A Arte de Xerazade

Prefácio do livro: “Narrar, ser mãe, ser pai & outros ensaios sobre a parentalidade” de Celso Gutfreind, Ed.Difel, 2010

O livro As mil e uma Noites é uma coleção de histórias, um mosaico de sabedoria e um retrato das paixões humanas, mas há uma história central que costura todas as outras: nessa história, uma mulher desafia e vence a morte somente com palavras.

Havia um príncipe, chamado Xeriar, que sofreu uma forte desilusão amorosa. Sua mulher o traía com os escravos sempre que ele se ausentava do palácio. Quando descobre, ele a mata e depois, deprimido, vai visitar seu irmão. Seu mau humor somente melhora quando descobre que seu irmão, um soberano ainda mais poderoso do que ele, não tem tratamento melhor vindo das mulheres. A esposa do irmão também o trai. Os dois, irmanados na dor, saem a caminhar pelo mundo em busca de alguém que seja ainda mais desgraçado do que eles.

A sorte, que não os ajudara até então, vem agora em seu auxílio. Tão logo iniciam o percurso eles observam de longe um Ifrite, que é uma espécie de demônio, um ser maléfico inimigo da raça humana, com sua mulher. Depois sabemos que a belíssima esposa do monstro era uma noiva raptada no altar. O Ifrite não percebe a presença deles, mas a mulher sim, ela os chama e aproveita que o marido está descansando para traí-lo, com ambos. Para tanto, chantageia os irmãos: ou eles se deitam com ela ou ela acorda o marido e ele os mataria. Sem saída, os dois fazem o que ela manda. Ela pede ainda seus anéis como lembrança do momento. Enquanto ela guarda os anéis eles percebem a infinidade de anéis que ela já possuía, fruto de múltiplas traições.

Os irmãos tomam essa experiência como uma lição: todas as mulheres são pérfidas e o amor e a fidelidade não existem. Nem mesmo os demônios, seres poderosos, estão a salvo. A partir desse dia Xeriar resolve que vai se casar todos os dias e matar a mulher após a noite de núpcias. Essa seria a única segurança de que não seria traído. É nesse contexto que Xerazade, a filha do Vizir, desafia a morte. Empenhada em suspender esse massacre sistemático, ela casa-se com Xeriar e começa a lhe contar uma história que emenda noutra história e que praticamente não tem fim. Curioso e encantado pela narrativa ele vai adiando a morte de Xerazade. Contando um conto e acrescentando dias à sua vida, ao cabo de mil e uma noites ela dobra o coração do marido. Não haverá mais mortes, ele está curado de sua dor e voltou a acreditar no amor.

A história de Xerazade é de uma narração bem sucedida. Frente ao desafio maior que é a melancolia de Xeriar, afinal ele nunca se recuperara do amor perdido de sua primeira esposa, ela conta histórias e elas abrem um caminho nessa alma endurecida e devolvem a ele uma confiança básica e a alegria de viver.

Essa história nos toca por que é de certa forma a de todos nós. Todos tivemos uma grande decepção amorosa com a nossa mãe. Um dia descobrimos que ela não é só para nós, outras pessoas e interesses povoam sua vida e é bem duro saber isso. Não é exclusivamente nossa presença que a preenche e a faz feliz. Mas é essa mesma voz feminina quem vai nos restituir a confiança nesse amor que perdemos. Toda mãe é de certa forma uma Xerazade e é sobre isso que trata este livro. Mas essa função, embora primeiramente desempenhada pela mãe, pode muito bem ser desempenhada pelo pai. E mais, é a posição do pai frente à mãe que vai marcar todo tempo o discurso que ela faz ao filho.

