Infância e Adolescência
Exibir por:

Joelho ralado

quando precisam de nós uma acolhida, todo mundo é mãe

Certa vez me contaram uma cena infantil que nunca esqueci: um menininho caiu e, na ausência da mãe, sentou-se em um banquinho em frente à porta à sua espera; quando ela finalmente chegou ele começou a chorar mostrando o joelho ralado, como se aquilo tivesse acabado de acontecer. O consolo dela era imprescindível, não importando o tempo que tivesse que ser aguardado. Lembro dessa cena porque acredito que nossa tristeza precisa de alguém para acolhê-la.
Mesmo crescidos, estaremos dispostos a esperar para dedicar as lágrimas a quem possa recebê-las. É claro que também choramos sozinhos, nem todas nossas tristezas precisam de testemunho, mas há aquelas que são insuportáveis. A orfandade não é só a morte dos pais, é acionada e reeditada a cada vez que perdermos a esperança de que essa porta se abra.
Somos seres bastante queixosos, por vezes só queremos plateia, a dificuldade é saber quando necessitamos realmente uns dos outros, diferenciar uma cena em busca de plateia da dor precisando de acolhida. As mães de crianças pequenas têm um truque: quando os filhos caem, elas fingem não ter visto. O pequeno confere se ela está atenta, se o dano é insignificante e não há público, provavelmente irão fazer outra coisa mais interessante. É uma espécie de “teste da manha”, já que se for grave o sofrimento será expressado independente do ibope.
Crianças que estão sentindo-se inseguras e frágeis farão cenas trágicas, exigindo a presença da mãe por coisas nímias: o brinquedinho caiu, rios de lágrimas, hora de ir para a cama, gritaria. Nesse caso elas lamentam algo desligado do incidente, expressam uma angústia que está por um fio para desbordar. Não é manha, é sofrimento psíquico. Provavelmente o verdadeiro motivo sejam fantasias de abandono, ameaças imaginárias de privações ou terrores que as têm acuadas. Como temos uma nostalgia idealizada dos cuidados maternos, cujo aconchego seguimos buscando em todas as relações, talvez haja algo que possamos aprender a partir dessas cenas.
Por vezes, nosso joelho ralado é banal, já sacudimos a poeira e estamos orgulhosos da superação, só queremos contar a proeza. Mas há outras em que o olhar atento perceberá que é sério, está doendo muito, quer seja porque a pancada foi forte, ou mesmo porque um pequeno incidente despertou grandes mágoas represadas. Só a escuta atenta descobrirá o calibre do que nos abala. Vínculos capazes dessa delicadeza são raros e preciosos. Só podem ser oferecidos por aqueles que não têm medo do contágio, pois é preciso baixar as defesas para oferecer uma verdadeira empatia.
Como as mães, aqueles que se importam conosco fingem distrair-se, desejando que a queda seja boba, mas terão que abrir sua porta quando nossas lágrimas precisarem deles. A metáfora da porta aberta aqui não é banal: dar entrada à dor do outro provavelmente despertará nossas próprias fragilidades e desesperanças. Acolher nosso desamparo é coisa para poucos em nossa vida: os que estiverem dispostos a lidar com o próprio. Convém não esquecer de que precisamos maternar-nos uns aos outros, com a sutileza de diferenciar a manha da dor.

Caminhantes noturnos

Quando ficamos grandes os monstros de debaixo da cama mudam-se para dentro de nossas cabeças e ainda dão medo.É bom lembrar dos antigos medos pra acolher com empatia os pequenos caminhantes noturnos apavorados.

Por que as crianças vão para a cama dos pais e eles não conseguem tirá-las de lá? Essa pergunta é repetida à exaustão, inclusive por casais envergonhados desse pecado. Entre as explicações, há uma que pode lhes aliviar a culpa: à noite todos sentimos medo e os pais se identificam com a ansiedade demonstrada pelos seus pequenos.
Nunca esqueci dos terrores noturnos que vivi na infância, das artimanhas tentado acordar meus pais, desde choros propositalmente audíveis, percussões na parede, até visitas noturnas à sua porta, onde nem sempre tinha coragem de bater. Houve uma fase em que tinha pânico de um calendário que ficava no corredor visível do meu quarto. Brinde de uma loja de tintas, sua imagem abstrata mostrava somente cores misturadas formando belos (de dia) conjuntos. Naquela mancha colorida, mal iluminada pela luz da rua, eu projetava faces, olhos, narizes. Meus monstros tinham caras humanas. Paralisada pelo que enxergava naquele borrão, eu mal ousava colocar um dedinho para fora das cobertas. Além do mais havia o terrível e enigmático espaço embaixo da cama. Imagine a coragem necessária para descer e mover-se até o quarto dos pais pedindo socorro.
A cama de uma criança apavorada é como um barquinho rodeado de tubarões. Alguns desses pequenos marujos ainda dão-se ao trabalho de lançar-se às trevas levando consigo seu brinquedo preferido. Partir e deixar para trás seu urso de estimação seria uma covardia, além do que ele é um companheiro imprescindível na travessia. Levei um bocado de tempo até conseguir dizer à minha mãe que tinha medo do calendário, que foi imediatamente removido. Obviamente para ser substituído por outro abrigo de monstros: como um cabideiro, ou a porta entreaberta de um armário.
Os pais acodem aos filhos aterrorizados em seus quartos ou acolhem os visitantes noturnos em suas camas porque lembram disso. É duro ser rigoroso com quem está em pânico. Some-se a isso que para os pequenos, assim como ocorre até para os adultos quando estão assustados, é difícil diferenciar entre o que se sonhou ou pensou e a realidade
A noite não é fácil para ninguém, em época alguma da vida. É claro que dormir pode e deve ser repousante. Só que por vezes, frequentes para alguns, raras para outros, mas conhecidas por todos, os olhos insistem em encontrar seus monstros na escuridão. Essas criaturas vivem de tocaia, se convidadas pela imaginação, se lançarão sobre nós.
Depois que crescemos já deu para entender que essas coisas são imaginação e a noite uma tela em que se projetam nossos fantasmas. É como no cinema e no teatro: a luz se apaga para que a fantasia se acenda. Há noites que são uma batalha contra aquelas ideias que gritam em silêncio, do tipo que se mastiga sem conseguir engolir. Elas são os monstros favoritos dos crescidos.
Acredito que as tantas vezes em que não me acudiram forjaram a pouca coragem que tenho. Por outro lado, os aconchegos que recebi ensinaram-me a confiar, a continuar procurando-o nos braços de quem aprendi a amar.
Aliás, por que quando somos pequenos e assustados temos que dormir sozinhos e depois de grandes e fortes podemos partilhar o leito com alguém? Pensando bem essa é uma das maiores injustiças da humanidade.

História antes de dormir para minha neta

Brincando de contar uma história pra gente grande como se pequena fosse…

Havia uma vez um pequenino planeta na borda do sistema solar. Nem nome ele tinha. Só ganhou um em 1930. Foi chamado de Plutão. Ficou muito feliz.
Além de receber o nome do deus da riqueza e dos mortos romanos, ele foi convidado para fazer parte da elite do nosso sistema solar.
– Ester: ele tinha príncipe, baobás e vulcões?
Não, querida. Não tinha nada lá. Mesmo assim Plutão tornou-se o nono planeta do nosso sistema. Passou a fazer parte das maquetes, dos mapas, dos esqueminhas de lembrar os nomes dos planetas.
Todos os estudantes o conheciam. Por isso vivia cheio de orgulho.
Porém, num triste dia de 2006, foi desclassificado da categoria planeta.
Aconteceu que descobriram que um de seus supostos satélites, chamado Caronte, tem uma massa quase tão grande quanto ele.
Portanto ele não o orbita e sim os dois dançam juntos ao redor de um ponto externo no espaço.
Por isso, foi retirado da serie A e foi para a serie B, junto com outros planetas anões do cinturão de Kuiper.
Aliás, para arrematar a humilhação, também descobriu-se que existe um outro planeta anão maior do que Plutão chamado Éris.
Foi nesse momento que o planetinha veio me pedir conselhos profissionais.
– Ester: por que você vovô?
Por que é quem eles podiam pagar. Sabe como é, planeta pequeno, poucos recurso, sem lobby influente.
Só restava um psicanalista de um pais periférico com moeda desvalorizada.
– Ester: ele estava triste vovô?
Muito, não parava de chorar.
Dizia que ele estava quieto no seu canto – quer dizer, na sua raia orbital, afinal espaço não tem canto – e que nunca pediu nada para ninguém.
Então o encheram de honrarias, o convidaram para um clube maravilhoso, e depois, o mandaram embora.
– Ester: não é justo mesmo. Você foi até lá ou ele veio no consultório?
Era pandemia, teve que ser atendimento virtual.
– Ester: O que você disse?
Disse que ele devia nos perdoar.
Nós humanos o tratamos como nós somos.
Temos vida curta, nossa fama é transitória e finita.
Disse também que sofrer por hierarquia é coisa de humanos, que ele devia voltar para sua postura cósmica de indiferença planetóide.
Sabe Ester, infelizmente não percebemos que um astro não pode ser tratado com a nossa régua.
Acrescentei também que ele estava errado quando dizia que seria melhor que isso nunca tivesse acontecido.
É sempre melhor uma boa experiência momentânea, do que nenhuma.
Que ele conheceu a insana vaidade humana e agora sabe que ela traz nada de bom.
Além disso, que nada é para sempre, até o Sol, que ele reverencia orbitando, um dia vai apagar.
– Ester: Vovô, não gostei! Eu diria pra ele que um dia pegamos um foguete e plantamos baobás, que é árvore mais linda que tem. Daí só o planeta África, o B612 e Plutão terão baobás e ele será feliz outra vez.

