Ruiva indomável

Sobre o filme “Valente”, aventuras da identidade feminina.

Com indescritível assombro, pois não há experiência tão mágica quanto o parto, dei à luz a uma princesa ruiva. De signo de fogo, me disseram. Signo ou não, mostrou-se um fato, desígnio de suas cores. Poucos anos depois, uma vigorosa morena já saiu opinando de minhas entranhas, assim segue pela vida. Os anos passam, a vida das três mulheres que somos se entrelaça, nos transformamos. Meus cabelos brancos evidentemente cobiçam o viço das belas jovens que aqueles bebês se tornaram. Mas há muito mais que uma bruxa invejosa na alma das mães de mulheres contemporâneas.

Na dúvida, assista “Valente”, um filme de animação infantil. Se quiser indagar o futuro, busque seus sinais no rumor do cérebro daqueles que hoje ainda são crianças. Os que tentam cativá-las com produtos culturais já não são crianças, mas certamente usam a bússola dos desejos delas como roteiro de suas tramas, são atentos a infância como poucos. Novos tempos pedem novas ficções, novas mulheres precisam de novas heroínas. Temos testemunhado isso com a transformação da tradicional Branca de Neve, de Rapunzel e outras, assim como o surgimento de novas formas de ser princesa.

Trata-se do recém estreado filme dos Estúdios Disney, com roteiro elaborado por duas mulheres. Nascida da linhagem de princesas de cabelo vermelho, que já tinha em Ariel (A pequena sereia) e Fiona (Shrek) boas representantes, a jovem princesa Merida é uma dona de indomável melena ruiva e cacheada. Aliás, em Portugal o título original do filme – “Brave”- foi traduzido para “Indomável”, expressão que melhor lhe cabe. Seu espírito é como seus cabelos, prefere o arco e flecha às lides domésticas, é exímia nessa arte. Em casa, se compraz nas narrativas de lutas do pai, um gigante ruivo que perdeu sua perna no combate com um urso. Ela é uma legítima filha de seu pai, partilha-lhe as cores e os prazeres viris, reconhece-se melhor nele do que na doçura severa e contida da mãe.

Chegada a idade casadoira, vê apavorada a chegada dos herdeiros dos clãs aliados do reino, candidatos à sua mão, dos quais nenhum remotamente se assemelha a um príncipe desejável para seu gosto. Rompendo com a tradição, para desespero da mãe, ela conquista a própria mão no torneio de arco e flecha, fugindo para a floresta, coberta de ódio pela tentativa desta de submetê-la ao detestável destino de esposa.

Eis então, numa série de reviravoltas, que ela inverte vários papéis das princesas dos contos de fadas tradicionais. Em primeiro lugar, com ajuda de uma bruxa mercenária, é ela que dá um alimento enfeitiçado para a própria mãe, similar à maçã envenenada da Branca de Neve. O objetivo do ardil é transformá-la para que ela fosse levada a compreender os desejos diferentes da filha. A magia produz um efeito inesperado: transforma a mãe justamente num temível urso, principal inimigo do pai, o que a coloca em grande risco.

A partir desse resultado, ambas terão uma jornada de aprendizagem. À filha cabe descobrir o poder feminino, oculto sob a camada de docilidade e submissão da esposa e mãe. Constata que o reino, sem a sabedoria da rainha (que estava ausente, transforma-se num pandemônio de testosterona desgovernada. À mãe cabe, na vida e neste filme, o papel civilizatório de domar os bárbaros para que se alimentem, se limpem e comportem feito gente e não como animais.

Já à mãe, sob a nova forma animalesca, está reservada a aventura de experimentar na pele a liberdade que sua filha tanto quer preservar. Como ursa descobre-se poderosa em combate (nunca duvidamos da fera que sabe ser uma mãe em defesa de suas crias), enquanto se apraz da desenvoltura de um corpo despido das amarras do pudor e da mímica contida do cotidiano das mulheres.

A tradição do conto de fadas têm várias histórias de “noivo animal”, das quais “A Bela e a Fera” é a remanescente delas. Neste caso, temos a inédita versão de uma “Mãe Animal”. No reino mágico, freqüentemente a personagem passa por transformações no corpo que vão ilustrando o caminho das mutações da alma. A passagem pela identidade animal nessas histórias costuma ter fins educativos, é uma espécie de lição, como na história da Fera, que perdeu a identidade de um belo príncipe para obrigá-lo a despir-se da soberba. Aqui, a mãe perde a delicadeza, assume uma forma masculina, poderosa, é obrigada a sentir-se na pele daquele que assombra até o próprio rei. O urso, versa a tradição folclórica, precedeu o leão na condição de rei dos animais. A rainha, mãe de Merida, que não lhe compreendia a identificação viril, é obrigada pela filha a vivenciar o outro lado da moeda das identidades sexuais em sua forma mais selvagem. Aprende-se duramente nos velhos e nos novos contos de fadas!

