Como se não houvesse amanhã

Lá fora é perigoso, porque o mundo está cheio de perversos e irresponsáveis, mas é para onde todos temos que ir.

É fácil evocar o que pensamos em momentos de agradável intensidade: “azar, não posso deixar de viver por medo, é tão legal que podia acabar agora”. Já pensei isso. Quantas vezes nos colocamos em situações de risco ou, pelo menos, naquelas em que o bom senso não impera? Não negue, mesmo que você seja o rei da precaução, todos nós já fomos apresentados à cara do perigo. Sair à noite em nossa sociedade violenta, beber mais do que gostaríamos, estar em um lugar confinado, fazer uma aventura arriscada de carro, escaladas, voar de asa delta, tomar banho em cachoeira, dirigir bêbado, subir no carro do amigo destemido ou alcoolizado, ficar íntimo de alguém que não se conhece, frequentar ruelas escuras. A lista é longa.

Essa leveza beirando a irresponsabilidade é coisa típica da juventude, mas também, com sorte, reencontramos esse sentimento mais adiante. Os jovens vivem momentos festivos de euforia coletiva, atravessam juntos uma noite que faz o tempo parecer infinito. A festa é nossa desde o início dos tempos e costumava ser um momento sagrado, onde os excessos e descontroles eram prescritos. Hoje celebra-se a alegria, a força vital, o direito de dançar de qualquer jeito, só pelo prazer de partilhar o ritmo com os amigos e contemporâneos.

Jovens se arriscam, mas desta vez o culpado é outro. A tragédia de Santa Maria, causada por irresponsáveis que, espero, serão descobertos e punidos, não foi culpa deles, que estavam divertindo-se, nem da permissividade das famílias que não os acorrentaram em casa. Eles acorreram ao evento sem conferir se havia saídas de emergência, portas corta-fogo. Mas isso não era tarefa deles. A alegria pressupõe a confiança de que vai dar tudo certo. A felicidade é otimista, por isso muitas vezes envolve riscos, que devem ser sanados por aqueles que têm a diversão alheia como forma de trabalho. Vale para uma festa, um parque de diversões ou um programa de mergulho.

Investigações e punições são uma dívida com as vítimas. Mas as famílias e os amigos sobreviventes não terão nada devolvido com isso, já perderam o essencial: aquela mínima isenção do medo e da culpa que nos ajuda a viver. A morte, principalmente em sua face trágica e quando se perde um jovem, é a maior experiência de impotência. Nada porta o sem-sentido da vida como a inclemência do fim, principalmente o de quem teve reduzido o tempo de dizer a que veio.

Perder um filho é a pior das mortes, é um assassinato da esperança, impossível de assimilar. Cuidamos zelosamente nossos descendentes, pois seguirão nossos passos quando cessarmos. Sua morte é um milhão de vezes mais insuportável que a nossa, restamos sem sua transcendência. Um filho morto diminui a chance nos tornarmos lembrança. Apesar disso, não podemos ser egoístas e guardá-lo numa redoma, esperando que viva para nos cultuar.

Sou mãe de duas jovens da idade da maior parte das vítimas da boate Kiss. Tanto quanto elas, estivemos muitas vezes em muitos lugares assim. Se meus pais tivessem me impedido, se eu proibisse minhas filhas de viver seu tempo, certamente sua segurança estaria melhor garantida. Porém, um filho cerceado em sua liberdade é alguém cujo corpo é confinado para que sua mente só se ocupe de amar aos pais. Lá fora é perigoso, porque o mundo está cheio de perversos e irresponsáveis, mas é para onde todos temos que ir.

Às pessoas queridas dessa mais de duas centenas de jovens mortos gostaria de transmitir muito mais do que a solidariedade, também a identificação. E principalmente dizer: não, vocês não poderiam ter impedido seu filho, sua irmã, sobrinho ou amigo de estar lá. Ele exerceu o direito de ser livre e feliz, você tinha o dever de respeitá-lo. Desta vez, não houve amanhã, mas se um jovem é proibido de conviver com seus pares ele também acaba privado de conhecer-se, do seu futuro. A dor é inevitável, mas gostaria de aliviá-la da culpa. Correr riscos faz parte de ensinar a viver, embora, repito, essa dor é tão imensa que certamente não estou, no momento, servindo de consolo.

11 Comentários
  1. Roséli Cabistani permalink

    Disse tudo Diana, é como se não houvesse amanhã. beijos carinhosos

  2. Mirian Margarete Mayer permalink

    Que artigo maravilhoso! Como mãe, busco entender estas armadilhas que a vida nos prega! Obrigada pela bela explanação sobre os sentimentos, mais intimos, que temos diante das adversidade!