PS: A propósito, Minha neta é imaginária, mas a saudade da infância das minhas filhas é real…

Olhos reclusos, imaginação que voa.

Vale a pena nunca esquecer que a capacidade de enxergar o encanto independe do movimento do corpo

No filme de Cortina de fumaça (1995), escrito e co-dirigido por Paul Auster, há um personagem, representado por Harvey Keitel, que é o dono de uma pequena tabacaria de bairro. Ele tem por hábito fotografar diariamente sua própria esquina, sempre na mesma hora e desde a mesma perspectiva, sem jamais falhar, ao longo de mais de 10 anos. Guarda essas imagens em álbuns, que registram as variações da constância.
Os lugares são como um rio, que nunca seria o mesmo pois as águas que contemplamos já estão de passagem. A paisagem também flui. Nas fotos desses álbuns revelam-se os detalhes sutis, somente perceptíveis aos conhecedores do cenário. Na contramão do olhar habituado, que no mesmo enxerga somente isso, neste caso a curiosidade se preserva.
Quando viajamos, contemplamos muito mais enigmas do que o cérebro tem condições de catalogar. Tampouco adianta fotografar, tive uma paciente que ao voltar de uma viagem, dessas excursões estilo sobe e desce de ônibus, trouxe para a sessão seu álbum de fotos (na época usava-se isso); indaguei sobre uma daquelas imagens e ela ignorava o que era. A explicação soava engraçada: “fotografei para olhar depois”. Quantas vezes fotografamos tentando reter algo do que nos escapa naquele excesso? Vã ilusão. O olhar do viajante é como o das crianças que em geral não decodifica a situação e não raro entende tudo errado.
História oposta é a da minha avó com sua janela que se abria para uma escola secundária. Já muito idosa, teve seus movimentos restritos, o que era bem difícil para uma senhora rueira. Pelo menos ela nunca perdia o espetáculo da hora da saída do colégio, pois já conhecia os jovens, os agrupamentos, os namoros. Para vários deles já tinha uma história em sua cabeça e inclusive algum apelido. Quando a visitava ela me chamava para partilhar seu hábito, me apresentava suas versões para aquelas vidas desconhecidas que faziam sua literatura visual.
A vantagem é que não há lugar imune à diversão dos olhos. Que o digam os antigos, os quais raramente se distanciavam do lugar onde haviam nascido. Conheciam seu território com uma intimidade que hoje ignoramos, o que é uma perda para nós. Todos gostam de exibir-se contando viagens incríveis, de preferência a territórios exóticos, gabando-se de ter ido onde os interlocutores não foram. Dependendo da prosa do viajante, uma simples passagem pela mais parte mais descarnada e periférica de uma cidade, se bem contada, pode render uma história bem mais interessante do que uma excursão à selva africana. Esta última pode ser até, acredite, soporífera.
Vale a pena nunca esquecer que a capacidade de enxergar o encanto independe do movimento do corpo, transcende a paisagem propriamente dita. Sempre teremos um ponto de vista, como o dono da tabacaria de Auster, desde onde o que poderia parecer igual tem chance de nos surpreender. A vida é uma história, nosso cérebro é um cineasta, os olhos a câmera, mas o pensamento tem que ser um diretor sensível. Da minha janela vê-se a cúpula de uma igreja visitada por pombas e gaviões.

A terra estrangeira dos bebês

Na maternidade real, sabedorias e preparos têm imites: cada bebê é um novo mundo a descobrir.

