A infância entre coelhos, gatos e doidos.

Numa época em que estamos mais rodeados do que nunca, mas potencialmente desamparados. Numa época em que nós e o mundo mudam de proporção aos nossos olhos o tempo todo, nada como uma história onírica cheia de animais mágicos para nos representar. Trechos do capítulo X do livro “Psicanálise na Terra do Nunca”, dedicado ao clássico de Carroll

Aventuras de Alice no país dos sonhos

Alice, seu País das Maravilhas e suas aventuras através do espelho seguem angariando legiões de fãs e estudiosos. Os leitores eruditos encontram em suas linhas todo tipo de sabedoria e maluquice: desde complexos enigmas matemáticos até não menos cabeludas patologias psíquicas. Discutem-se essas inferências praticamente desde sua publicação, em 1865. É inútil colocar mais lenha nessa fogueira, que deve ser deixada aos cuidados dos ativos membros das diferentes Lewis Carroll Society distribuídos ao redor do mundo todo, especialistas na matéria.
A história de Carroll tem a estrutura de um sonho, ou melhor, de quase um pesadelo desses nos quais se sai de uma enrascada para cair em outra. Porém, só poderíamos saber a razão de ser de cada um de seus elementos se fossemos psicanalistas do autor e a história de Alice fosse um relato feito durante uma sessão de análise. Já uma obra literária dispensa essa escuta, ela é um sonho oferecido à fruição coletiva e como tal sonha-se em cada um de seus leitores. Portanto, resta-nos apenas versar sobre os efeitos dessa história, deduzir o segredo de sua magia.
A pergunta que nos colocamos aqui é bem mais simples do que as respondidas pelos teóricos das diversas áreas que esmiúçam o conteúdo dessa obra. Seus estudos constituem uma inesgotável fonte de pesquisa para quem estiver em busca de referências históricas, da fonte de onde o autor retirou as poesias, charadas e personagens dessa história, assim como o que cada uma delas significa. Já nossa questão é: o que a faz ser tão tocante para tantos por tanto tempo? O começo da resposta também é direta e simples: o pensamento de Lewis Carroll era simpático à representação do mundo e aos sentimentos que são peculiares às crianças, gostava de exercitar-se na lógica infantil e soube descrevê-la de forma que adultos e crianças se sentissem implicados nela. Ele era grande apreciador de charadas e jogos de palavras, o que para as crianças é motivo de grande encanto.
Boa parte da graça da infância provém do jeito canhoto e literal através do qual as crianças compreendem o que se diz e faz. As cenas sociais ou domésticas constituem enigmas que elas precisam decifrar, os quais podem parecer bem estranhos aos recém-chegados nesse mundo, exatamente como ocorria com Alice em suas andanças na onírica terra das maravilhas. Brincar com múltiplas interpretações de uma palavra é fácil para aqueles que lembram bem que há muito pouco viveram na carne essas confusões, já que estão ainda familiarizando-se com a linguagem e os costumes do planeta dos adultos. Quando crescemos, junto com a maior parte das memórias da infância, perdemos a familiaridade com sua lógica, esquecemos que quando pequenos, ao nosso modo, também filosofávamos, tentávamos, de maneira rudimentar, compreender o mundo. Carroll nos devolve a conexão com esses pensamentos perdidos porque, enquanto artista e matemático, sempre os apreciou, como se fosse uma língua arcaica que ele nunca deixara de praticar. Para tanto, manteve-se próximo das crianças, ás quais contava histórias e de cujo senso de humor partilhava.

O mundo louco das pessoas grandes

Vista de fora, focada com a lente infantil, a vida dos adultos se parece com a do Coelho Branco, que corre atrás de objetivos ridículos, a mando de uma rainha ensandecida. Um mundo de loucos, já dizia o Gato de Cheshire:
“‘Somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca’,
‘Como sabe que sou louca?’, perguntou Alice.
‘Só pode ser’ respondeu o Gato, ‘ou não teria vindo parar aqui. ’
Alice não achava que isso provasse coisa alguma; apesar disso, continuou: ‘E como sabe que você é louco?’
‘Para começar’ disse o Gato, ‘um cachorro não é louco. Admite isso?’
‘Suponho que sim’, disse Alice.
‘Pois bem, continuou o Gato, ‘você sabe, um cachorro rosna quando está zangado e abana a cauda quando está contente. Ora, eu rosno quando estou contente e abano a cauda quando estou zangado. Portanto sou louco.’
‘Chamo isso ronronar, não rosnar’, disse Alice.
‘Chame como quiser’, disse o Gato.”

