20 anos sem Cortázar

Sobre o aniversário da morte do escritor

Dia 12 de fevereiro fizeram vinte anos da morte do escritor argentino, radicado na França, Júlio Cortázar. Sua morada estrangeira não o impediu de fazer da língua espanhola um instrumento onde bem executar sua sinfonia de palavras. Foram anos politicamente muito duros, nos quais os mais sensíveis poetas e escritores latino americanos viviam vários tipos de exílio. O de Júlio foi político, mas também pessoal, ele encontrou em Paris sua melhor tradução. Quanto a mim, em minha juventude encontrei em seus textos o mesmo que a cidade luz lhe ofereceu.

Este imenso homem (tinha quase dois metros de timidez) era fã de carteirinha de Edgar Alan Poe, teve seu primeiro conto importante reconhecido e publicado por ninguém menos que Borges, mas tinha sua própria visão do fantástico. A estranheza de suas histórias que mais me cativavam morava dentro de casa. Uma casa comum, uma vida comum, como a sua, como a minha. Apenas para evocar, há a “Casa Tomada”, no qual dois velhinhos vão deixando de freqüentar as peças da sua casa nas quais ouvem um barulho que consideram estranho, sem jamais verificar do que se trata, até serem totalmente expulsos por um invasor insignificante. A história de um sujeito que foi colocar uma blusão e morreu sufocado por ele, ou do casal que jogou um fio de cabelo no ralo, para depois destruir a casa em seu encalço. Deviam ser os mesmos encanamentos onde habitava “El Oso de los Caños”, animal peludo que se confunde com a água, mas é ele que faz os barulhos que escutamos no silêncio da noite e acaricia nossa cara quando lavamos o rosto pela manhã. E assim eu poderia seguir citando por muito tempo, passando por meu predileto, que é um sujeito que vomitava suaves coelhinhos brancos, o que não era uma doença, apenas um pequeno constrangimento e precisou explicar o fenômeno por carta para a dona do apartamento que se incumbiu de cuidar. Assim contadas as histórias parecem pueris, mas vale a pena lê-las, garanto que mais nada na vida será tão banal.

Cortazar pertenceu a uma geração de escritores sem medo de ser fantásticos, mas somente ele conseguiu levar um sinistro digno de Poe à sua verdadeira morada: a vida cotidiana. É quando estamos atravessando o mesmo corredor noturno para ir ao banheiro, como fazemos todas as noites, que vemos aquela sombra, escutamos aquele barulho diferente na cozinha… O sinistro ocorre justamente quando o familiar assume uma conotação estrangeira. Talvez por isso ele tenha tido que ir morar tão longe, para falar do que é tão próximo. Só mesmo no exílio para ter a coragem de enxergar de fora o que sentimos mais de dentro. Pena que desta viagem ele não possa escrever de lá, para continuar traduzindo o terror que se esconde nos cantinhos escuros da casa e da alma.

24/03/04 |
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