Mesmo depois de meses de preparo, chegamos estrangeiras ao território da maternidade. Sem mapa, muito menos GPS, olhamos nossos recém nascidos assustadas, mas também embevecidas Um bebê nasce no parto, mas sua mãe não. Por sorte, a intuição dá a largada, pois amor não é instantâneo, mas o apaixonamento sim. A paixão, que é o cordão umbilical do lado de fora, é intensa, irracional.
A maternidade real é muito diferente da que fantasiamos. Uma mãe não precisaria ser suave, altiva, dadivosa, adulta, ponderada, adequada? Onde está essa mãe? Certamente não sou eu, pensa qualquer puérpera novata.
As paixões servem como faísca, mas são fugazes, não garantem a fogueira que aquece, cozinha e salva. Só o amor perdura. Ele arde lentamente, pena que é demorado, chega montado numa tartaruga. Amor é filigrana, é decifrar, descobrir, acalmar-se, perder o medo do outro, respirar fundo. É acampar no desconhecido, desmanchar as malas e aprender uma nova língua. É assim com os amores duradouros, com a intimidade do erotismo, com as amizades e, principalmente, com os filhos. Cada maternidade é uma nova aventura e ter mais de um filho é habitar terras diversas ao mesmo tempo, como um poliglota, e diplomata. Foi assim com minhas duas meninas.
Uma era do outono, mas parecia ser de inverno; a outra, era da primavera, mas parecia ser de verão. Extremistas, elas. Uma sentia muito frio, adorava roupa, aconchego, ronronava. A outra fervia, só o calor a tirava do sério, nudista precoce, bastava a liberdade da pele para deixá-la de bom humor. Eram assim, minhas duas bebês.
Na nossa intimidade, uma disciplinava meu corpo junto ao seu, era ela que nos coreografava com graça e delicadeza. A outra fabricava encaixes perfeitos, sem roteiro. Ela jogava-se em meus braços, trapezista, voava além quando queria.
É como se elas fossem ao contrário, a que sentia muito frio pedia distâncias. Queria proteção garantida, mas regrada, queria calor, mas lento, sem labaredas. A que era fogosa colava, usava minha pele de sua, vestia e desvestia nossos encontros, como quem se liga na tomada, bateria cheia e segue adiante.
A primeira me ensinou que a previsibilidade é o que mais protege, saber com o que se conta, são as rotinas que mantêm a vitalidade do corpo. Frente ao frio da alma, o antídoto dos nossos ritos, que ela ia cuidadosamente criando em mim. Mamava lentamente, com pausas de descanso, digeria o alimento do nosso amor sem pressa. Ensinou-me a paciência de contemplá-la longamente, logo eu que sou tão agitada.
Fomos nos tornando calmamente previsíveis uma para a outra. Ela tem razão: já dizia Winnicott, em uma referência bibliográfica que jamais reencontrei, que a rotina é a herdeira dos cuidados maternos primários. Ela sempre prezou a independência e queria desde cedo tomar para si a autonomia dos consolos. Minha sorte é que são muitos os abismos da vida, requerem infinitos ferrolhos. Faço questão que ela os encontre também em mim. Por isso continuo tendo chance de acolhê-la, e pretendo manter isso até o fim.
A segunda, a que emanava calor, preferia os encaixes, nos quais rapidamente se abastecia, podia até adormecer neles, mas suava excessos. Parecia suportar melhor o descontrole, mamava rápido e intensamente, logo, cabelinhos molhados de suor, partia para a conversa. Dava discursos completos antes de que pudesse anotar na minha memória seus primeiros balbucios. Ela não tinha paciência de esperar que os lentos adultos não a entendessem. Caminhou sem engatinhar, antes que tivéssemos tempo de organizar seu primeiro aniversário, tinha pressa de ver e tocar sem esperar que a levássemos. Quando cansava de tanta aventura, era capaz de aninhar-se como ninguém, nos abandonávamos uma na outra. Hoje ainda fazemos isso, falando atropeladamente, juntas e diversas, fabricamos sínteses muito maiores do que cada uma por si.
Uma desabrochava de dia, recolhia-se com o sol, aproveitava a jornada do sol, seus passeios iam de flor em flor, de amoras a pitangas, conhecia os roteiros botânicos da vizinhança e os donos de cada jardim. A outra foi notívaga desde que nasceu, seus roteiros diurnos a levavam a conversar com os animais do bairro, encantava-os sem medo, as feras sucumbiam a seus pés.
A bebê suave tinha pesadelos intensos, gostava da sua cama, mas nos convocava constantemente. Ela era como aqueles guardas noturnos, que percorrem os corredores e espaços desérticos de que cuidam, tendo que marcar um cartão ponto em lugares, para garantir que estão vigilantes, em movimento. Nos chamava, seguido, requeria consolo, canções de ninar, carícias suaves, calmamente adormecia novamente. Até o próximo monstro. Havia muitos em seu quarto.
A bebê intensa tinha noites tranquilas, a seu modo. Gostava de vivenciar suas noites, brincava sozinha, antes das primeiras letras contava-se histórias com livrinhos no colo, lia do seu jeito. Ela não sentia muito medo. Mas, ioiô que era, essa autonomia também tinha prazo. Acabada sua farra noturna, seu destino era aninhar-se conosco. Como aqueles gatos, que após as noites pelos telhados assumem a cama dos seus humanos como própria. Depois de um tempo desistimos de leva-la de volta.
Se mais filhos tivesse, teria mais diversas histórias para contar. Cada mãe, cada bebê, um encontro peculiar. Conselhos de como cuidar e criar os filhos ajudam, muito. Mas as regras são tão ímpares que praticamente considero cada maternidade como o encontro com uma cultura diferente, cuja linguagem temos que aprender a falar.
Das minhas experiências como mãe, a única lição que posso transmitir é que cada filho tem que ser descoberto. Mulheres cobram-se muito em todos os campos, mas é na maternidade que somos mais inclementes. Com as outras e com nós mesmas. Carregamos o fardo histórico da sacralização da maternidade, da culpabilização das mães por qualquer percalço na vida dos filhos. Queria contar que nunca estamos preparadas, nunca seremos especialistas genéricas. Carregamos alguns dons no corpo, outros herdamos de centenas de anos de devoção exclusiva. Porém, essas facilidades não ajudam se transformadas em perfeccionismo, se movidas a cobranças.
Lembro de uma jovem amiga que já havia iniciado uma jornada de culpabilização materna maior do que o volume do seu ventre. Maternidade e culpa nascem juntas. O motivo das auto recriminações que se fazia era que estava despreparada. Seu envolvimento com a gestação foi considerado, por algumas mulheres que lhe eram próximas, como tardio. Ela demorou para apaixonar-se pela filha mais do que o prescrito nos blogs, sites e portais de maternidade. Até a metade da gravidez pensava mais no trabalho do que na bebê, o futuro quarto dela permanecia escritório, estava atrasada com o enxoval e não buscava muita informação na internet.
Apesar disso, sentia que ia acabar entendendo-se com sua filha. Era uma mulher muito corajosa, estudou e trabalhou por muitos anos em diversos lugares e línguas, movia-se pelo mundo sem grandes planejamentos e certezas. Amadurecida e calejada, voltou ao país de origem para assentar-se, trazendo na bagagem a confiança em sua capacidade de adaptação. Já que sempre acabou sentindo-se em casa nos tantos lugares que vivenciou, por que a viagem da maternidade teria que ser tão diferente?
Acreditava no encontro que ambas teriam, justamente por ser uma mãe poliglota e porque cada bebê chega falando sua língua. A diferença entre os marinheiros de primeira viagem e os mais experientes não está nas certezas, mas sim na capacidade de suportar o desconhecimento, a desorientação inicial.
Ler e escutar cada bebê como se fosse uma língua que se quer muito aprender, tocá-lo como se fosse uma cidade nova cujo mapa quer se conhecer, requer entrega. Prever e planejar tudo, sem deixar lugar para o improviso e para a surpresa, vai na direção contrária.
Esperar que no estrangeiro não se padeça com as estranhezas, é coisa de quem só viaja em excursão e olha o que lhe mandam ver. Uma mãe capaz de lidar com as surpresas nunca será uma novata. A capacidade de entregar-se ao que é novo e diferente é o único item essencial na mala que levamos para a maternidade. Aliás, não é por acaso que vai-se para o parto levando uma mala.

Por que tantos peregrinaram ao ônibus da história “Na natureza selvagem”?

Qual o fascínio para os adolescentes da jornada de Chris ao Alaska?

O ônibus de “Na natureza selvagem” não está mais na natureza selvagem.
Recentemente, um helicóptero da Guarda Nacional do Exército do Alasca removeu o lendário ônibus onde Christopher McCandless encontrou o triste fim da sua jornada de filosofias e aventuras. O local tornara-se meca de perigosas peregrinações, de pessoas identificadas com sua história. Foram tantos os extraviados, resgatados com dificuldade, tendo havido inclusive casos de óbito, que as autoridades tiveram que remover esse “monumento”. O que foram tantos procurar em meio à inóspita paisagem alasquiana? Em nosso livro, “Adolescência em cartaz” dedicamos um capítulo a esse personagem, que existiu na realidade e tornou-se uma das grandes fantasias sobre a juventude. Abaixo, alguns excertos:

“Os alasquianos habitam um território no extremo dos Estados Unidos que, pela sua beleza e natureza hostil, desperta a imaginação de pessoas de outras regiões. Eles estão habituados à aparição de peregrinos e Christopher McCandless, um rapaz de 24 anos, oriundo de uma família classe média alta de Annandale, Virginia, foi mais um deles. Eles os vêm com certo desprezo, como assombrações que insistem em passar por ali, impulsionados por fantasias a respeito de si e do lugar e assim os descrevem: ‘jovens idealistas, cheios de energia, que se superestimaram, subestimaram a região e acabaram em dificuldade (…) há um bocado desses tipos perambulando pelo estado, tão parecidos que são quase um clichê coletivo.’”(…)

A região atrai todo tipo de aventureiro, em geral jovens, submetendo-se à rudeza da experiência como rito de passagem. A fibra necessária para enfrentar tal provação, os sofrimentos físicos e a superação dos medos, a solidão em que em geral essas viagens são feitas, se justificam na expectativa de consolidar uma identidade e de corroborar um valor que eles próprios possam acreditar que têm. (…)

