Trainspotting – a droga como ela é

Sobre o filme de Danny Boyle e a toxicomania

O cinema inglês anda eufórico e não sem razão, Trainspotting (dirigido por Danny Boyle, 1996) é realmente tudo que dizem e um pouco mais. O filme conta as desventuras de um grupo de adolescentes escoceses envolvido com drogas e delinqüência. O sucesso não ocorre por acaso, como diria um pára-choque de caminhão. O fato de ter se transformado tão rapidamente num cult na Europa e nos EUA merece uma reflexão. Arriscamos uma hipótese sobre a grande aceitação do filme: ele mostra como a escolha pela droga é uma questão ética, trata-se menos duma fraqueza de espírito e mais de uma escolha por um destino possível.             

Os antropólogos, desde Mauss, usando uma expressão feliz deste, usam o conceito de “fato social total” para algumas manifestações onde simultaneamente as significações são de ordem social, moral, econômica, sentimental, religiosa, utilitária e mágica. Esse é o encanto do filme: resgata a dimensão da drogadição como um fato social total, enquanto nós vivemos querendo colocá-lo na estreita bitola que vai dum problema individual de saúde para um problema social de polícia.   

Precisamos enfrentar o fato de que entre as diversas opções de destino contemporâneas vigora com excelente cotação a opção pela vivência do gozo aqui e agora. Neste sentido, os caminhos a seguir na vida, numa época que cultuamos o ideal da liberdade, ficam submetidos a um impasse ético. É diferente da simples escolha entre o bem e o mal, entre o sagrado e o profano, entre o certo e o errado. O nosso impasse atual não envolve apenas a aprovação de nossos atos, importa que o que realizemos nos faça felizes. A felicidade como meta e parâmetro de nossos atos é o que melhor traduz essa busca que passamos a exigir de nossa vida. Esta é a novidade do impasse, o parâmetro autoreferido: o que posso fazer para proporcionar a felicidade a mim mesmo? Uma das maneiras (desesperada, dirão alguns) de se chegar a esse ideal autoreferido da felicidade pode ser traduzido pela droga. Pois, afinal, se trata de proporcionar-se satisfação, porque não fazê-lo pela via de um objeto que me permita este gozo solitário? Assim, a concha humana se fecha, na posse desta pérola mortífera que a droga é, e se submerge no fundo do mar enquanto o mundo em volta empalidece…

A felicidade como “dever” já está implícita na resposta standard dos pais modernos à clássica pergunta que os filhos lhes dirigem direta ou indiretamente: o que querem que eu seja? Indaga o filho, resposta standard: queremos que sejas feliz no que escolheres meu filho. Ora a felicidade não diz nada é intransitiva, feliz em que? Fazendo o que? Com quem? Silêncio… O filho deve achar seu próprio caminho interrogando seu desejo. Dentro de um ideal intransitivo do tipo “goze a vida como bem te aprouver” não vemos porque devemos estar tão alarmados por estarmos perdendo a guerra para as drogas.  Se não temos nenhuma transcendência a oferecer aos nossos filhos, somente o espetáculo da banalidade iluminado com os holofotes de uma felicidade publicitária, virtual, não há porque estranharmos estarem nossos adolescentes mergulhados no embalo narcísico da droga.

Na verdade, como bem mostrado por este filme, os motivos em nome dos quais postergar o reino dos céus são muito babacas. A lista de objetos e benesses da pacata vida burguesa quando feita pelo personagem na abertura do filme parece realmente algo perfeitamente dispensável. Assim, naquele primeiro momento, contemplando aquele personagem na plenitude de seu gozo onanista  absoluto e autosuficiente,  embalados pela maravilhosa trilha sonora, chegamos a pensar “porque não?”.  Afinal de que vale tanta batalha na vida?

Ficar à toa na vida, assim poderia ser traduzida a expressão “trainspotting”, ficar vendo passarem os trens. Essa é a opção que o viciado nos apresenta no início, não venho de nada nem vou a lugar nenhum, simplesmente estou sorvendo este prazer instantâneo e passageiro, que virá e partirá como os trens. 

