A força das palavras de um pai

Resenha do livro O Conto do Amor de Contardo Calligaris

Contardo Calligaris estréia na ficção: lançou, pela Companhia das Letras, O Conto do Amor (128 páginas, R$34,00). Já estamos acostumados aos seus artigos semanais na Folha, onde consegue, em tão exíguo espaço, a proeza de fazer um pequeno ensaio. De qualquer assunto, sempre extrai um novo sentido, nos surpreende com uma ou duas voltas a mais no raciocínio que já temos.    

Na largada, este livro lembra a arquitetura de Quase Memória de Carlos Heitor Cony. Naquele, o filho recebe uma caixa que só poderia ter sido ser mandada pelo pai, mas como, se o pai está morto? A partir desse mote, abrem-se inúmeras lembranças sobre quem foi esse homem, e que marcas deixou no filho. Já no livro de Calligaris, os últimos dias de vida do velho médico dão ocasião a uma das raras conversas que ele tem com o filho, a personagem Carlo Antonini. Só que o pai, talvez movido pela senilidade, profere um aparente disparate: ele acredita ter sido, numa outra vida, um auxiliar do pintor renascentista Sodoma. Após a morte, restam os diários do pai e esse fiapo de conversa delirante. Desconfiando de que seja uma afirmação insana, mas acreditando que ali se esconda alguma verdade, Antonini mergulha no passado de seu pai.

Carlo e seu pai são como a maioria de nós, de longe se amam, de perto se desencontram. A expressão do amor de um filho pelo pai, e do pai pelo filho, é uma das questões abertas de nosso tempo. Nessas relações, o silêncio impera, sempre parece ser maior do que quaisquer palavras. As perguntas chegam tarde, as explicações não colam. Quando algo finalmente está sendo dito, julgamos ser tarde, ou então cedo demais. É um amor que não acha encaixe, não sendo, apesar disso, menos intenso e consistente, apenas é meio desajeitado, e raramente encontra uma via fácil, direta.

Casamento e mortalha, no céu se talha. Esse é o dito que tenta neutralizar o fato de que somos fruto de um acaso. Nem os céus nem ninguém tinham garantias de que nossos pais se encontrariam, se amariam (na melhor das hipóteses) e que disso resultaríamos nós. Infelizmente, tampouco são os céus que estão cuidando para que nossa existência dure o tempo necessário para os seus desígnios, por isso, convém olhar quando se atravessa a rua. Essa expressão visa inverter a ausência de sentido da existência e da finalidade de cada um de nós. Existimos somente pelo acaso que reuniu nossos pais. Por causa disso que (mesmo sabendo dessa falta de razão), nos impelimos a investigar o que foi que os uniu, a descobrir quem eles foram, como foi que se amaram, em que outras tramas amorosas se meteram, o que lhes faltou viver…

Nessas frestas procuramos saber algo sobre nós e, não raro, encontramos, pois as pistas estão ali. Não queremos saber o que sempre nos disseram que eles eram, e o que queriam que fôssemos, indagamos o subtexto, os pequenos ou grandes segredos que toda família tem. Esse tipo de investigação geralmente ocorre após a morte dos pais, não necessariamente a morte física, mas sua progressiva diminuição no papel real da nossa vida. Um filho está interessado exatamente no que foi esquecido, silenciado, no que ficou pendente, ou que causou arrependimento, saudade, mágoa, ou ainda, um secreto orgulho nos seus pais. É quando eles de fato morrem que vamos ousar as maiores perguntas, aquelas que o pai não iria responder, porque, na verdade, é a si mesmo que o filho indaga: o que farei com esta herança de uma vida que ainda pulsa em mim, mas que se foi?

Essas perguntas sobre os pais nos movem, mas, em geral, nos incitam apenas a uma jornada interior. No livro de Calligaris, ao contrário, essa busca ocorre do lado de fora, como uma investigação real, cheia de andanças e descaminhos. Tal como Carlo Antonioni, por melhor que um pai tenha sido, queremos encontrar seus furos, não cessamos de lhe atribuir algum mistério, algo no qual transcenda a vida que testemunhamos. Ou então, supomos que, antes do nosso nascimento, algo de muito empolgante tenha acontecido, afinal, nada como ser herdeiro de alguém interessante para valorizar nossas origens, das quais estamos sempre meio queixosos, não importa o que tenham nos oferecido.

É atraente a idéia de que nossa existência guarde um enigma, como se fôssemos uma mensagem cifrada lançada pelos pais para o futuro, tendo um destino que um dia aconteceria e revelaria nosso sentido. Assim, a vida de cada um parece ter uma razão que deve ser indagada aos que a inauguraram. Na verdade, é o inverso: nossos pais é que são uma incógnita para nós, é neles que buscamos, nem que seja uma migalha de discurso que empreste uma missão para a nem sempre fácil tarefa de viver. O livro é sobre essa busca, Antonioni decifra e encontra uma nova faceta do pai. Bem, lapidar um pai é uma das tarefas da existência, uma das razões de uma análise, um dos trabalhos da ficção, e é sempre bom ver alguém se divertindo com isso. Mas o livro traz muito mais, confira.

Jornal Zero Hora. Caderno de Cultura, 24 de maio 2008

24/05/08 |
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