  3. Gustavo permalink

    Qualquer perda provoca desprazer, a perda de um filho deve ser uma dor indescritível, a perda de 231 é um cálculo impossível. É de esperar que uma forma imediata de resposta seja a busca de um culpado e o pequeno prazer da “justiça” aparece como a promessa de um filtro para a dor. Mas como cidadãos, acho que deveríamos pensar num complexo de responsabilidades. Na folha de hoje o professor Moacir Duarte avalia: …”Um vistoria simples, de menos de duas horas, feita por um bombeiro, bastaria para vetar o local para a realização de shows”, disse. “Há uma cadeia enorme de responsabilidades.”… nessa cadeia estou eu, tu, o dono de Kiss, o arquiteto que fez o projeto… Se já constituímos espaços públicos, também poderes públicos para controlar esses espaços, logo chegará o tempo de avaliar com responsabilidade e escutar atentamente os especialistas em segurança contra incêndios. Pode que seja essa a saída mais eficaz para evitar estes acontecimentos.

  4. guido goulart permalink

    Seu texto de qualidade deveria chegar a todos os jovens do Brasil e do mundo, a todos os jovens que sobreviveram à tragédia, aos familiares que choram por suas vítimas e os que tentam consolar os diretamente atingidos. Bravo!

  5. Anamaria Brasil permalink

    Diana, muito obrigada por tuas palavras. São as mais sensíveis, realistas e necessárias pro momento. Mesmo não tendo conhecidos, nem amigo de conhecidos que estavam lá, é difícil não se identificar e pensar sobre como seria se fosse comigo ou qualquer pessoa próxima. Aliviar a consciência desses pais é o mínimo e ao mesmo tempo o máximo que podemos fazer, porque a dor de perder um filho, essa ninguém tira.

  6. Eliane luconi permalink

    Diana, gostei muito do seu texto. Ele abrange de forma simples mas profunda a diversidade de sentimentos que esta tragédia gerou em cada um de nós, além é claro, da dor e da compaixão pelos pais, familiares e amigos daquelas criaturinhas tão jovens que perderam suas vidas, quando mal as iniciavam. Como você, também tenho filhos, que viveram e vivem momentos de alegria, comemoração, e da despreocupação alegre que acompanha a juventude. Muitas vezes me vi pensando após esta tragédia, quantos riscos os meus filhos correram ao longo destes anos e se estive alerta e cuidadosa o suficiente com eles. Certamente nenhuma resposta me tranquilizou, até porque estou ciente de nossa impotência diante da vida e seus mistérios. Mas concordo com você, de que assumirmos a responsabildade como pais, não significa impedirmos que nossos filhos vivam as suas experiências, e que esta, seria também uma forma de “tirar-lhes a vida”.

  7. Ah, Como eu gostaria de assimilar palavra por palavra do que lí… Mas é tão difícil viver ou conviver com a violência. Ver nossos filhos expostos a crueldade ilógica dos dias de hoje. Não há como blindá-los, mas não há como evitar o aperto no coração quando os sentidos aguçados de mãe, disparam a sirene de
    ” perigo”. Somos omissas na cobrança do compromisso com a vida, que deveria nortear os gestores públicas. Como eles são habilidosos na cobrança de tributos, sangrando mensalmente os nossos salários e tão inertes na iniciativa de valorizar a vida humana. Há uma irresponsabilidade patética, onde deveria haver atitude, voltada para a preservação da vida. Só resta as que, como eu, acreditam em um ser quer tudo pode, pedir proteção para as nossas “crias” .

  8. Sônia Ruffoni guedes permalink

    Sou de Santa Maria (menos importante nesta hora) e nuca li ou ouvi tanta lucidez como li no teu texto. Parabéns.

  9. Walter Cruz permalink

    Diana, hoje li seu texto pela… terceira ou quarta vez. O li em aula, para alunos de Serviço Social. Achei que a conversa seguia na direção do que você propunha e no intervalo providenciei o texto.
    Confesso que em minha primeira leitura (no próprio dia 28), achei que pouco acrescentou. Talvez pelo sentimento ainda muito aflorado, nada parecia servir muito bem.
    Hoje minha opinião é bem outra: como você mesmo escreve, há não apensa solidariedade, mas identificação.

    Há dias estou tentando escrever o que passei, o que vi, o que escutei e o que entendi aqui em SM. No entanto, as palavras surgem em espamos. Rapidamente se esgotam.
    Abraço

    • Diana permalink

      oi walter! evidentemente escrevi o possível que a distância me permitiu, cabe a ti, de dentro do furacão, poder ir além! isso, é claro, quando o tempo cicatrizar um pouco as feridas! quando as palavras voltarem a ser possíveis!
      abraços
      diana

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