Nós, que já somos crescidos, parecemos ser mais sérios do que as crianças que só sabem brincar. Mas estabelecemos como certas ou erradas condutas, cujo critério é insondável à lógica – por que seria certo abanar o rabo quando se está contente e errado fazê-lo quando se está brabo? Vista de fora, nossa vida é estranha, entregamo-nos a desígnios aparentemente fúteis, que em geral não compreendemos. Afinal, por que usamos carros tão maiores do que precisamos para nos locomover? Por que nos importa tanto quantas vezes um atleta consegue colocar a bola dentro de um marco com uma rede? Para que andar de salto, se é incômodo para caminhar?
Somos tal qual o Chapeleiro Maluco, que vivia condenado a um eterno chá da tarde, ou como as Rainhas esbaforidas que percorriam seu mundo de tabuleiro com a mesma pressa inútil do Coelho. São as mesmas determinações inconscientes que regram a lógica estranha dos sonhos, as que influenciam decisivamente nas escolhas da vida e determinam o nosso modo de ser: as fobias, os preconceitos, as dificuldades bobas que nos atrapalham, as compulsões e os desejos que temos. Nossa mente é similar ao País das Maravilhas: um território imprevisível, paradoxal. Se os adultos padecem de males e têm preocupações difíceis de entender para eles próprios, imagine então como é difícil para as crianças, que em geral são levadas na corrente deles sem maiores esclarecimentos. O mundo gira e gira rápido, mas para onde mesmo vamos?
Resta aos pequenos a passividade de serem arrastados de uma cena à outra, exatamente como ocorria com Alice. Eles nem sempre sabem aonde querem ir, nem para fazer o quê, mas poderiam ser consultados, ou ao menos informados. O problema é que as crianças raramente têm claro quais são suas prioridades, resta-lhes obstruir as ordens dos adultos com alguma birra, argumentando, ou até refugiar-se em suas brincadeiras e fantasias.
Depois de muitas aventuras, há um diálogo de Alice com o mesmo gato, quando ela lhe pergunta que caminho deve tomar para ir embora, o leitor pensaria que para ela já basta de andar à deriva, saindo de uma situação absurda e caótica para entrar em outra. Parecer-nos-ia natural que ela quisesse voltar para casa, junto de sua gatinha Dinah, que não sorri, porém tampouco fica desaparecendo no ar aos pedaços. Essa dedução é resultado da angústia que esse texto causa: uma história na qual as andanças da personagem por diversos lugares bizarros, que em geral lhe são incompreensíveis e frequentemente hostis, é tão acelerada e repetitiva que até a versão de Walt Disney é inquietante. Mas não é o caso de Alice, essa viajante curiosa. Na verdade ela está em busca de novas aventuras, por isso responde ao gato que só lhe interessa chegar a “algum lugar”.
As crianças não se angustiam tanto com a experiência do desconhecimento e de ter pouco controle sobre as escolhas, pois essa é sua vida. O único antídoto contra essa deriva é a presença de algum adulto em quem elas possam confiar, mesmo que ele seja um trapalhão bem intencionado, como o Cavalheiro Branco. É uma garantia mínima, para contentar alguém tão pequeno com desafios sempre gigantescos. O caráter destemido de Alice reflete a inocente coragem natural das crianças. O tempo passa e, graças ao fato de que aprendemos com a experiência, vamos tornando-nos cada vez mais cautelosos, infelizmente ao preço de subjugarmos boa parte da curiosidade.
Mas as crianças têm seus próprios problemas: elas ficam mudando de tamanho, e isso é muito incômodo. Certamente elas crescem, porém isso não acontece de forma linear. Como Alice, elas são acometidas de surpreendentes espichos. Além disso, elas convivem com crianças de idades e ritmos de crescimento diferentes, por vezes sentem-se grandes frente aos outros, em outras situações são pequenas e, no meio dos adultos, tudo ocorre nas alturas. Os velhos para elas também constituem um enigma: sendo tão mais velhos por que não seriam enormes? Por que pararam de crescer? Ao contrário, são frágeis e não raro pequenos. Viver é mudar de tamanho o tempo todo, por isso as alterações de estatura constituem uma das poucas coisas de que Alice se queixa nas suas andanças oníricas.
Mesmo que no País das Maravilhas e atrás do espelho não se pare de encontrar criaturas de toda espécie, na prática, ao longo de suas aventuras, poucos falam com Alice. Não é que lhe sejam indiferentes, estão visivelmente interessados em contar-lhe suas histórias, expressar seus pensamentos, cantar para ela suas músicas, recitar enfadonhas poesias. Quando algum diálogo é bem-sucedido, o que é raro, isso só ocorre após muita insistência dela e cômicos mal-entendidos. Alice não cessa de se surpreender sobre o pendor daquela gente, se é que se pode chamá-los assim, para ofender-se e dar-lhe ordens. De um jeito ou outro, os diálogos persistem somente enquanto a menina escuta e obedece, mas se interrompem assim que ela opina, solicita uma informação ou favor. Essa é uma experiência própria da infância que não raro se perpetua ao longo da vida: a maior parte dos nossos interlocutores não está interessada em escutar e ajudar. Todos querem falar, ser ouvidos, mas a triste constatação é que poucos realmente escutam. São as exceções a esse quadro que fazem as grandes amizades e os verdadeiros amores, que são, como se sabe, muito poucos. Em nosso mundo ou no dela: “‘isto aqui é tão solitário’, disse Alice, melancólica; e à ideia de sua solidão duas grossas lágrimas lhe rolaram pelas faces”.

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