Uma escuta censurada

Sobre o afastamento da colunista Maria Rita Kehl do Estadão

A psicanalista Maria Rita Kehl foi afastada da sua coluna no Estadão, numa atitude motivada por um texto que discordava da linha do jornal. Claro que o jornal dá uma outra versão, que só aprofunda o nonsense, pois trata-se do mesmo jornal que reclama estar sendo censurado pela justiça num caso que envolve a família Sarney. A imprensa sempre foi parcial, mas desta vez ela descaradamente quer ser protagonista do momento político. O jornal exigia que ela se ativesse a “assuntos psicanalíticos”, abstendo-se de qualquer leitura da realidade social, furtando-se a fazer uma interpretação do mundo em que ela vive, pediu-lhe que se restringisse a um limbo teórico, provavelmente ocupando-se de assuntos domésticos ou íntimos. Só faltou dizer que lugar de psicanalista é entre a cama e a cozinha.

Fazia tempo que a temperatura política não subia tanto e nessa eleição presidencial vem se revelando posições ideológicas que estavam abafadas. A agressividade reinante pede uma explicação, ou ao menos uma hipótese: acreditamos que a demissão da nossa colega e associada pode nos fornecer uma pista. Provavelmente, o motivo de tanta fúria, a mesma que anda na rua, na internet, na imprensa, é o desassossego sobre qual o lugar de cada um no novo momento que o país vive. O crescimento do Brasil nos últimos anos fez surgir emergentes vindos da classe C e D, e isso mexe com todos. Esse era um dos assuntos do texto que Maria Rita escreveu e provavelmente por ter tocado no ponto certo é que provocou tanta polêmica.

Existe uma classe média que se sente traída, a mesma que ontem ajudou no nascimento do PT, hoje se sente abandonada. Essa classe também cresceu, mas menos em comparação com as outras. Os reluzentes bens de consumo que ostentavam sua potência, hoje são parcelados em várias vezes para qualquer um comprar. Os outros mecanismos de reconhecimento dessa classe, geralmente intelectuais e culturais, estão em franco desuso, mas não e só um caso brasileiro. Já não serve ser doutor, ter estudado muito, isso não já garante um bom emprego. A preguiçosa classe dominante brasileira vê surgir um bocado de gente com menos cultura que ela, com menos berço, mas mais disposta a pegar com as duas mãos as vagas dos postos de trabalho. Além disso, há muitos novos membros no já nada seleto grupo dos emergentes que angariam prestígio social. O impulso de crescer e sair duma condição social desfavorecida é uma fonte de energia muito diferente daquela necessária para aqueles que só querem ficar onde estão e é isso que é intuitivamente percebido e provoca tanta fúria, é como quando um irmãozinho vem chegando. Os emergentes são como os imigrantes, que sempre são odiados, pois trabalham mais para construir seu espaço e com isso desacomodam os nativos.

Resta questão do que seria um assunto próprio para um psicanalista, o qual deveria ater-se a assuntos caseiros, restritos ao indivíduo e seu cotidiano, sem jamais generalizar em nenhum aspecto que não coubesse numa revista feminina. Esse é o lugar de domesticação que querem reservar aos psicanalistas na mídia, a de intérpretes de comportamentos amorosos e familiares, no máximo sendo-nos permitidos vôos no que diz respeito às identidades sexuais e à violência. Sem desprezo por esses temas, que de fato são nosso feijão com arroz, a impossibilidade de transcendê-los seria um filtro impossível, uma surdez incompatível com a escuta. Sabe-se, a condição para a escuta é que ela não fique restrita ao imaginário do analista, às suas limitações neuróticas e preconceitos. Nesse sentido, não há como um psicanalista “restringir-se à psicanálise”, pois a escuta não é restringível, ela é uma disponibilidade a priori. Maria Rita escutou algo que estava sendo dito e aqueles que se sentiram interpretados por isso reagiram negativamente. Isso não é nada que qualquer psicanalista não tenha passado, mas misturado com poder torna-se puro autoritarismo, aquele que julgávamos superado. Da nossa parte, enquanto membros da sua associação analítica, só podemos reconhecer a coerência de sua posição. Não, senhores do Estadão, Maria Rita não estava sendo pouco psicanalista quando escreveu seu texto que vocês julgaram político, ela estava sendo sim, e muito!

10/10/10 |
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Um Comentário
  1. O próprio texto já diz o que penso, também. _”os emergentes são como os imigrantes, que sempre são odiados (eu diria, quase sempre; essa é a diferença),pois trabalham mais para construir seu espaço e com isso desacomodam os nativos.

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