A ex-madrasta

sobre os efeitos da separação sobre os padrastos e madrastas que perderam contato com seus enteados.

O desencontro se deu numa loja de departamentos: sem ser vista, ela pôde observar com calma a moça que circulava entre as araras. Tentava em cada traço recordar a garotinha insone que lhe pedia muitas histórias antes de dormir. Foram tantas noites juntas lutando contra os medos do escuro. A jovem mulher não evocava em nada sua menina, sua boneca Emília depois de engolir a pílula falante. Tornara-se uma desconhecida. Depois de tantas conversas sem pé nem cabeça, hoje não imaginava nada sério para lhe dizer. Devia estar com vinte e quanto? Passara-se mais de uma década da separação e todas as fantasias de manter contato foram dolorosamente dissolvidas. No fim do casamento, parecia-lhe óbvio que manteriam um laço. Com o tempo sua incredulidade foi dando lugar à resignação: era apenas a ex-esposa do papai.

As novas configurações familiares produzem padrastos e madrastas órfãos de uma família que sentiram como sua. As razões para esses afastamentos são infinitas, mas a central é que essas relações com os enteados são vistas como um gesto romântico, que consiste em cuidar e valorizar os filhos do outro. Alguns vínculos podem se tornar fortes, porém poucos driblam o fim do casal.

Depois de uma separação os filhos mantêm uma fantasia duradoura de reunificar a família. Aliás, mesmo que já não se gostem seus pais ainda serão obrigados a se encontrar, discutir providências, finanças, partilhar festividades, resolver problemas. Já o novo casal do pai ou da mãe é visto como uma obstrução a esse fantasioso propósito de reencontro do casal parental. O amor recém chegado sempre vai acabar herdando uma culpa, que em geral não teve, pelo fim de uma família, que podia ser ruim, mas era a que originou aquele filho.

Claro que há exceções, mas frequentemente, quando chega ao fim um relacionamento onde o filho é só de um, parece ser a hora perfeita para uma espécie de vingança. O padrasto ou madrasta serão condenados ao ostracismo, numa demonstração de fidelidade aos pais, e ressurgirá o despropositado desejo de que o casal original volte a se encontrar. Numa separação, frente à partilha dos afetos, o ex-enteado tomará o partido do seu pai ou mãe, além de deixar claro aos pais originais que nunca os substituiu, apenas aceitou aquela madrasta ou padrasto como parte do pacote do novo casamento.

Em pé, na loja de departamentos, lembrava o passado quando a garota a fizera sentir-se quase uma mãe. Seu ex-marido aprovava a intensidade da relação, a mãe da menina educadamente aceitava a ajuda. Hoje, sem ao menos um nome certo para o que sente, resolveu sair de cena sem chamar a atenção.

(Publicado na Revista Vida Simples, edição de outubro de 2011)

6 Comentários
  1. Antônio Louzada permalink

    Prezada Diana!
    Me separei da minha primeira mulher há mais ou menos 20 anos. Minha filha tinha menos de dois anos. Algum tempo depois comecei a namorar minha atual esposa e estamos juntos até hoje. Minha filha, hoje com 22 anos, tem uma relação de filha e mãe com minha mulher… Hoje em dia, se nos separássemos, elas já tem uma relação de adultas e seguiriam amigas como são. Mas lendo tua crônica, me transportei para o inicio da relação e caso tivéssemos nos separado lá, certamente a separação das duas teria o peso da morte de um filho para minha mulher… Ainda bem que não vivemos esta tragédia… Ser mãe de uma “filha morta” que está viva, deve ser uma dor insuportável!

    • Diana permalink

      poucos percebem as sutilezas desses vínculos que não são carnais, mas são viscerais!
      abraços e obrigado pela tua leitura!
      diana

  2. Marcos Gardene permalink

    Adoro nosso encontro mensal, o que vc escreve mexe muito comigo, mas não sei dizer como, só sei que fico pensando no que li e sinto que lá dentro do coração muita coisa tá guardada, muita memória, muita saudade de tantas coisas vividas. Um beijão!

    • Diana permalink

      a escrita sabe ser solitária, como cantar alto para espantar o medo e a solidão de viver. obrigado pela companhia!
      abraços
      diana

  3. Catarina permalink

    Boa tarde, me separei recentemente e continuo vendo meu enteado, ele tem apenas 4 anos, não sei se faço certo, mas enquanto ele quiser continuar me vendo, estarei aqui para ele, pois criamos um vinculo muito forte e seria muito doloroso ser rompido. Espero estar fazendo o certo para ele.

    • Diana permalink

      que sorte de vocês dois a permanência desse vínculo, certo que celebra o bom encontro que conseguiram ter! que dure! abraços
      Diana

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