Ao final do filme a mesmíssima lista de objetos em nome dos quais lutar, antes tão supérfluos e idiotas, parece algo extremamente desejável e soa como um acalanto. Ora, direis, basta mostrar o inferno das drogas, numa contraposição simples, pinçando seu aspecto destrutivo e contrapondo-o com a comodidade da vida trivial para produzir esse efeito! Mas não é esse o caso pois não existe no filme tal contraposição. Ao mundo das drogas contrapõe-se uma vida trivial das mais dispensáveis, coalhada de vícios legais. Os pais da personagem, fumam e bebem continuamente e consomem calmantes regularmente. A diferença entre um mundo e outro está na opção ética em que o consumo se insere. É por isso que o filme não sendo moralista tem uma eficácia moral como poucos.

A lista a que nos referimos na qual o personagem cita coisas em nome das quais ele não julga importante viver, a roupa de marca, o seguro dentário, o abridor de latas elétrico, cria de entrada uma equivalência entre os objetos de consumo e as drogas, é como se ele dissesse que entre este sob cujo efeito se deleitava, a heroína, e aqueles com os quais convencionalmente nos deleitamos, ele havia escolhido a droga. Se fosse possível filosofar em português diríamos que mais do que nunca acreditamos no feitiço dos objetos. Mas como a nossa língua não serve devemos dizer que os objetos de nossa época são fetichizados, usando em francês a palavra que eles tomaram do português.

A genialidade do filme reside no fato de que ele elucida o quanto nossa sociedade moderna é feita a partir de uma particular relação com objetos que nos emprestem uma identidade e uma fugaz satisfação. Diga-me o que consomes e eu te direi quem és. O toxicômano é apenas alguém que desistiu de interrogar obsessivamente o espelho na busca de finalmente encontrar alguma essência de seu ser ou de para quem ser ou ainda o que lhe falta. À fustigante interrogação sobre o que ser, o drogado interpõe com a absolutizante resposta de que isto não importa desde que se tenha o que se precisa, que é unicamente a droga. Ele pode não saber o que é mas sabe o que lhe falta. A droga não responde as nossas questões, simplesmente torna-as obsoletas. Identidade é problema de quem não encontrou o objeto “total” capaz de satisfazer seu desejo.

Não são poucos os problemas que se colocam para o jovem na  tentativa de abandonar a droga: a começar pelos dramas do amor e do sexo. Aliás neste ponto o filme é também único, pois qualquer um que se aproxime da questão da toxicomania sabe perfeitamente o quanto a droga e o sexo se excluem, quem se droga se basta, mas poucos filmes tratam disso, pois costumam confundir gozo sexual com o gozo toxicômano. Nem o maior pinto do mundo, como diz a moça numa das cenas iniciais poderia causar semelhante satisfação, pois o maior pinto do mundo virá necessariamente acompanhado de seu proprietário e aqui já temos alguém em cujo ser prescrutaremos o enigma de nossa própria existência: “bem me quer, mal me quer”.

Na tentativa de viver sem heroina, advém o infortunado encontro com as dificuldades de penetrar no território do amor, e por falar em territórios, temos sempre um ao qual pertencemos, um lugar de origem. É aí que o personagem descobre-se escocês, e pelo jeito, para ele, ser escocês é uma coisa meio enviezada, meio esdrúxula, algo como homens de uma valentia selvagem e saias, dragões e seres meio bárbaros afogados em whisky. A um brasileiro pode parecer bem compreensível essa vergonha de se ter uma nacionalidade. É justamente neste momento, quando a bela paisagem da escócia o confronta com uma questão dessa identidade, que ele decide voltar a se drogar.

Outra grande dentro do filme é o codinome do sujeito que abastecia e coordenava o pequeno grupo de viciados. Ele atendia pelo nome de “madre superiora”, numa alusão, consciente ou não, de que quando tínhamos esse grande expediente de eliminar a nossa inteligência, que era a força da religião, tamponando qualquer impasse com seus rituais hipnóticos de contemplação de uma força suprema, podíamos nos entregar em mãos de alguém que desse o rumo de nossa vida. Quando nossa religião passa a ser a posse dos pequenos objetos, dos adereços necessários às nossas fracas certezas, é natural que encontremos um homem que diga como uma mãe que não tem pressa em ver seu filho crescer: consuma agora, durma em meus braços, não há nada em nome de que lutar, você já tem aqui o que necessita. Só que em sendo uma madre superiora, é de uma religião que se trata, da religião do consumo. Com este giro, o filme insere a toxicomania não só na drogadição generalizada, legal e ilegal, como denuncia o caráter propriamente adicto com que consumimos. Em suma, somos dependentes do abridor de latas elétrico.