A sina desses feitiços somente se encerra quando uma expressão de amor revela-se maior do que qualquer repulsa que a versão animalesca possa suscitar. Neste caso, para mãe e filha. Ambas precisaram fazer esse percurso para aprender a amar-se. A filha viu surgir na mãe essa forma primitiva, uma ursa. Esse enorme animal tem um igualmente grande potencial simbólico: também se presta para a representação da maternidade. Não é totalmente estranho ver a maternidade misturada com algo ameaçador, pois essa mesma natureza que nos expulsou para a vida não raramente ameaça nos reincorporar. Por isso mesmo muitos homens desenvolvem dificuldades sexuais em relação àquelas que, outrora desejadas, tornam-se mães. A ursa, gigante peludo que hiberna para dar à luz, é uma tentadora figuração da mãe, acolhedora e protetora.

Cobiçadas e temidas, subjugadas e imprevisíveis, há séculos as mulheres iniciam suas filhas nessa arte do poder invisível. A princesa ruiva de “Valente” espera viver sem esse espartilho dos bastidores, da dissimulação, antigo campo de força das mulheres. Agora, a liberdade de movimentos e de opções, as escolhas e realizações que não dependem do amor e muito menos de um homem são, sim, opções válidas para as garotinhas que hoje comem pipoca no cinema. Já o são para suas irmãs mais velhas ou jovens mães. Às mulheres mais velhas viram o arco e flecha tomar o lugar da linha e da agulha e tiveram que suportar a transformação das suas filhas em seres livres, desgarrar-se da identidade clássica feminina associou-se assim a uma libertação da mãe. As herdeiras das conquistas feministas sentem-se permanentemente na contramão de suas mães. Mesmo que estas sejam poderosas, políticas, executivas, cientistas, artistas, sexualmente livres, separadas, mães solteiras, enfim, vivam quaisquer das novas formas de vida das mulheres, as filhas ainda as questionam, suspeitam-lhes uma servidão interior da qual se querem libertas.

Neste filme, a descoberta da jovem princesa passa por encontrar amor e admiração pela mãe, tudo aquilo que julgava ter descartado enquanto opção de identificação. A identidade viril é uma coletânea de certezas, gestos de afirmação e vitórias mensuráveis, numa cultura pautada pela legitimação de seus feitos. Nessa arena, as novatas têm se revelado exímias, como Merida com seu arco, mas ainda sentem-se estrangeiras, ilegítimas. Talvez essa condição de eternamente párias deva-se ao fato de que sacrificaram a identificação com a mãe. A princesa ruiva porta os traços do pai, carrega a certeza dessa filiação em suas paixões pelo domínio do que outrora era vedado a seu sexo, mas precisa saber o que fazer com o legado feminino. Nele, não se reconhece a priori, a aventura neste caso é a de saber-se mulher e por isso agora o desafio encontra-se do lado da mãe. Desta vez, a progenitora abandona o tradicional papel de rival, para tornar-se o mistério a ser decifrado, um amor a ser reconhecido.

É pelo amor da filha que a mãe volta à forma original, quando a jovem admite o que dela aprendeu. Já a mãe, ressurge marcada pela jornada de questionamento, precisa ver na sua descendente alguém capaz de escolhas, originalidade, opções que revolucionam a vida de ambas. As mulheres têm mudado vertiginosamente nos últimos séculos, mães e filhas sofrem com essa eterna mutação, sua relação é uma montanha russa de sentimentos. Já que indômitas, temos que ser, de fato, valentes para viver juntas tudo isso. Sou grata às minhas princesas irreverentes pelo tanto que seguem me revolucionando, pelo amor com que me permitem ensinar-lhes algo, pela parceria na infinita descoberta do que é ser uma mulher.

4 Comentários
  1. Maria Fernanda Schneider permalink

    E´maravilhoso ler voce,com essa sua visao sublime do que realmente importa na construcao dos laços que,na minha opiniao,e´o que fundamenta a estruturaçao psiquica.To de volta ao Brasil e quero continuar “te lendo”…Abraço com admiraçao e respeito!

  2. Claudia Formiga permalink

    Parabéns por tão belo texto!
    Fui ver o filme no ultimo fim de semana acompanhando meu filho de 7 anos e acabei “pagando o mico” de chorar em um filme de animação infantil! (rsrs). Um filme “pra criança” e saí do cinema totalmente mexida com história tão forte e cheia de significados. Para além da questão do feminino e de sua transmissão de mãe pra filha, a própria luta de um sujeito por aquilo que acredita ser o seu destino – em última instância, dar consequência a seu Desejo – me tocou profundamente. Me deu vontade de compartilhar com amigos essas tuas impressões do filme e o fiz no Face..

    • Diana permalink

      totalmente acompanhada: asssiti o filme aos prantos, por isso escrever, não podia não fazê-lo! obrigado pela leitura e por compartilhar!
      abraços
      diana

Comente este Post

Nota: Seu e-mail não será publicado.

Siga os comentários via RSS.