“Vale questionar-se sobre as razões de por que a trajetória desse rapaz tenha se tornado livro, filme, motivo de debates acalorados, assim como inspirador de identificação entre aqueles que sequer gostam de aventuras na natureza radicais na natureza. Apesar de seus desejos eremitas, o autonomeado Alex era um entusiasta contador de sua própria história e de seus ideais, deixou suas andanças documentadas, além de comentários sobre as fontes literárias em que fundamentava suas crenças. A última aventura, por ser desastrada e dramática, tomou o centro da narrativa e o ângulo pelo qual o enxergamos, mas ele foi muito mais do que isso. Sua morte trágica, por inanição no Alasca, nos legou uma coleção de enigmas. Enigmais e pistas a respeito de como teria sido o encontro do jovem com a natureza e a morte. Sua tragédia real, fortemente inspirada na literatura avizinhou-se da poesia. Por isso os escritor Krakauer, o cineasta Sean Pen e neste momento nós também, assim como tantos outros, seguimos ocupando-nos dessa história, que se tornou mítica.
São poucos os que têm coragem de fazer a experiência radical de largar a vida comum e sair ao encontro da aventura, principalmente hoje, em que há uma enorme adesão a uma vida reclusa onde pode-se viver experiências meramente virtuais. Muitos desses jovens acomodados sonham com os verdadeiros riscos e as genuínas vivências de quem abriu mão de todas as comodidades e da segurança por opção, e não em nome de uma causa ou missão, ou ainda por ter sido convocado.
O sucesso do livro não é outra coisa que combustível para essa fantasia – e isso nos revela o desejo de fuga como uma das dimensões da adolescência. Na prática pode ser a migração para outra geografia, para outra cultura, mas, em muitos casos, como neste, para fora da cultura propriamente dita, como se a natureza o fosse purificar da sua história, como se ela fosse a única alteridade respeitável. Esta é a dramática história de um jovem buscando refundar-se com o mínimo apoio possível, longe de tudo e de todos.” (…)
“O interessante em estar na estrada é viver sem rumo, o que importa é o meio não o fim, não se vai a lugar algum, apenas se vai. Talvez possa ser lido como uma colocação em ato de uma das grandes questões dessa fase: como não sabem para onde ir, o caminho se faz ao andar. Assim vivem um eterno presente, esquivando-se da pergunta que ronda: o que vais fazer da tua vida? A pergunta é simples, singela, mas para muitos ela abre uma porta de pavor, sentem-se incapazes de responder e, imaturos demais para as exigências do mundo. Fogem da questão e de quem eles supõe que a fariam.
A tarefa de tornar-se alguém começa com uma incontornável alienação à história familiar, mesmo que os pais tentem ser democráticos. Subjetivação e sujeição se confundem, parecem o mesmo movimento. Tomar nas próprias mãos o resultado do que fizeram conosco e fazer algo peculiar, é a tarefa que cabe à adolescência desde que o individualismo tornou-se dominante. A revolta contra essa marca primeira de dependência, que tinge-se de uma espécie de mágoa por ter sido submetido a eles, volta com toda força nessa idade. Na verdade, eis a fonte daquilo que os adultos estão sempre denunciando como uma ingratidão dos mais jovens: deveriam reconhecer que quando eram desamparados seus cuidadores lhes dispensaram tudo o que precisaram para crescer. Porém, infelizmente, a gratidão nesse caso viria com o preço de continuar preso dentro de casa, agora pagando a conta. É por isso que os adolescentes não sentem como legítimos os pilares em que se sustentam, precisam relativizá-los, questioná-los e fantasiar uma espécie de auto-fundação.
Sua questão é como trocar os próprios fundamentos sem que a casa venha abaixo. É uma operação complexa, que exige livrar-se dos pais da infância, na tentativa de abafar suas reais ou supostas exigências. É preciso matá-los simbolicamente e sair vivo da empreitada. Fugir de casa ou partir e deixar de dar e receber notícias é uma das tantas maneiras de desfazer-se dos pais. Essa é a escolha de Alex. Por isso, no caso dele, como no de tantas outras fugas de casa, o sofrimento dos pais não é considerado. É quase como se eles nunca tivessem existido, o propósito é exatamente esse. Com a maior parte das pessoas que Alex interage durante suas andanças repete o ciclo, encontra, faz um vínculo forte e parte sem dar adeus, sem que o outro possa proferir sequer uma palavra de despedida. Mais que ir embora, ele sumia, essa era sua marca.”(…)
“Antes de pensar o que o pôs a correr de seu habitat de origem, convém entendermos melhor em que direção apontava seu desejo. O andarilho Alex foi admirado não somente pela ousadia do seu desprendimento, mas sim pelo fato de que durante aqueles dois anos construiu uma existência coerente com seu pensamento romântico radical e morreu em consequência disso. Ele é visto como se fosse o herói de uma guerra pessoal, capaz de sacrificar-se pela sua crença.
Mas examinemos seu pensamento, de modo em que ele revele o que haveria de admirável para aqueles que leram sobre sua história: afinal o que um jovem buscaria na natureza? Percebemos que ela representa para ele uma alteridade radical, algo a ser conquistado, vencido. Mas por que a experiência frente a seus rigores seria capaz de funcionar como uma prova convincente? E de que valor? E para quem?
Os pais podem até ser muito generosos, mas querem ser recompensados pelos seus investimentos amorosos. Ser filho de alguém é carregar o peso da aposta que se fez em nosso nome. De alguma forma sempre vem a mensagem de que devemos pagar pelo lugar simbólico que ocupamos em uma linhagem. A força das marcas familiares que fundaram o sujeito é sentida particularmente na adolescência, é o fim do jantar e o momento de receber a conta. A cultura dos pais, seus sonhos e projetos, seus erros e acertos vão impor-se ao ser que eles criaram, querem que ele se realize nos termos dos seus valores. Muitas vezes o desejo parental pode não ser de continuidade, não é nada incomum que seja até de rompimento: vá além, faça o que não consegui, enfrente o que me derrotou, escolha melhor do que eu fiz. Outras, é de mera continuidade, mas não importa o tom, sempre soará opressivo e, quanto maiores os recursos psíquicos do jovem, menos pesada será a consciência e a desilusão de concluir que o amor dos pais nunca foi incondicional.
Já a natureza, embora na prática suas exigências possam ser cruéis, parece ser equânime e desinteressada. Estar sozinho em lugares extremos pode produzir momentos de euforia, numa comunhão íntima com a beleza da paisagem, muitos dos quais foram relatados por Alex. Isso se você estiver disposto às agruras necessárias para chegar e permanecer ali. Os que conseguem sentem-se vitoriosos, mas trata-se de uma conquista em que não se cedeu ao desejo de ninguém, não exigiu troca de favores, não se negociaram crenças nem houve medições de prestígio. As exigências de uma montanha, um deserto, uma grande onda, a imensidão do oceano, de uma floresta cheia de ciladas, serão iguais para todos os que ingressarem nelas. O que muda são os recursos com os quais cada um entra na cena. Por isso era fundamental para Alex não possuir nada que diminuísse os riscos, que amenizasse as exigências do lugar, era uma forma de aumentar a magnitude de uma experiência que ele considerava pura e essencial.
Acreditamos que, pela semelhança das experiências a que se lançaram o “personagem” McCandless e o escritor Krakauer (autor do livro responsável pelo resgate do personagem), podemos tomá-los, para efeito de reflexão, como duas vozes de pensamentos similares. A pesquisa do jornalista o levou a citar trechos dos autores preferidos do seu personagem e, entre eles, temos a seguinte passagem de Caninos Brancos, publicado em 1906 por Jack London:
“A própria terra era uma desolação sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que seu espírito não era nem mesmo o da tristeza. (…) Era a imperiosa e incomunicável sabedoria da eternidade rindo da futilidade da vida e do esforço de viver. Era a Natureza, a selvagem, a de coração gélido, a Natureza das Terras do Norte.”
O livro de London contrasta o heroísmo natural das criaturas selvagens, assim como do valor intrínseco da beleza da paisagem do Alasca, com a mesquinhez, a incompreensão dos homens corrompidos em nome do ouro. Estes últimos, segundo as críticas que Chris dirigia a seus pais e seu modo de vida, são representantes do sistema de valores erguido em torno do dinheiro. Seus pais se sacrificaram muito para subir na vida e, como acontece em todas as famílias, não deixavam de adular o valor de suas conquistas, no caso em termos de poder aquisitivo. O filho negou-se a ganhar dinheiro, insistia em que o ouro não media nem provava o valor de ninguém. Já a natureza, esta sim pareceria uma juíza legítima e a ela ele se entregou.”

Um olhar infantil sobre o diferente

A intolerância será tanto mais forte e, portanto, violenta, quanto mais restritas forem as possibilidades de criar, cooperar e dialogar. Quanto maior a pobreza de espírito de um grupo social, tanto menores seus recursos simbólicos, portanto, vai ter que utilizar-se de uma gramática binária para se descrever: eu, bom, não eu, ruim.

