela mortalidade e pelo amor. De longe a versão Disney é mais “madura”, para usar um vocabulário da psicologia. Nós, os psicanalistas, diríamos que é da aceitação da castração que se trata e que, de fato, é quando aceitamos a nossa finitude que crescemos, presos na onipotência infantil não vamos longe na vida.

 AS CRíTICAS COSTUMEIRAS

A crítica mais comum é que Disney faz um mundo açucarado para as crianças. De fato, é nossa época que faz um mundo edulcorado para a infância, Disney é apenas contemporâneo. Poupamos as nossas crianças, todos fazemos isso, se é certo ou não agora não é questão, mas há um consenso moderno de que as informações sobre as agruras da vida e os revezes do sexo devem ser fornecidas homeopaticamente.  

Colocar todos os filmes no mesmo plano não dá certo, eles cumprem funções muito distintas. Isso é a primeira questão a respeito de Disney, não há coerência, não há um plano ideológico maquiavelado por trás. Eles fazem filmes de seu tempo, às vezes retrógrados, outras mais sintônicos.

Uma das críticas feita aos habitantes de Patópolis na década de 60 era o recalque da paternidade e da sexualidade. Não haviam pais, todas as figuras paternas eram tios. E logo não havia reprodução sexuada. É bem certo, mas a crítica sistemática aos estudios Disney também poderia ter alguma coerência: foi falado que no “Corcunda de Notre Dame” havia uma sexualização evidente de Frolo na sua paixão por Esmeralda. Já Rei Leão é um grande filme sobre a filiação ou sobre a paternidade, dá no mesmo. Nisso não há mais sombra do “complexo de Patópolis”. O mesmo pode se dizer da Pequena Sereia, a trama central narra as desventuras de uma mulher saindo do tótem paterno.

Filmes como O Corcunda de Notre-Dame e Pocahontas tem, ao contrário dos outros, uma vocação política bastante explícita. Os dois tem como temática a tolerância, de como conviver com o diferente. Talvez seja uma das maiores procupações americanas contemporâneas e pelo visto temos algo a aprender com eles. As críticas feitas por ser filmes politicamente corretos são estreitas, eles são muito mais do que isso. Nem sempre a correção política é obtusa, neste caso serve para aceitarmos a alteridade, que mal pode haver nisso? Frolo, o malvado tutor de Quasímodo, é um precursor dos genocídios que são muito mais atuais do que gostaríamos. A cigana Esmeralda bem pode tornar possível conversar com nossos filhos sobre o horror das guerras raciais e juntos pensar porque um povo mata outro. Uma das leituras de Bambi pode ser uma espécie de ecologia avant la letre, é dificil caçar depois de ver Bambi.

As temáticas abordadas na filmografia infantil americana talvez tragam um sopro de otimismo aos intelectuais preocupados com o mundo pós-utopias. A bem da verdade há um trabalho na constituição de um certo tipo de cidadania que a princípio pode muito bem garantir  um futuro menos bárbaro aos nossos netos. A educação de nossos filhos ruma para o combate à discriminação e à relação predatória com o espaço que ocupamos. Não deixamos de ser violentos e intolerantes, é verdade. Mas se algum leitor da virada de século tentou ler Monteiro Lobato para seus filhos hoje crianças, não deixará de experimentar um certo constrangimento sobre a forma como é tratada a tia Nastácia, cuja burrice e incultura são atribuidas a sua cor negra o tempo todo.

Hoje pode soar cômico, mas a figura de Tio Patinhas já foi lida como a mais maquiavélica forma de transformar pequenos seres em futuros capitalistas selvagens. Que bom seria se tudo fosse tão simples, que as opções políticas fosem diretamente derivadas das leituras de infância. O mínimo que podemos dizer é que se funciona, é de pouca eficácia, com um baixo rendimento. Gerações inteiras leram fardos dessas revistas e pouquíssimos transformaram-se em velhos avarentos e retentivos. Numa sociedade como a que vivemos, com a corriqueira exaltação dos objetos como fonte indiscutível de prestígio e gozo, em cada propaganda de qualquer produto, como atribuir ao velho Patinhas tamanha relevância?

LOBATO, O NOSSO DISNEY

Rogamos que de nossa crítica anterior não se extraia um motivo para não ressucitar Monteiro Lobato, seu racismo na época não era estranho, com certeza hoje ele seria um árduo defensor das lutas antidiscriminatórias. Na verdade, gerações de brasileiros são devedoras daquele que fundou a literatura infantil nacional. É oportuno lembrar que foi entre nós exatamente Lobato que defendeu e realizou a adaptação de várias histórias clássicas e trouxe para o nosso sítio todos os personagens da literatura clássica. A presença de Branca de Neve, do Pequeno Polegar, de Peter Pan e tantos outros junto à Emília e Narizinho, formaram um caldo caótico exemplar do quanto é preciso que uma cultura, uma idade, uma linguagem se apropriem da ficção clássica, retraduzindo-a, enfim, adaptando-a. Monteiro Lobato fez em termos de Brasil, o que os Estúdios Disney realizam em termos de infância, adaptam, traduzem. Continua sendo muito divertido e instrutivo lê-lo.

Há elementos em Monteiro que o tempo não atinge, é lamentável que no Brasil hoje haja pouca gente trabalhando no sentido da adequação de Lobato a novas mídias. Bem ou mal a Rede Globo por uns anos fez um trabalho que teve valor de resgate. Aqui temos novamente a mesma discussão: é possível ler os livros para crianças de Monteiro Lobato para nossos filhos tal qual ele os escreveu? Sim, embora estejamos todo o tempo a explicar o que é “gabola”, “alforje” e outras palavras que hoje são de pouco uso. Esta é sem dúvida uma experiência interessante, mas convenhamos, quantas crianças tem pais com possibilidades subjetivas e intelectuais de ler os clássicos nas versões originais? Certamente muito menos do que são as crianças em condições de fruir das benesses do apoio de trechos ficcionais, histórias e mitos. Também em Monteiro Lobato temos a mesma paradoxa do que com Disney, trata-se de adaptações que, de tão pregnantes para uma época e para a subjetividade infantil, tornaram-se clássicos.

