Ninfomaníaca: erotismo ou pornografia?

A diferença entre erotismo e pornografia não é estética nem quantitativa, é da posição ocupada pelos amantes.

Cada tanto essa polêmica retorna, se uma obra seria pornográfica ou, caso tenha pedigree intelectual, ou ainda griffe de autor, seu charme nos levaria à arte erótica. A coincidência da atual leva de filmes como, Azul é a cor mais quente (A. Kechiche), Ninfomaníaca (Lars von Trier) e Tatuagem (Hilton Lacerda), relançou a discussão. O senso comum tende a ver a diferença entre pornografia e erotismo em termos de bom gosto, linguagem sofisticada, enfim, sutilezas dentro de um mesmo espectro. Se o autor foi feliz em ganhar um público culto é uma obra erótica, se ficou no escuro da internet é pornografia.

A psicanálise abre possibilidade para outra posição: a pornografia é facilmente identificável. Essencialmente a temos quando a fantasia sexual é vendida com a ilusão de que todo sexo é fácil, barato e sem culpa. Na pornografia o encontro do desejo com o objeto é plano e bem resolvido, encaixe perfeito. Em outras palavras, quando as inibições ficam momentaneamente esquecidas e imaginamos que podemos gozar sem envolver nossa engrenagem neurótica. Já a erótica nos vende uma excitação sexual sem o recurso do atalho: nela, cena sexual segue sendo escorregadia, como a real, é um flash que momentaneamente se abre para em seguida declinar. A erótica carrega a plausibilidade e a descontinuidade do real enquanto a pornografia é pura imaginação sem barreiras e a ilusão de um gozo sem fim.

No início de Azul é a cor mais quente há uma cena de sexo entre duas mulheres que vem causando paradoxais comoções. Entre os incomodados estão os homofóbicos e conservadores, mas também há algumas lésbicas que se declararam mal traduzidas. Ou seja, desde pontos de vista antagônicos, o filme vem proporcionando debates. Quanto a Ninfomaníaca, que aborda a compulsão sexual de uma jovem que transa no atacado, a reação tem sido mais forte do que seu recente similar masculino, Shame (S. McQueen), sobre um homem com uma vida sexual igualmente ativa e à deriva.

Ao contrário do best seller Cinquenta tons de cinza (breve nos cinemas), essas obras não se prestam a fantasias masturbatórias. Ao contrário: o filme de Lars von Trier, por exemplo, apesar do sexo explícito, não serve para animar casais sem entusiasmo, nem sequer atividades solitárias. Joe, a personagem de Trier, conta suas aventuras sexuais para um circunspecto senhor que a encontrou machucada na rua e lhe deu abrigo. Eles discutem sobre a culpa dela, da qual o bom homem tenta aliviá-la, sobre o perigo de misturar sexo com amor e a suposta frieza da auto-declarada ninfomaníaca. A solidão dela, os incansáveis encontros, seu olhar insistente de busca e sedução, são mais tristes do que provocantes. A sexualidade de Joe parece-se muito mais com a vida real do que os encontros estereotipados dos protagonistas do livro de E.L. James. Mesmo assim, para desilusão das lésbicas que não se sentiram retratadas (outras sim, viram-se representadas), o cinema, mesmo quando se aproxima da nossa natureza neurótica, mostra um sexo visto de fora, pelo buraco da fechadura.

Do ponto de vista do espectador voyeur, a cena sempre será mais convincente do que o ato em si, pois as lacunas são completadas pela sua fantasia, que enxerga o que quer ver. São essas mesmas fantasias que ajudam e atrapalham a verdadeira vida sexual: ajudam porque é para realizá-las que o desejo se acende; atrapalham porque, embora o prazer seja possível e acessível, sempre é ameaçado pelas armadilhas do medo, das ambiguidades e inibições, fazendo com que os fatos sempre fiquem em dívida com os ideais.

Erotismo e pornografia não se diferenciam por uma questão quantitativa, sendo um mais explícito que o outro, há uma questão qualitativa em jogo. Na definição de Georges Bataille, no livro denominado O Erotismo, a fantasia erótica está associada à possibilidade de entrega, de dissolução de limites, algo mais próximo do encontro letal no clássico japonês Império dos Sentidos (N. Oshima, 1976). Para Bataille, “somente o sofrimento revela a inteira significação do ser amado”, pois na dor da paixão fica claro que ao mesmo tempo em que se conquista o outro perde-se o eu.