IHU on line – Revista do Instituto Humanitas Unisinos
EDIÇÃO 491 | 22 AGOSTO 2016
Entrevista concedida a João Vitor Santos

Diana Corso observa como as crianças apreendem a ideia de diferente, em uma perspectiva que não exclui e que busca um crescimento emocional e cultural para absorver a “variabilidade de modos de ser, viver e pensar”
“Quando nos associamos para brincar ou criar, as diferenças entre nós são úteis, interessantes, diversificam o que estamos fazendo. Já quando somos passivos, como os alunos de uma escola tradicional, ou só ficamos brincando sozinhos e observando os outros, tornamo-nos competitivos e não suportamos as diferenças”. A elaboração é da psicanalista Diana Lichtenstein Corso acerca da relação tolerância/intolerância sobre o diferente, o que não é igual a mim. Ela observa essa relação a partir das experiências infantis. “As crianças não notam diferenças de forma estereotipada, elas observam o que a cultura as treina para ver”, aponta. Assim, a ideia do diferente para os pequenos é algo muito volátil em meio ao seu mundo de descobertas e transformações. “As diferenças que estereotipamos em nossa sociedade, de gênero, cor da pele, status social, são variáveis mínimas em relação a essa polissemia da infância”, explica Diana, ao lembrar que as crianças se atêm tanto a essas diferenças quanto às de tamanho, de altura, por exemplo.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a psicanalista analisa como a criança pode ser tomada como uma terra sem formas, portanto aceitando qualquer moldura para ver o outro. Para Diana, muito mais interessante é oferecer para crianças o acesso a um crescimento emocional através do contato com os diferentes. Isso permitirá que ela desenvolva um verdadeiro olhar sobre o outro para além dos preconceitos forjados nos estereótipos e convenções sociais.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que medida a intolerância é inerente ao ser humano e em que medida surge na relação com o meio em que se vive?
Diana Lichtenstein Corso – Vamos situar o aparecimento da agressividade entre os bebês, aqueles um pouco maiorzinhos, que conseguem brincar perto uns dos outros. Veja bem, não estou me referindo a crianças que brincam juntas, mas apenas por perto, reparando no que o outro faz e por vezes trocando, oferecendo e disputando objetos. São criaturinhas ainda em fase de construção da sua capacidade de representação simbólica, já conseguem “papar” [alimentar-se] e dormir de brincadeira, esconder-se do olhar do outro e reaparecer com júbilo, por exemplo, mas não bolar em conjunto com outra criança uma trama para partilhar, criar uma fantasia em conjunto, contracenar com personagens, ou mesmo seguir regras grupais de uma brincadeira. Estamos falando, então, de rudimentos de sociabilidade.
Nesse contexto, surgem as maiores disputas, por brinquedos, pela atenção dos adultos, por entrar em certo lugar. Onde o outro está, o que a outra criança estiver fazendo, torna-se objeto de cobiça. Quanto menores, mais as crianças funcionam em espelho, pois ainda estão definindo seus próprios contornos, como se houvesse um só lugar, aquele que acabam de descobrir observando o outro e ali querem estar.
Bom, conto essa história de bebês porque a agressividade, a intolerância em nossa sociedade tem justamente a ver com a solidez da imagem que cada um tem de si. Por exemplo, se alguém vale somente por ter um smartphone, por ter um carro, uma roupa com etiqueta tal, não vai suportar que todo mundo possa ter. É preciso dividir o mundo entre os que, para usar o código das crianças pequenas, estão no balanço e os outros que ficam olhando de fora. É diferente quando numa sociedade consegue-se trocas mais simbólicas, que passem pela palavra, por um olhar capaz de perceber a beleza ou de despertar a curiosidade de forma mais complexa do que códigos rudimentares de ter ou não ter um número restrito de objetos que vão dizer quem é alguém — está no balanço — e quem não — ficará olhando.
Essa possibilidade de associar-se para criar, que é a brincadeira infantil propriamente dita, está no coração de tudo o que fazemos de criativo, desde a arte propriamente dita, até uma equipe científica ou que desempenha determinada tarefa prática conjuntamente de modo eficiente e colaborativo. Quando nos associamos para brincar ou criar, as diferenças entre nós são úteis, interessantes, diversificam o que estamos fazendo. Já quando somos passivos, como os alunos de uma escola tradicional, ou só ficamos brincando sozinhos e observando os outros, tornamo-nos competitivos e não suportamos as diferenças, pois precisamos do outro como espelho e contraponto.

IHU On-Line – Como o sentimento de intolerância aparece na infância? Como é elaborado pelos pequenos e como perceber a necessidade de intervenção? De que forma as crianças veem o diferente? O quanto podem ter essa perspectiva alterada pela ação dos adultos que a cercam?
Diana Lichtenstein Corso – As crianças não notam diferenças de forma estereotipada, elas observam o que a cultura as treina para ver. Até é interessante ressaltar que a infância é muito variada em termos de formatos, tamanhos e capacidades. O ritmo de crescimento é muito, muito variado. Há crianças de três a dez anos de todo tipo de tamanho, há os que têm complexão física mais encorpada e os quebradiços, os que crescem como pipoca estourando e os que demoram muito, passam a infância inteira estilo mignon, os atléticos, os capazes de concentrar-se, os líderes, os tímidos, eles são variados entre si e também em relação a si próprios. É comum o amiguinho voltar das férias todo diferente, cresceu ou mudou de jeito.
Nesse sentido, as diferenças que estereotipamos em nossa sociedade, de gênero, cor da pele, status social, são variáveis mínimas em relação a essa polissemia da infância. Se não for instruída para isso, uma criança não observará a cor da pele do amigo, mas sim sua altura, seu jeito de falar ou de calar, enfim, ela escolherá os critérios do que é mais importante para ela. Ater-se aos nossos padrões de preconceito adulto é para as crianças um treinamento recebido dos adultos.

Associações e exclusões: sofrimentos normais
Situações radicais de exclusão e bullying na infância ocorrerão principalmente se elas se organizarem em grupos passivos, com padrões restritos e pouco colaborativos. Aí vale a lógica dos pequenos, dos que têm poucos recursos simbólicos. Por outro lado, entre as crianças temos alguns dramas de associação: as panelinhas, os grupos de três, organizados para deixar um de fora, os clichês que organizam uma turma de colégio entre populares, nerds, gays, e tantas outras categorias. Esses são recursos de trocas amorosas, em geral do homoerotismo básico que aparece muito forte na pré-puberdade, quando as questões de quem vale o que para ser desejado ou admirado pelos outros tornam-se muito importantes.
São sofrimentos normais, que, se o “sucesso social” não for uma obsessão para a família, serão encarados com mais leveza e até um certo humor pelas crianças. Porém, se a criança estiver inserida em um contexto em que o prestígio no grupo e a capacidade de liderança, que tomam como prova do potencial para o exercício do poder, forem um grande valor, acima dos de solidariedade, tolerância e companheirismo, esses jogos grupais serão fonte de grandes dramas e péssimos para a construção de uma identidade mais definida. A criança tenderá a diluir-se na massa, obedecendo às regras mais rudimentares de comportamento e formas de ser, estabelecidas por um senso comum que nunca deixa de ser pobre de espírito.

IHU On-Line – Há um limite entre a intolerância e a violência? Quando a intolerância se perfaz em força e violência, essencialmente na infância?
Diana Lichtenstein Corso – A intolerância será tanto mais forte e, portanto, violenta, quanto mais restritas forem as possibilidades de criar, cooperar e dialogar. Quanto maior a pobreza de espírito de um grupo social, tanto menores seus recursos simbólicos, portanto, vai ter que utilizar-se de uma gramática binária para se descrever: eu, bom, não eu, ruim.

IHU On-Line – Qual o papel das fábulas e dos clássicos infantis no desenvolvimento das crianças? Em que medida essas histórias solidificam convenções sociais e fecham perspectivas e em que medida abrem um horizonte para o novo e aceitação para o diferente?
Diana Lichtenstein Corso – As histórias que a infância de cada época adota para si não cria o modo de ser das crianças, é esse modo que edita a ficção de cada época. Por isso, em nossos livros escritos sobre o assunto, com o Mário Corso , tomamos as histórias como reveladoras de um modo de ser, de estar no mundo, dos gêneros se definirem, das famílias se organizarem, dos valores, enfim do tecido social que nos organiza.
Os contos ditos tradicionais, ou seja, que vêm acompanhando várias gerações, guardam apenas um núcleo da trama idêntico uma geração após outra. Alguns, como é o caso da Rapunzel após Enrolados , da Bela Adormecida após Malévola , da Branca de Neve após Branca de Neve e o Caçador , ou mesmo João e Maria caçadores de bruxas , estão tão recheadas de novas referências de gênero que estão se tornando muito diversos de suas versões mais consagradas no passado. Mas, se formos olhar, essas mesmas versões que tomamos como clássicos já são radicalmente modificadas das suas fontes da tradição oral, que por sua vez passaram por várias modificações antes de chegar às crianças, como as versões picarescas ou cheias de maneirismos voltadas ao público adulto impressas, recompiladas e recontadas por vários autores. A ficção, quanto mais atrás pudermos encontrar alguns traços de constância em determinada história, mais ela irá contando das nossas transformações históricas.
Histórias são verdadeiros documentos de história social, reveladoras da subjetividade dos habitantes de cada tempo e lugar e do que eles partilhavam de comum naquelas coordenadas específicas. Essas questões da multiplicidade de identidades possíveis, principalmente no que diz respeito a gênero, onde masculinidade e feminilidade, antes drasticamente diferenciadas agora se embaralham, assim como da diluição das hierarquias familiares, que tendem à horizontalidade, estão fortemente representadas na ficção infantil. O cinema é o modo de expressão artística que mais rapidamente absorve e difunde essas novidades, ele visa grandes públicos, então tenta traduzir-lhe os desejos. Não podemos dizer que ele cria uma tendência cultural, ele é criado por ela e, por sua vez, ajuda a consolidá-la.

