Um tempo de homens que amam as mulheres

Fora dos clichês do feminino, mas dentro da tradição do romance policial, Lisbeth Salander é uma vitória feminista.

Detetive mulher como ela, nunca foi vista. A soporífera Miss Marple deve estar furiosa em seu túmulo. Aliás, muitos diriam que ela sequer é feminina: destemida, franzina, tatuada e cheia de piercings, aparência andrógina, bissexual assumida, sempre em guarda, carente de empatia. A fragilidade de sua figura não sugere nenhuma delicadeza, Lisbeth Salander foge totalmente aos estereótipos do gênero. Mas sim, ela é mulher, de um tipo em expansão, levando o território do feminino e da novela policial por novas trilhas, seguidas com entusiasmo por um vasto público. Essa proeza é obra de um escritor sueco, Stieg Larsson, jornalista engajado, feminista convicto, que morreu cedo, sem saber do estrondoso sucesso de sua trilogia Millenium.

Depois dos milhões de exemplares vendidos em todo mundo e dos filmes suecos, chegou a vez de Hollywood mostrar sua versão da série. No que essa história tanto agrada? A trama é boa, o herói, o jornalista Mikael Blomkvist, é um sujeito incorruptível, interessado no bem comum, contra o capitalismo selvagem e as falcatruas que ocorrem nos cantos escuros. Estávamos carentes de bons heróis, com legítima preocupação social. Porém, acreditamos que é na personagem da jovem detetive Lisbeth que reside a novidade e o segredo cativante da história.

Os livros da trilogia buscam desvendar uma série de crimes, mas o verdadeiro desafio é descobrir a história da própria Lisbeth, a origem de seu heroísmo fora de esquadro. Dos ótimos filmes suecos (Niels Oplev, 2009, o primeiro nas locadoras), infelizmente só estreou no Brasil um episódio. Os americanos providenciaram um remake, como de hábito. No lugar do charmoso e nada bonito repórter do filme original, entra o galã Daniel Craig, questão de gosto.

Na história de Larsson, o repórter investigativo Blomkvist vive o pior momento de sua carreira após ter sido vencido pelos advogados de um magnata ignóbil, cuja corrupção havia denunciado. Pontos fracos de sua investigação viabilizaram essa derrota e a revista da qual era editor chefe também teve seu prestígio abalado. Sente-se desacreditado e está financeiramente quebrado. É então chamado por um velho milionário que o incumbe de investigar um desaparecimento, ocorrido há quatro décadas, de sua sobrinha predileta e herdeira.Um mistério que não queria morrer sem ver desvendado. Ressabiado, Mikael aceita a missão mas procura se alicerçar melhor, pois teme ver suas descobertas caírem novamente em descrédito. Para lhe proporcionar uma retaguarda técnica, uma agência de detetives lhe envia seu melhor homem: Lisbeth Salander, cuja aparição é sempre impactante.

Lisbeth é uma brilhante hacker profissional, fala pouco e intimida o interlocutor com seu olhar fuzilante. Miúda mas ágil como um ninja, une a milenar curiosidade feminina a uma mente objetiva e racional. Entre as mulheres da ficção popular, as poucas super-heroínas tendem a ter seus dotes associados aos atributos físicos, são voluptuosas como a ronronante Mulher Gato, a antiga Barbarella ou Lara Croft, nascida dos games.

Lisbeth é cerebral como Sherlock Holmes, misteriosa e poderosa como uma bruxa, mas sua mágica é terrena. Semelhante a Batman, outro herói sombrio, seus poderes são fruto da obstinação e da inteligência, assim como a motivação de ambos nasce de um grande ressentimento, o dela contra os homens que não sabem amar as mulheres. Poderia ter sido criada por Mary Shelley, pois como a criatura do Dr. Frankenstein torna-se vingativa por ter crescido desamparada num ambiente violento, no caso dela onde as mulheres são violadas e feridas, e assim como ele é feita de um apanhado de pedaços. Os fragmentos com que a criatura Lisbeth se monta provém do que outrora era exclusivo dos homens: é guerreira, estrategista, sedutora, prática e insensível sempre que necessário. Qualidades tradicionalmente masculinas, das quais uma mulher ao se apropriar acaba, ainda hoje, parecendo, a seu modo, monstruosa. O susto provocado pela imagem da detetive hacker provém do mesmo medo que levou as bruxas à fogueira: o poder feminino.

A mulher sempre foi temível por deter os segredos de alcova, calcanhar de Aquiles da grandeza dos seus homens. Os bastidores foram seu reino, seu poder provinha exclusivamente da vida privada, onde se oculta a verdade de cada um, uma essência que a imagem pública esconde com zelo. É por isso que todos, Freud inclusive, não cessam de se perguntar o que querem as mulheres. No apreço delas residiria o verdadeiro valor de cada um, por isso devem ser decifradas, conquistadas e subjugadas.

Lisbeth e Mikael confundem os clichês dos gêneros. A bissexualidade de Salander, tão em voga, é um poder cobiçado, como se os mistérios do sexo, que nos é sempre oposto, pudessem tornar-se finalmente acessíveis. Seduz mais do que é seduzida, enquanto seu par, o “Dom Juan” Blomkvist, é que sucumbe aos seus encantos. Ele é o parceiro perfeito da nova mulher: sabe ser paternal e cuidador, mas permite-se depender dela se necessário. Ele é ético, confiável e fiel como se espera de um grande amigo, sensual e respeitoso, nunca compete com elas, as ama, admira e jamais as submete. No contraponto desse homem ideal estão os crápulas, que nos romances da trilogia são numerosos, desprezíveis, sendo que o próprio Blomkvist já sofreu nas mãos de um deles.

A grande repercussão da série é reflexo da vitória do feminismo e da democracia enquanto ideais, pois a missão da dupla é o exorcismo da injustiça e do poder do homens maus, representantes do antigo pai despótico, ditatorial, do machismo que estupra e reprime. Ao longo da história, homens e mulheres lutaram juntos, mas apesar delas costumarem somar forças às grandes causas libertárias, as pautas feministas eram sistematicamente esquecidas. Elas foram freqüentemente traídas pelos seus companheiros de luta, deixadas para trás, queixosas. Pode ser que isso esteja acabando. Blomkvist e alguns homens de seu tempo estão com as mulheres, já não as temem tanto. O maniqueísmo do romance policial, como nos contos de fadas, nos tranquiliza com a vitória do bem. Neste caso, da dignidade das mulheres.

Publicado no caderno Cultura, jornal Zero Hora, em 11 de fevereiro de 2012

2 Comentários
  1. Andria Ortiz Rassweiler permalink

    Nossa… Eu sou muito fã deste filme, e depois desta leitura entendi um pouco mais meu apreço por ele.

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  1. Um tempo de homens que amam as mulheres « Carambolas Azuis

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