CONSTITUINDO UM IMAGINÁRIO COMPARTILHÁVEL

O nosso tempo inflacionou a importância da infância na gênese subjetiva e a psicanálise não está fora disso. Temos a noção de quão mais precoces as impressões, mais marcantes serão. Só será alguém na vida quem já na infância mostrou o signo do gênio. A infância é mais do que em qualquer época vivida como definitiva dos rumos que um sujeito tomará. Uma boa infância, uma infância feliz seria uma garantia de um adulto com auto-estima permanente, o que dará a energia para enfrentar os anos de agrura vindouros. Através dos investimentos educativos, damos às crianças não apenas a velha e boa formação moral, mas também, buscamos intervir em sua intrincada subjetividade. Só estamos certos de ter bem cumprida a tarefa parental, após ver as crianças transformadas em adultos “felizes”. Como se não bastassem as dificuldades normais que a infância coloca, temos agora a obrigação de ser felizes. Sabemos que não é uma tarefa fácil, mas que sacrifícios não se faz em prol de um bom futuro?

Ao mesmo tempo que os pais estão cientes da gravidade das infuências precoces, sentem dificuldades em se admitirem os principais protagonistas da história de seus filhos. Tudo é invocado: o ensino, a violência da televisão, enfim, todos os motivos possíveis para que a educação dos rebentos seja tarefa alheia. Mesmo porque sabem que os riscos de errar são grandes e não mais podem contar com uma forte tradição religiosa ou cultural a lhes indicar o bom caminho.

É por isso que não podem se arriscar a produzir uma versão das histórias clássicas dirigidas às crianças, mas, sabedores de seu papel formador, continuam propiciando o acesso de seus filhos a elas. Temerosos, antes de se deixarem trabalhar, fazer a digestão familiar da versão em curso, frequentam algo que, na falta de outras normatizações sociais, funciona como um imaginário balizador. O que impede que os pais leiam ou contem as histórias clássicas, arriscando-se a fazer sua seleção, adaptação e versão, não é sua “incultura”. Não é por ser iletrados que não o fazem, é por serem ao mesmo tempo cientes da tarefa da transmissão e inibidos para realiza-la.

É interessante que possamos agora lembrar o caráter de “cult” que tem sido atribuido a filmes que às vezes não tem sequer vinte anos, assim como alguns desenhos Disney já são “clássicos” e passam por uma série de cuidados no sentido da preservação de sua forma original, qual fossem tombados pelo patrimônio histórico da humanidade. Assim, na falta de outro tipo de asseguramento de nossa identidade, de certezas que possamos legar às gerações futuras, podemos contar pelo menos com um acervo de  imagens que passam idênticas a sí mesmas de geração a geração.

“Cult”, culto, evoca não só o caráter artístico da obra, sua qualidade, mas também sua possibilidade de tornar-se um objeto de adoração religiosa. Ainda não estamos rezando ao santo Dumbo, nem Peter Pan instalou-se definitivamente no cargo de anjinho da guarda, mas já cultuamos alguma imagens como garante de continuidade entre as gerações. Era inevitável que constituissemos alguma forma de tradição.

Os críticos resmungarão com toda a razão de que isto é uma forma suprema de alienação das famílias, que entregam o trabalho psíquico de transmitir a cultura a um objeto que por ser sempre idêntico a sí mesmo só poderia induzir ao conformismo idiota. De fato, é um risco. Porém, acreditamos que o trabalho psíquico da família e da criança persistem intactos. Em nosso trabalho clínico, temos a oportunidade de testemunhar como pacientes de todas as idades lidam em suas associações com experiências cinematográficas, que são tratadas com a mesma liberdade que o discurso no divã toma sobre quaisquer referências. Não poucos bons trechos de análise iniciaram promovidos assim. A conclusão é das mais óbvias: não há nada que possamos tomar enquanto pura imagem, nem discurso que se proponha como totalmente outro. O trabalho psíquico sobre as histórias e imagens que a cultura proporciona é inevitável, mesmo na mais puramente sensitiva das experiências, se formos humanos, é claro.

Acreditamos estar assistindo à constituição de outra forma de ser tradicionais, onde mais uma vez o projeto individualista esbarra na impossibilidade humana de ser original e livre. Assim, na tarefa de se divorciar da tradição, a família termina fadada ao culto doméstico de uma coleção de imagens.

Evidente que as conseqüências psíquicas desta transformação serão sentidas, mas ainda nos falta uma compreensão do alcance desta mudança. Com este trabalho desejamos a princípio esmorecer alguns preconceitos e trabalhar uma predisposição a uma visão da subjetividade moderna que não seja como a dos velhos que sempre estão a pensar que a juventude está perdida, que bons tempos são aqueles que já se foram. Aliás, a não ser que constatemos uma mudança  total nos caminhos da subjetivação humana, onde a filiação deixe de ser operada por um casal parental, estaremos fadados à predominancia do funcionamento neurótico, dentro do qual esbarramos impreterivelmente na impossibilidade do autoengendramento. Mais uma vez, caimos naquilo que às vezes alguns pacientes se queixam nos consultórios: por que tudo desemboca em assunto sobre os pais? Parece que por hora não há outra alternativa…

Publicado na Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – “Psicanálise e Literatura” – Número 15, Ano VIII, novembro de 1998

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