IHU On-Line – Hoje, é comum perceber que crianças não têm mais medo e aceitam criaturas como bruxas, lobos e monstros não como manifestações do mal. Ao mesmo tempo, veem-se princesas, príncipes, reis e rainhas não mais como figuras tão cândidas e bondosas. Como observa esses movimentos? Quais as questões de fundo que suscitam?
Diana Lichtenstein Corso – O medo é importante na infância, ele ajuda a delimitar os lugares e as pessoas seguras: se meu quarto não é a floresta, o papai não é o lobo mau e a mamãe não é a bruxa, portanto, posso dormir em paz. Só que para que haja todas essas exclusões, a floresta, o lobo e a bruxa têm que estar rondando do lado de fora, para garantir o aconchego do interior.
Além disso, como todos temos dentro de nós fantasias que são representadas pela maldade e pelos perigos desses cenários e personagens aterrorizantes, deixá-los de fora, mas de certa forma acessíveis, garante que nossas coisas ruins e pensamentos assustadores fiquem depositados neles. Outrora, outros temores, de um mundo mais mágico, pelas crendices e pela religião rivalizavam com a ficção. Hoje, isso empalideceu e por isso, embora as crianças e adolescentes não “acreditem” na veracidade dessas histórias, eles morrem de medo igual, ou seja, mantêm esse hábito de outorgar seus medos e fantasias a personagens que os encarnem e ajudem a dar conta deles.
A arte dá conta dos nossos conteúdos mais difíceis de elaborar, e isso vale igual para o que é oferecido às crianças, pela literatura, televisão, quadrinhos, cinema, teatro, games. Nesse sentido, como dizia antes, agora as personagens não são tão estereotipadas: gêneros, padrões de beleza e comportamento, vêm se modificando. Depois do Shrek , de Valente , Frozen e tantas recriações dos contos de fadas, temos claro que as crianças maiorzinhas não querem ser tratadas como bobas com personagens simplórios. Ainda gostam de um final feliz, mas adoram as nuances, como a transformação da princesa do Shrek em ogra, o oposto da tradição.
Já os bem pequenos ainda precisam lidar com menos variáveis, por isso gostam de personagens um pouco mais planas, mas apreciam que elas tenham seus perrengues e suas inquietudes. Crianças, como povos, quanto mais acesso tiverem a um crescimento emocional e cultural, menos simplórios serão seus raciocínios e, portanto, melhor poderão absorver nossa maravilhosa variabilidade de modos de ser, viver e pensar.■

Marcas de nascença

Além de um nome, ao nascer recebemos uma pequena vinheta, que frequentemente será nosso mito de origem particular. Cabe a nós fazer disso uma sina ou o simples começo de uma história.

Minha mãe conta que nasci invertida, de parto normal, o que já em si é uma temeridade. Jura que convenceu aos doutores desatentos de que estava em trabalho de parto mostrando-lhes meus pezinhos, que chegavam antes da cabeça. Comecei a vida colocando os pés pelas mãos. Deve ser por isso que até hoje sou um tanto impulsiva.
Como psicanalista, conheço muitas histórias sobre o nascimento. Elas são atribuídas a cada recém chegado como um mito de origem. Funciona como um signo, explicam por que somos assim ou assado, só que é um horóscopo particular. Algumas delas são narrativas familiares, mas há a variante privada: é o momento que consideramos paradigmático do que nos tornamos. Todos temos uma vinheta do passado como uma espécie de mito particular de estimação.
Por vezes essas histórias dizem respeito ao parto, como a minha, por outras dão conta de seu modo de ser enquanto bebê. Também existem aquelas que atribuem o sentido de uma vida a um trauma, um susto, uma doença, morte ou frustração. Teu berço era uma caixinha de sapatos; ele era o gêmeo menor, o outro comia tudo; eras um bebê enorme, guloso, tua mãe virou um fiapo; choravas o tempo todo; dormias tão tranquilo que nos esquecíamos de ti. Quantas histórias, parecidas com essa, você conhece a seu respeito ou dos outros?
É difícil dizer o que nos determina. Os astros alinhados na hora em que saímos do corpo materno? A genética, guardando o tesouro dos nossos humores, doenças e dons? A sociedade que nos abriga? O status dos nossos familiares? Talvez a ordem em que nascemos: primogênitos, do meio, caçulas? Parte de uma prole extensa ou únicos? Seria o nome recebido, síntese da prescrição de desejos paternos?
As variáveis são muitas e sempre há alguém que coloque a ênfase, ou acredite, na exclusividade de uma ou outra. Mais fácil é rastrear as histórias familiares que se enlaçam com nossa chegada, nossos primórdios. Em geral temos uma ou mais, e quase todas são um pouco bizarras, excêntricas. É inegável que somos determinados pela biologia e pelo contexto, mas sobre isso monta-se uma versão: é a narrativa familiar que nos torna peculiares.
A história de cada um de nós é como um jogo de xadrez: o desenlace é influenciado pela jogada de abertura. A vantagem é que, embora sejamos um jogo de cartas marcadas, muitas delas são coringa. Em resumo, há jogo de corpo, mobilidade, plasticidade: podemos variar o ponto de vista, o tom da narrativa, o estilo. Cada humano nasce como uma trama a ser editada e continuada.
Você já lembrou qual a sua história? Feito isso, tente descobrir como conversou com ela ao longo da vida, se fez dela um xeque mate ou uma abertura de jogo. Talvez tenha se empenhado para confirmar as predestinações, ou para contradizê-las. Bem, como eu cheguei atravessada, talvez seja por isso que decidi dedicar-me à psicanálise, a arte do imprevisto, do indizível. O inconsciente é essa razão oculta que determina um sentido e uma verdade ao que parece enviesado, estranho e impulsivo.

Uma Cinderela ao contrário: vinte anos da morte de Lady Di.

Lady Di foi uma princesa diferente, casou-se para ser infeliz para sempre. Ascendeu e morreu como sua precursora midiática Grace Kelly, mas representou o lado obscuro das celebridades do fim do século XX. Cada tempo tem a princesa que precisa.

Lady Di foi a primeira princesa-celebridade à inversa: casou-se para ser infeliz para sempre. Foi célebre em sua transformação de uma nobreza obscura na princesa mais midiática que a monarquia britânica já teve. Não estou falando de presença em tabloides, fofocas e outras bobagens que oferecem o material que mantém o reinado em pé. No caso da nossa princesa, ela foi icônica em sua beleza, em seus segredos que nunca foram secretos, em sua oposição silenciosa e escandalosa à opressão real da rainha mãe. Todos sabemos sem saber dessas coisas, tão provavelmente inverídicas ou verídicas, tanto faz, mas certamente formatadas pelo interesse popular. Cada tempo tem a princesa que merece…

Diana foi a Cinderela ao contrário: foi escolhida, casou-se, caiu nas graças do povo mas não da casa real. Criou brilho próprio como diplomata e filantropa, teve vazadas suas depressões, anorexias e a dor pela frieza do marido. O príncipe, o mundo todo sabia, tinha sua paixão, que nunca foi ela. Diana é uma princesa mártir: ocupou seu lugar público, guindada a ele pela condição de esposa, sem nunca ter tido o direito ao trono no coração do aparentemente insípido consorte. Sua atuação pública, além dessa condição de uma certa marginalidade entre os nobres (apesar de sua linhagem), é de uma dedicação às causas humanitárias mais destacada do que havia sido visto em suas antecessoras.

O povo tinha de tudo para se identificar com ela: uma nobre que “não fazia parte”, como todos nós plebeus somos excluídos da nobreza; uma princesa com enorme coração, contrariando a vocação monárquica a ser mimados e indiferentes à fome. Lady Dy foi, então, uma nova síntese de verdadeira nobreza com seu oposto, os oprimidos, os plebeus sem valor frente à realeza, as mulheres abafadas e deprimidas pelo casamento. Ela ascendeu aos céus da admiração e também declinou em público, celebrizou-se pelo carisma e pelo sofrimento, em sua vocação para o martírio que angariou todo tipo de sentimento, menos a indiferença.