O sofrimento a que ele se refere é a consciência de que estamos rodeados de gente mas condenados a ficar sós, a sentir-nos incompreendidos, exatamente como a triste e solitária Joe. Ou seja, quando ganhamos o outro perdemos a nós mesmos, ficando, portanto, inevitavelmente insatisfeitos. Numa gincana de corpos que se desnudam e acoplam, a personagem de Trier segue em busca do que nunca encontra: do tempero do sexo, sua suprema graça. Talvez seja mesmo para provar a impossibilidade do encontro que ela tanto se empenhe, revelando-se uma mulher fria, distante, como a própria mãe.

O horror que as cenas de sexo explícito desses filmes têm causado intriga principalmente àqueles que se perguntam por que imagens de igual impacto envolvendo violência não são condenadas. Não é tão difícil entender essa diferença de pesos e medidas, pois a violência é uma forma de dominação, enquanto o erotismo é seu oposto, seu prazer depende do grau de entrega. A violência, principalmente o assassinato, corresponde ao absoluto controle sobre o outro. Quem tem a vida alheia nas próprias mãos nunca se arriscará a cair sob seu domínio, fascínio ou influência. Nada é mais temido do que perder-se no outro, experiência que todos têm e que remonta nossa condição infantil de inermidade, dependência e desamparo.

As obras de cunho pornográfico são as que aproximam o sexo da violência, no sentido em ambos o outro está sob controle. Nelas os parceiros respondem maciçamente ao desejo do outro, um sempre tem o que o outro quer, comportam-se como previsto, não há desencontros ou dificuldades em fazer o outro gozar.

Outra fonte de desagrado é a explicitação do gozo feminino ativo, da busca da mulher por um prazer que, conforme as convenções, deveria ser provocado nela, sem deixar clara sua vontade. A posição feminina, quer ela seja ocupada por um homem ou uma mulher, está associada à fantasia de passividade: só um desejo deveria orquestrar a cena, o ativo, masculino. No filme de Trier, Joe é uma caçadora, os homens suas presas certeiras, cada um para formas diversas de satisfação, e isso revela uma face indigesta do desejo feminino.

Mais uma vez, as mulheres pagam o preço do passado de todos nós, devem calar sua vontade, por serem potencialmente “a mãe”, cujo poder é o mais temido de todos. Ela encarna a ameaça de ser devorado, descartado ou insatisfatório. Longe desses riscos, na pornografia evidencia-se um desejo que parece ser masculino, mas se sobrepõe ao gênero: tudo funciona a contento, os gritos dela (ou do parceiro “feminino”) confirmariam a potência do membro “másculo”, ativo, do casal.

Em suma, Ninfomaníaca não é pornográfico, porque é muito próximo da nossa sexualidade neurótica. Não é erótico, já que é cético quanto às ilusões amorosas de perder-se no outro. É drama, como dramáticos somos, dentro e fora dos lençóis.

(publicado no caderno Cultura do jornal Zero Hora em 25/01/2014)

5 Comentários
  1. Vivi De Zorzi permalink

    … entre medos desejos, ganhos e perdas, o inexplicável se esclarece no gozo antológico suavemente pronunciado para a compreensão infinita da alma, eterna discussão da dúvida: “Eu só me encontro se me perco no teu corpo”

  2. Sugiro, para inclusão na lista de filmes do início do texto e enriquecer futuras reflexões, L’Inconnu Du Lac (Alain Guiraudie) e, tangenciando, Jeune et Jolie (François Ozon) e Concussion (Stacie Passon) – todos de 2013.

  3. luciana permalink

    Não sei até q ponto os espectadores compreenderão toda essa problemática, ando meio descrente da sociedade, sei q não devemos desanimar, mas me parece q toda essa exposição de atrizes nuas e certamente com seus corpos magros e perfeitos, só enfatiza a busca desesperada e o desrespeito pelo corpo femininos. Sinceramente, a maioria vai pra ver o q de pronográfico e excitante tiver nesses filmes, e aí vira pura apelação.

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