Uma autobiografia fora do armário

Sobre homossexualismo e a autobiografia de Alison Bechdel

 Alison Bechdel escreve com imagens. Em 2006, lançou “Fun Home”, sua autobiografia em quadrinhos, ganhadora do “Eisner Award”e publicada no Brasil pela Conrad. Não perca.

Ela cresceu numa família que guardava um segredo: o homossexualismo de seu pai, que era assumido na prática, embora disso não se falasse. Essa não era a única particularidade do pai dela. Ele era louco por casas antigas, reformava-as com paixão de antiquário, era culto, professor de literatura inglesa. Além disso, havia herdado a funerária da família, por isso o trocadilho com “Fun”, casa funerária, funesta, mas divertida.

Menina solitária que se veste de garoto, menstrua em silêncio e odeia seus peitos, Alison descobre cedo sua homossexualidade, mas também sobre isso nada se fala. Ela cresceu ajudando a construir o museu patriarcal, destino partilhado com uma mãe meio etérea e dois irmãos apagados. É seu pai, na obstinada tarefa de montar uma casa perfeita, em contraposição à sua sexualidade pouco convencional, que constitui a figura central do livro.

É da estranha vida dele, da dor pela sua morte precoce, da sua família que ela chamava de“Adams”, que ela tira o material não só para seu lesbianismo, mas também para sua arte. Seria balela simplória dizer que alguém se tornou gay porque o pai era um homossexual enrustido, ou que é artista porque os pais sacrificaram sua criatividade em prol da vida familiar. A vida dos filhos não é uma conseqüência direta das pendências dos pais. De fato, herdamos missões, sinas e segredos, mas o que fazemos com eles é pessoal, intransferível e, principalmente, imprevisível.

Alison acha que o pai, Bruce Bechdel, só constituiu uma família por falta de coragem de se assumir, e que a mãe afogou seu talento de atriz novaiorquina na chatice da maternidade interiorana. Porém, quando ela se assume lésbica e comunica isso à família, seu pai lhe escreve: “tomar partido é um tanto quanto heróico, e eu não sou um herói. Será que vale mesmo a pena?”. Talvez os três filhos e a casa-monumento não fossem uma máscara para a sexualidade oculta, mas a obra de sua vida. Já que, no fim das contas, ele viveu como quis ou como pôde. Bruce é uma figura rica e complexa, cuja memória a filha restaurou com o apuro artístico que ele dedicava às casas velhas.

Todo mundo adora falar de traumas. Sempre que algo foge do padrão tradição-família-propriedade, como o homossexualismo, fica-se procurando um culpado. Psicologia barata! A vida não é como um daqueles jogos de sete erros nos quais há coisas na imagem que estão fora de lugar e devem ser assinaladas. Talvez essa família diferente tenha sido muito menos maluca do que várias outras, apagadas e convencionais, das quais não há nenhuma história para contar. A vida sexual de todo mundo tem algum armário; nele guardamos os trajes com os quais nos achamos atraentes e com os quais adornamos aqueles que nos apetecem. Desse móvel também saem bebês. Você não sabia?

01/03/08 |
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