Muito se disse sobre a condição de celebridade que logo se colou à sua figura carismática, mas não podemos esquecer que a mistura de monarquia com show business já havia sido inaugurada em nosso tempo pela classuda Grace Kelly. A atriz loira e perfeita que subiu ao trono de Mônaco realizou o sonho de todas as plebeias: ser vistas pelo príncipe, escolhidas e levadas ao altar real.

Kelly já era icônica antes de tornar-se princesa. Como soberana, venceu, sem concorrer, todos os títulos de beleza nobiliárquicos e politicamente foi ativa em várias causas humanitárias e artísticas. Não é à toa que o casamento de Diana Spencer, 32 anos mais nova do que a mítica soberana loira do pequeno principado, foi referenciado no de Kelly. Este foi constantemente evocado durante a pomposa cerimônia televisionada da a transformação de Lady Di em Princesa de Gales.

Mas Diana era outro tipo de princesa, mais afeita à condição tumultuada das atrizes e figuras públicas contemporâneas, onde o escândalo não é feito de traições aos “bons costumes”, mas sim de exposição dos momentos de fragilidade pessoal, que também compõe o glamour. Por isso, nossa Cinderela britânica às avessas, é representante do “infelizes para sempre”. Hoje, fazem vinte anos da sua morte, em um acidente automobilístico, como James Dean, Grace Kelly e tantos habitantes reais do nosso imaginário. Eles foram mártires da velocidade e da nossa voracidade midiática.

Hoje as princesas são outras: anti-princesas, Valentes, Maravilhosas e guerreiras. Parece menos perigoso para as mulheres, pois lutam batalhas reais, arriscam suas vidas, mas, como se costuma nos contos de fadas, sempre vencem. AS herdeiras de Lady Di são soberanas feministas, adiam a escolha de um príncipe, privilegiam a sororidade. Elas protagonizam cenas perigosas, mas nenhuma delas vitimou tantas mulheres quanto a depressão, grande inimiga do passado, antes que pudessem combater no mundo real. Lady Di ficaria surpresa se pudesse ver quão longe as novas princesas puderam chegar, talvez o

13 razões para morrer em vez de crescer

Por que as fracas razões do suicídio de Hannah soariam convincentes para outros adolescentes?

E se a vida adulta fosse um lugar para onde ninguém quer migrar? E se nosso presente fosse um futuro que ninguém quer ter para si, nem nós? Há um rumor de que muitos dos que são hoje adolescentes correm o risco de desistir da vida antes de virar adultos. O medo de que esteja ocorrendo uma espécie de epidemia suicídio de jovens, similar ao mito do suicídio de lêmingues, diz muito dos adultos que os trouxeram ao mundo e dos que ocupam-se deles enquanto terminam de crescer. Talvez, para os mais velhos, seguir adiante, deixando a adolescência para trás, esteja equivalendo a morrer.

Essa preocupação diz respeito, evidentemente, aos bem nascidos, os que “têm tudo”. Os outros são dizimados na guerra do tráfico ou na carnificina da prostituição, assim como ocorre com os que vivem em nações em guerra. Para estes, o futuro não é uma opção, a realidade incumbe-se de tirar-lhes a vida na flor da idade. Onde foi que falhamos para temer a desistência de tantos entre os que poderiam dar-se ao luxo de realizar os melhores sonhos que idealizamos para eles? Por que eles se negariam a receber essas dádivas que nossa sociedade injusta oferece a tão poucos?  Precisamos vê-los aproveitar o maravilhoso pacote de diversões adolescentes que lhes vendemos para alicerçar a crença no ideal da eterna juventude. Pais e adultos em geral têm investido fortunas em produtos, elixires, comportamentos e promessas que lhes forneçam a ilusão de ter devolvida e preservada uma adolescência de plástico, de filme publicitário, provavelmente em nada parecida àquela que viveram.

Um encontro bem sucedido entre a indústria de entretenimento e seu público acendeu esse rastilho de pólvora: o pânico dos adultos de que seus adolescentes se suicidassem. 13 Reasons Why, o seriado, chegou às telas caseiras dez anos depois do livro que lhe deu origem, Os 13 porquês, de Jay Ascher, lançado em 2007. Trata-se da história do suicídio de Hannah Baker, uma garota norte-americana de classe média. Rapidamente os jovens jogaram-se em maratonas para assisti-lo, enquanto seus mais velhos passaram a alarmar-se com ele, temendo uma onda de suicídio coletivo. Um seriado não tem o poder de ser uma espécie de Flautista de Hamelin, cuja melodia levaria nossos jovens a jogar-se de um precipício como os ratos. Nossos temores dizem mais da relação que nós adultos temos com a juventude do que da vontade concreta dos adolescentes de tirar a própria vida.

Ao longo de 13 episódios, ou capítulos, somos convidados a escutar as gravações deixadas após a morte de  Hannah, nas quais ela vai arrolando os acontecimentos que a motivaram a cortar os pulsos. Em cada uma das fitas cassetes, que ela deixa para serem ouvidas por aqueles a quem culpa pela sua morte, ela vai tecendo seus sofrimentos e responsabilizando uns e outros por isso. Ha situações graves, como por exemplo ter sofrido um estupro, assim como ter sido obrigada a presenciar situação similar ocorrida com uma amiga. Porém, encontramos também motivos mais pueris, como o desentendimento com uma amiga e o fato de uma poesia da protagonista ter sido publicada, anonimamente, à sua revelia, por um colega que admirava seu trabalho, e ter chamado a atenção na comunidade escolar.

A série foi considerada um alerta sobre os efeitos letais do bullying na adolescência. Na tela, a comunidade escolar e as famílias entram em uma espécie de histeria coletiva, como se todos os alunos estivessem em risco de suicídio, vitimados pelos maus tratos sofridos por parte de seus contemporâneos. Fora da tela, passou a considerar-se a série como um potencial gatilho que levaria seu público a imitar o ato da protagonista.

Quem consegue lembrar-se, sabe que os anos adolescentes não são fáceis de transpor, porém, se tantos se sobrepujaram a essas dificuldades, por que os jovens atuais não o fariam? A forma explícita em que o ato suicida é apresentado na série parece ter o potencial de funcionar como uma espécie de tutorial para ensinar aos jovens a matar-se, assim como muitos supõe que a violência nas telas ou games os levaria a empunhar uma arma e sair dizimando seus colegas. Embora o entorno social exerça fortes influências, tanto mais potencialmente negativas quanto mais frágeis sejam os indivíduos, o suicídio não funciona por simples contágio, assim como tampouco ocorre com a violência. Descartado isso, faltaria indagar por que as treze razões de Hannah soariam convincentes para sua audiência.

O que teria algum potencial para despertar identificação é a certeza da protagonista de ser vítima de maus tratos ou de descaso por parte, principalmente, dos outros jovens. Ela é branca, de classe média, inteligente, bonita e nasceu em uma família amorosa, com pais que tentam comunicar-se com ela, respeitar seus desejos e propiciar-lhe todas as condições possíveis para realiza-los. Mas Hannah sofre constantemente.

Ela enfrenta a selvageria própria da cultura fútil de aparências em que vivemos, ambientada naquele habitat, tão popular nos seriados norte americanos, em que o Ensino Médio equivale a uma espécie de ilha onde são confinados exemplares dos piores tipos de espécime humano. Nenhum de nós, após ter passado os anos adolescentes, discordará de que é um trecho da vida que pode adquirir tintas bem dramáticas, no qual somos destinados a viver em um lugar bem pouco arejado. Para piorar, somos uma péssima companhia para nós mesmos: a autocrítica feroz, tanto mais quanto espera-se tanto dessa etapa da vida, é a musa que canta durante todo o percurso adolescente.

Os outros são considerados um inferno quando os imaginamos fazendo eco ao autodesprezo que sentimos. Nossos contemporâneos, cada um às voltas com os mesmos dramas, são incapazes de olhar para fora, também imersos em suas próprias ruminações narcisistas e autodepreciativas. Paradoxalmente, os adolescentes precisam de amigos e amores como de oxigênio, como contraponto ao vazio deixado pelo enfraquecimento dos laços familiares. A tendência natural é, então, que amores sejam trágicos ou arrebatadores, enquanto as amizades envolverão pactos se sangue ou traições imperdoáveis.  Se esse olhar amoroso dos pares não for capaz de curar as feridas do desamparo, os adolescentes sentem-se frágeis, inconsistentes, à morte, mas raramente morrem disso.

