Memórias feitas com sangue

Apesar dos rios de sangue, poder e dinheiro se afogam, o tesouro que sobrevive é a herança cultural

O “México é um país feito por suas feridas”, escreveu Carlos Fuentes. Apesar disso é um país que mexe com nossas fantasias de prazer, pois dele esperamos o efeito eufórico de suas cores e tequilas, das Fiestas, da música dos Mariachis, das praias e da alegria com que se combate o luto. Realizei um velho sonho e fui para lá, gostei tanto que só penso em voltar.

Muito sangue se derramou em conflitos entre Astecas, Mexicas, Maias, quer seja em guerras ou sacrifícios rituais, além de que os espanhóis foram conquistadores cruéis. Sem contar os lances dramáticos da Independência e da Revolução Mexicana de 1910. Imperadores, conquistadores, revolucionários, políticos e artistas deixaram marcas difíceis de apagar, num povo que faz questão de lembrar.

Presenciei uma cena, no Museu de Antropologia, que pode ilustrar essa relação peculiar com a memória. O guia se esforçava para apresentar uma maquete do sítio arqueológico de Tehotihuacan a um grupo de turistas, quando uma senhora de traços indígenas aproximou-se e começou a explicar a seu neto do que se tratava aquele lugar. Parecendo nem perceber a presença dos estrangeiros, fez para o pequeno, em voz alta, sua própria introdução ao tema. Por instantes, as vozes do guia e da avó duelaram, até que ela o silenciou e partiu sem dedicar sequer um olhar aos outros presentes. Aquilo era seu por direito inquestionável. Em todos os lugares históricos e museus que visitei, partilhei a experiência com grupos de escolares que, acompanhados por seus mestres, aprendiam a história de seu próprio país.

Boa parte da população mexicana assume sua identidade Asteca ou Maia, assim como adota muito a sério a fé católica deixada como herança pelos espanhóis. Além disso é onipresente a memória de políticos e líderes populares que, entre outras coisas, valorizaram a educação e a memória. É também um país que sofre com o poder do narcotráfico, inflado por um estado apático ou conivente, enquanto milícias populares assumem o controle em periferias e povoados isolados.

Carlos Fuentes fala de dois Méxicos, o do “papel dourado” e o da “terra descalça”. Entre eles, o legado da revolução popular de 1910 parece ter erguido algumas pontes, que se traduzem na atitude prepotente e ao mesmo tempo digna daquela avó.  “Apesar de seus fracassos políticos, a Revolução Mexicana foi um êxito cultural. Tornou evidente a continuidade cultural do país, apesar das suas fraturas políticas”, acrescenta Fuentes. Além de toda a beleza natural e cultural daquele lugar, talvez precise voltar lá para terminar de entender como se faz para sentir que se tem um passado, uma história para reivindicar. Felizmente, o culto da memória não se afogou no rio de sangue que brotou dos altares de sacrifício e nunca deixou de correr.

25/05/15 |
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Um Comentário
  1. Maria da Graça Falkembach permalink

    Digno de quem se deixou tocar pela história. Beijo grande! Tamanho família!

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