O que Celso vem nos trazer, nesse momento em que tanto se insiste nas determinações genéticas, nos humores hormonais, na obscura arquitetura do cérebro, é a lembrança que somos tecidos de histórias. Para ser pais, é preciso narrar, mas a premissa é ter sido filho e saber disso de alguma forma. Para nos permitir essa compreensão este livro faz uma linda análise de uma bela obra: o Peixe Grande (Tim Burton, 2003).  Nesse filme, um jovem homem, cujo problema era que seu pai contava histórias demais, precisa tornar-se narrador para vir a ser pai, pois seu filho estava por nascer. Alegoricamente nessa história, morre um velho narrador para que possa nascer um novo e por sua vez criar um futuro contador de histórias.

Porém, nem todos vivem no país das fábulas, como o pai deste filme, mas todos, por mais que seus discursos sejam tecidos de atos, silêncios, resmungos e expressões, tenderão a contar sua história de algum jeito. Até o pai de Kafka, tão recriminado na carta a ele dirigida, tinha suas cantilenas desagradáveis para descrever-se ao filho, este sim tornado um grande narrador. Já o silêncio casmurro, esse proveniente de algo que não consegue ser dito, porque não foi chorado e muito menos pensado, gera buracos na identidade daqueles que nascem banhados nele, coisas que não se deve sentir, que não se deve ser. Acompanhado de Bettelheim, Celso também nos explica sobre isso.

A sorte, para enfrentar essa difícil tarefa, é que bebês parentalizam os pais (p.44). Porém, para bancar essa posição, os pais precisam deixar de ser filhos, e é contando que o filho se esvazia  para ficar repleto do pai que pode ser(p.84), como fica claro na analise que Celso faz da poesia de Carpinejar. Afinal, narrar é mais que um instrumento que colabora no processo de parentalidade: é indispensável, confunde-se com ele (p.13).

Pais devem fazer redescobertas inéditas (p.16). Se descobertas outra vez, não são inéditas, se inéditas não serão redescobertas, certo? Errado. Vários autores têm pensado a respeito de temas como originalidade, autoria, plágio, repetições surpreendentes de temas e elementos que voltam a materializar-se em obras de autores de lugares e épocas diferentes. Esses elementos ressurgem em parte como um telefone sem fio, uma metáfora em constante transformação, que repete, evoca, mas vai corrompendo o sentido do previamente dito, por outra parte como uma assombração, uma metonímia, pedaço sinistro porque é ao mesmo tempo familiar e desconhecido, que nos assombra de tanto em tanto.

Borges brincava muito com isso e foi ele o maior responsável por colecionar várias dessas anedotas de traços ou objetos que insistem em reaparecer ao longo da história da literatura (ver o conto A flor de Coleridge, entre tantos outros). Pensando desde uma perspectiva “Gutfreindiana” isso não soa tão estranho: viver é continuar uma história que faz parte da história de alguém que veio antes, de um tempo, de um grupo, de uma época, de tal modo que estamos sempre lidando com restos, troféus e assombrações do passado.

A boa mãe, a “mãe suficientemente narrativa”, como já foi conceituado previamente pelo próprio Celso, os “pais suficientemente narrativos” como são tão bem descritos neste livro, são aqueles que fundam no filho uma identidade tecida de palavras, historias.

Narrar a própria história para seu filho, contar-lhe fantasias, ficções, ser capaz de comentar algo que se viveu, nem que seja um episódio de trânsito, da rua, de um cachorro da infância, de algo que se leu no jornal e o impressionou, vai constituindo a subjetividade do filho. Isso não é acessório, como se fosse um adubo que ajudaria a plantinha a crescer melhor, isso é a própria terra onde germina a identidade de um filho. A boa troca simbólica entre a mãe e o bebê não é, como pensa certo senso comum, apenas uma possibilidade que enriqueceria o sujeito e que o deixaria mais maleável, mais forte frente às vicissitudes da vida, portanto robusto emocionalmente. Nesta compreensão, a maternagem estimulante possibilitaria a plenitude dum sujeito que já estaria dado na sua herança genética e nas boas condições de sua vida ao mundo. Na prática, essa troca não é acessória, não é item opcional, ela é absolutamente fundamental, é ela que permite o bebê fazer seu segundo nascimento, o subjetivo.