Na vida de Hannah, seus colegas, tão autocentrados como ela são acusados da mesma incapacidade de empatia que ela própria demonstra amplamente ter. Ela não liga para as dificuldades alheias: a timidez paralisante, o medo de assumir-se gay, as durezas de uma família devastada pelas drogas, a rigidez militar dos pais de seus amigos, a dor de ter presenciado o suicídio da própria mãe, a fragilidade dos que cercam lideranças perversas. Nenhuma das histórias dos outros parece ter a mínima relevância para a jovem suicida. No palco, os holofotes focam apenas seu único e precioso sofrimento.

Por que solidarizar-se com tanto egoísmo? Certamente isso é uma tentação para aqueles que ficaram presos a uma posição infantil ou são eternamente saudosos dela, pois acreditam ter nascido para ser cuidados e admirados incondicional e eternamente. Tal atitude majestosa só cabe às crianças bem pequenas, que iludem-se na condição de bibelô da casa. Os adolescentes e adultos que recusam-se a admitir qualquer protagonismo nos revezes sofridos querem ser como esses bebês, iludidos no amor supostamente onipresente dos seus pais. Ao longo da infância vamos percebendo que não é bem assim, que eles são mais fracos e desatentos do que gostaríamos. Graças a isso vamos desligando-nos deles, interessando-nos por outras pessoas, por assuntos fora do lar, por brincar e falar, por crescer. A adolescência é o trecho mais decisivo dessa separação, quando começamos a partir de vez. Por isso mesmo é uma fase tão difícil, na qual duvidamos fortemente ter forças, ou mesmo desejo, de fazê-lo. Nesse sentido, o que mais preocupa na popularidade desse seriado não é que ele pudesse desencadear uma epidemia de suicídios juvenis, é sim tanta empatia como uma personagem cheia de autocomiseração e tão pouco disposta a incumbir-se de suas amarguras e de sua própria vida.

Tal identificação de fato pode ocorrer, não no sentido do suicídio, mas dos sofrimentos daqueles que acreditam estar sempre no centro dos olhares, tal como Hannah. Trata-se de um expediente bastante simples para lidar com a perda do lugar central que as crianças supõe ocupar no amor dos pais: projetá-lo fora de casa, supondo-se igual importância, mesmo que às avessas.

A tarefa da sedução amorosa, a que se entregam os adolescentes apaixonados, é um antídoto contra esse narcisismo infantil. Tomar medidas para despertar o interesse daqueles a quem desejamos depende de uma sabedoria oriunda da experiência de desencontros com o afeto e interesse dos pais. O apaixonado supõe que é preciso fazer algo para chamar a atenção e fazer-se amar. Se a queda do trono de criança majestosa não tiver ocorrido, todo tipo de dificuldade será sentida como uma rejeição insuportável, uma estocada a mais na dor da separação com os pais. Se acrescentarmos a isso o ingrediente de famílias que colocam seus descendentes, até avançada idade, como príncipes e princesas cujos desejos são uma ordem, teremos muitos jovens como Hannah. Serão incapazes de enfrentar qualquer revés com outra reação diferente de uma chantagem: se não for como espero, não brinco mais, vou morrer e a culpa será sua. Para estes, se sua presença não puder ser majestosa, quem sabe sua ausência seria?

Mas estes são tipos raros, pois a maior parte dos adolescentes tende a não cair no canto de sereia dos mais velhos, que lhes oferece a comodidade hipnótica de ser mimado para sempre. Desse modo, seus pais nunca envelheceriam, jamais se tornariam superados e obsoletos e nunca criticariam os pais. Até os mais “malcriados” dos filhos acabam por revelar insatisfações com o ninho e apontam para fora dos limites do lar. Fora de casa, quer para os melhor preparados, quer para os mais imaturos, os desafios são assustadores e o convívio com os outros de sua geração a prioridade. Se pudéssemos dizer a um verdadeiro adolescente uma única frase, na tentativa de dar-lhe força para transpor os revezes dessa época seria: “acredita, isso acaba!”.

A ideia de passar vários anos em um convívio cotidiano com outros jovens igualmente destemperados, por horas imóveis em um único recinto, parece ter se tornado um pesadelo para boa parte das pessoas. Esse lugar é a escola. Se pelo menos tivéssemos clareza de que isso é temporário, ajudaria. Mas quando estamos lá parece que não haverá amanhã. O presente é opressivo, tem-se a sensação de estar preso em um filme infinito, sem cortes nem edição, em um único plano sequência. Do futuro, nada se espera, pelo simples fato de que um jovem custa a acreditar em sua capacidade de fazer algo com sua vida.

O futuro é tanto mais incerto quanto tem sido vendido como indesejável. Para muitos, ser adulto passou a equivaler a uma gincana de tarefas sem sentido, desprovidas de glamour. Pelo menos é assim que os desmemoriados dos pesadelos da juventude vendem o sonho de ser bonito, forte e sensual, como um estado que deveria ser ininterrupto. Mas são raros os adolescentes que realmente enxergam-se assim, mesmo os poucos que o olhar alheio coloca no pódio da existência. Isso sem contar o fato de que a maior parte considera-se carta fora do baralho das perfeições estéticas.

Hannah é linda, desejada por muitos e admirada por alguns, que lhe dedicam a amizade e lhe propõe alianças naquele ambiente hostil. O outro protagonista da série, uma espécie de narrador do seriado, é tão tímido quanto apaixonado por ela. O garoto custa a declarar-se devido à sua insegurança, essa teria sido sua falha, a razão que lhe coube. Portanto, o ambiente para nossa heroína não é mais hostil do que para seus contemporâneos, mas ela queixa-se, acusa, arma verdadeiras ciladas para os que convivem com ela de modo a provar a si mesma e à posteridade que não foi escutada, amada e respeitada o suficiente. Suas reclamações fazem eco em jovens e adultos porque gostamos de crer que alguém é mais responsável do que nós mesmos pelo destino que escolhemos.

Por outro lado, entre as motivações para seu ato, encontram-se, principalmente, as várias formas de opressão às mulheres, muito mais ameaçadoras quando elas encontram-se no auge de seus atrativos físicos. Constrangimentos verbais, postagem de fotos comprometedoras na rede, maledicência e, por fim, o abuso sexual propriamente dito, são práticas, infelizmente, correntes e tradicionais.

As adolescentes sempre lidaram com isso como se fosse inevitável, até que o movimento feminista começou a viabilizar-lhes a coragem para reagir e organizou uma pressão social para que suas denúncias fossem recebidas de forma respeitosa. Nossa personagem e suas amigas não partilham desses avanços, inclusive têm parca solidariedade entre si, mas a série revela sofrimentos que garotas e mulheres contemporâneas não têm deixado serem varridas para baixo do tapete. Portanto, poderíamos dizer que estamos frente a um seriado interessante, no sentido da denúncia feminista dos perigos do bullying contra as adolescentes. Curiosamente, não tem sido essa a razão de sua popularidade.

“Suicídio é para fracos”, diz uma personagem secundária, uma garota estranha, sofrida e forte que vai ganhando visibilidade ao longo dos capítulos. Ela é a única que realmente ousa criticar a protagonista principal, cujas reivindicações tantos, dentro e fora do seriado, parecem validar. Para a maior parte do público, estamos em permanente dívida com os adolescentes. É imprescindível provê-los de mais, sempre mais recursos e cuidados, ignorando que é justamente assim que se constrói uma gaiola dourada onde eles ficam presos em nossos sonhos e fadados a uma fragilidade poli-queixosa.

Se nossos verdadeiros sonhos forem os da juventude eterna, que gostaríamos de ter tido, crescer lhes seria proibido e tornar-se adultos uma derrota. “Viva rápido, morra jovem, seja um cadáver bonito”, é uma frase popularizada por James Dean, um dos primeiros ícones da adolescência tornada um ideal estético. A juventude tem deixado de ser um lugar de passagem para tornar-se uma espécie de Terra do Nunca, onde todos gostariam de ser congelados. Mas, assim como a ilha de Peter Pan, a tal adolescência eterna, associada a alguma forma de plenitude de prazeres e potencialidades, só existe no mundo da fantasia.