A medicina, se não é a única, seria quem dominaria o saber sobre os usos adequados das drogas. Vivemos agora uma certa ressaca do Prozac, recém nos demos conta que a fluoxetina não dá conta da promessa de felicidade química. Mas podem esperar que no máximo ano que vem chegará outra, essa sim, finalmente, resolverá com algumas drágeas a infelicidade humana. Para boa parte da medicina contemporânea a questão do acesso a um bem estar pode ser possível com algum medicamento, se ainda não é possível é por falta de pesquisa, logo ele virá. Se isto não for um discurso toxicômano, é o que então? Só não o seria porque os humanos que dormem e se agüentam embalados por valium, librium, lorax, dormix, pax, serenex, osgarmix o fazem a conselho de algum doutor? Ou seja, com licença social para afogar as angústias.  

Estamos acostumados a uma velha arenga, desenvolvida principalmente depois dos anos sessenta, de que as drogas seriam uma negação do sistema produtivo. Com elas buscaríamos o prazer pelo prazer sem se importar com mais nada. O mundo laboral seria um fardo que se possível dispensaríamos. Em resumo, Dionísio versus ética protestante. Usar drogas seria uma contestação ao estabelecido, ao sistema produtivo, a frivolidade da sociedade de consumo. Só faltava dizer, embora houvesse quem insinuasse, que tal consumo seria revolucionário. Tudo isso é no máximo uma meia verdade, se é certo que o drogado não se encaixa no sistema produtivo nem por isso ele escapa do horizonte do consumo, ou seja, da crença que há um objeto que consumido resolve nossas faltas. Dispensa a sociedade de consumo no varejo e se centra no atacado.

Houve quem quisesse censurar o filme por acreditar que ela fazia uma propaganda da droga. Tolice, a propaganda da droga está em todos os cantos. Basta ligar a TV, cada propaganda de qualquer produto não fala de outra coisa: existem objetos capazes de nos satisfazer. Alimentamos-nos de tal crença dia e noite, está em todos os lugares o tempo todo o mote que o caminho da felicidade pode passar pela aquisição de de tal ou qual objeto. Cada dia mais acreditamos que possa haver saídas que prescindam das trocas no campo do humano. Como diz a propaganda de um recém lançado perfume: “intimidade vai e vem, a única certeza é a solidão”. Os outros são complicados, porque não sozinho rodeado dos objetos certos? Como ninguém a droga vende a ilusão da auto-suficiência.

Assistimos ao longo de todo o filme a uma sucessão de atos de vandalismo, diferentes em sua essência do ato final que é um roubo, um roubo nervosamente planejado. O herói se pergunta as razões de seu ato, aliás o ato é uma espécie de queima de pontes com o passado, não vai dar para voltar atrás. É só nesse momento que pela primeira vez ele emite um juízo sobre si, descobre-se mau, não é um bom menino, mas pela primeira vez pensa em sê-lo. Aqui mais um lugar comum é quebrado, a conexão entre drogadição e delinqüência: a relação predatória com a sociedade do grupo de toxicômanos é diferente deste crime cometido, de forma consciente e planejada. O toxicômano que rouba para conseguir droga não faz registro da lei que transgride, apenas elimina obstáculos que se interpõe entre ele e seu objeto, a droga. O homem que rouba enfrenta um impasse, sabe da lei e resolve transgredi-la. Sabe dos riscos que corre. É neste momento que ele comete um roubo, ato que destrói suas relações possíveis com seu grupo, que ele faz algo sobre o qual pensar. É essa atividade reflexiva, pela qual ele pela primeira vez se pergunta algo, é justamente o momento de rompimento com a droga.

Em resumo: o sucesso do filme pode ser creditado a fato dele dizer tão cruamente, como ninguém o tem feito, que a droga é um subproduto inevitável da organização da sociedade de consumo. O filme faz esse elo, começa e fecha falando da opção do herói pela escolha de um tipo de vida, integrado ou marginal, escolha que passa por uma decisão de consumo, uma escolha entre objetos no grande supermercado da vida.

Publicado em 7 de setembro de 1996, no Caderno de Cultura do jornal Zero Hora, com o título de “A hóstia na Igreja do Consumo”

Publicado na Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – Psicanálise em Tempos de Violência- Número 12, ano VI, 1997

19/11/97 |
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Um Comentário
  1. Paola Prado permalink

    caracólis! esse foi o melhor texto que já li sobre este filme! muito bom mesmo! muito grande, mas mais perfeito que esta explicação, interpretação, não pode se encontrar. muito bom mesmo!

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