Ser parido é apenas chegar, mas é só quando nos nomeiam e falam conosco que viramos gente. Citando Bernard Golse, Celso nos lembra que o recém nascido seria um historiador em busca desesperada de uma história. É preciso construir a representação de sua história, dispondo de meios para contá-la, incluindo quem a ouça e acolha a incerteza do que ainda não encontrou um nome. A história é a busca dos nomes (p.12).

Isso tudo só se torna difícil porque os adultos, categoria na qual tendem a se incluir os pais, queiram ou não, são muito chatos. Adultos são burocratas se abandonam a prática da infância (56), nos conta Celso, lembrando aqueles sujeitos bizarros que ficam contando dinheiro e estrelas em vez de viver, personagens da história do Pequeno Príncipe. Uma obra abordada neste livro a partir da pergunta do que é irrita a tantos nessa história tão popular, transformada em escolha de miss. O Pequeno Príncipe é um Best seller que, de solavanco em solavanco (da crítica), vem resistindo e sendo reeditado a cada nova geração de infâncias (p.54). Os adultos correm o tempo todo, fazem muito barulho por nada e nunca respondem ao que se pergunta, diz Celso, parafraseando Alice do País das Maravilhas.

Para escutar crianças é preciso parar de correr, e principalmente, de ter medo da própria infância. Este livro é recheado de relatos clínicos, casos contados com estilo literário. Isso não é subterfúgio, tarefa de sedução do leitor, é uma convicção do autor como clínico e como escritor: ele defende o direito da psicanálise de ser literária (p.70), que podemos descrever um prontuário sob forma de conto, pois a ficção nos torna mais sensíveis do que o texto técnico e também guarda mais verdade (p.114). Dr. Gutfreind, o psiquiatra, psicanalista, conhecedor da psique dos bebês, suporta a presença da infância dentro de si. Isso dói, está longe de ser uma pueril Disneylandia particular, isso fala, como diria Freud, e que coisas duras isso fica nos dizendo. Por exemplo, que nossos pais nem sempre nos acharam perfeitos, nos criticaram dolorosamente, e que nós também soubemos odiá-los, queríamos que morressem, melhor, que nunca tivessem nascido, esquecendo das graves conseqüências disso para a nossa própria existência. As sobrevivências que guardamos da infância são o elo que encontramos para escutar as crianças. Isso serve para o Celso pai, o Celso psicanalista e é isso que ele nos oferece neste livro.

Não tenha medo, convoca-nos com voz de sereia sedutora para a aventura de entrar na própria infância, e na de nossos filhos e pacientes, sairemos vivos dessa empreitada e muito mais interessantes, assegura-nos. Mas isso não deve ser tomado como um livro de receitas, não há receitas. Este livro não é de auto-ajuda e, justo por isso, corre o risco de ajudar (p.9). Em se tratando de pais, pior que um conselho é um conselho bom. Trabalhar com pais é lhes devolver a confiança perdida nos desvãos de suas histórias de filhos (p.16). Podemos assegurar aos leitores potenciais desta obra que o efeito é esse mesmo: longe de nos desautorizar a contar nossas histórias e com isso fazer a história alheia, como pais ou como terapeutas, este livro nos encoraja, nos fortalece.

Iniciamos com a metáfora de Xerazade por que o que está em questão nesta obra é mesmo a vida contra a morte. Sem alguém que faça um invólucro de palavras, uma colcha subjetiva que nos abrace nós não vivemos, ou então submergimos numa não-vida como podem ser certas psicoses. E em segundo lugar, por que os psicanalistas são chamados quando a função Xerazade falha, e cabe a nós desenredar o fio dessas tantas histórias e devolver a palavra a quem de direito .

Concluindo com Celso: Enfim, poder se refugiar com lucidez em um canto de sonho, nos momentos difíceis da vida, é um recurso fundamental na saúde de cada criança e de todos nós (p.112).

19/03/11 |
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