Um time muito doido ou doping ao avesso

Sobre um campeonato de futebol no hospital psiquiátrico

Eu uso óculos. Não tenho graves deficiências, a dificuldade vem da combinação de 2,5 graus de miopia com 1,5 de astigmatismo.

Nenhum rancor, já estou acostumado, mas quando criança não dava para jogar futebol.

Até dois metros, visão perfeita; três metros, as coisas começam a se confundir; cinco metros, é um nevoeiro pior do que partida no Alfredo Jaconi durante o inverno.

Como passava a bola errado ninguém me queria no time. Tentei ficar quieto debaixo das traves, o lugar em que a molecada aceita os pernas de pau – no meu caso olho de pau. Agravei o estigma: segurava os arremessos de perto, mas certas bolas vinham do além e eu só enxergava dentro da rede. Assistia aos gols de uma posição privilegiada.

Se eu nascesse de novo iria fazer a única coisa que penso que a vida me deve: jogar futebol com os amigos da rua.

Anos mais tarde tive minha experiência como treinador. Pensei em vingar a performance nos gramados, agarrei a chance com as duas pernas. Farejei um plantel diferente. Explico. Houve um campeonato interno no hospital psiquiátrico São Pedro: eu não estava internado, atuava como estagiário de psicologia. Coube-me treinar a divisão Melanie Klein onde passava a maior parte do tempo.

Conversava com os pacientes, identificava talentos e montei um time. Campanha vitoriosa, atropelamos os times das eliminatórias (Freud, Lacan, Jung) e nos classificamos para a final contra o pessoal da divisão de Tóxicos (na verdade, álcool e drogas).

Encontramos nosso limite. Perdemos e perdemos feio, mas saímos de cabeça erguida. O adversário era terrivelmente superior, ou ao menos parecia.

No outro dia, meu time estava desconsolado. Vazou uma informação pela enfermagem: o time dos tóxicos jogou dopado.

A mutreta foi assim: todos os pacientes recebiam medicação psiquiátrica e naquela época o Haldol (Halopiridol), um neuroléptico, representava o feijão-com-arroz das receitas, geralmente Haldol combinado a outro remédio. Pois bem, o adversário pediu aos médicos para dispensar a medicação na decisão. Todos sabem que o Haldol produzia como efeito colateral certa rigidez muscular, o corpo fica pesado e lento. Os supervisores aceitaram  a folga e o time jogou “dopado” por não tomar remédio.
 
Na época não encaminhei o caso a CBF, mas hoje me arrependo. Perdi a credibilidade com minha turma.

Meus pacientes estavam lá adoecidos, entre outras coisas, por não enxergar uma esperança nesse mundo, e acabaram ludibriados dentro do hospital que dizia cuidá-los.

Eu me sinto perseguido. Minha paranóia futebolística superou as falhas visuais da infância. Pelo menos, quem é paranóico não pode ser criticado pelo problema de visão. 

Publicado nos blogs Rolo Compressor e Terra do Nunca em julho de 2009

12/07/09 |
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