A infância invade o conto de fadas: sobre os 200 anos de andersen

Interpretação psicanalítica dos livros de J. K. Rowling

Mesmo que nunca tenha lido Andersen você o conhece. Talvez apenas não saiba a quem endereçar a gratidão por ter-se embalado nas suas fantasias. Qualquer um de nós já sofreu com a história do Patinho Feio ou se divertiu quando a criança disse que o monarca estava nu em a Roupa Nova do Imperador. Por terem elementos dos contos folclóricos, suas histórias às vezes se confundem com eles, como se também fossem milenares, por isso muitas vezes não são creditadas ao seu criador. Se fosse vivo, provavelmente Andersen tomaria esse equívoco como o maior elogio a sua obra.

Andersen foi um dos inventores da literatura infantil, seus predecessores ilustres no território das fadas, Perrault e os irmãos Grimm, escreviam para adultos, ou melhor para todos, pois não havia essa divisão etária na literatura. Embora tenham compartilhado o mesmo período histórico, com apenas uma geração de diferença (o mais velho dos irmãos Grimm tinha 20 anos quando Andersen nasceu), o jovem dinamarquês não possuía a mesma postura reverencial do que seus colegas alemães quanto ao conto folclórico. Ele fazia literatura explicitamente: para tanto alterou os relatos da tradição como quis, terminava contos de outra maneira, usava partes de contos folclóricos para novos enredos, apresentava um desprendimento que parecia vetado aos folcloristas.

É certo que tanto os Grimm quanto Perrault tomaram liberdades de narrador, enfeitaram e recortaram as histórias da forma necessária para tornar tramas folclóricas interessantes para o seu público. Perrault floreou as histórias ao estilo da corte da época, enquanto os Grimm as encaixaram nos valores morais que pretendiam promover para a consolidação da nação germânica que o movimento romântico idealizava. Andersen também tinha suas segundas intenções, para tanto escreveu inúmeras histórias de insistente conteúdo cristão. Porém, as coincidências com seus predecessores terminam aí. Há uma subjetividade eloqüente em seus personagens, uma representação literária do sofrimento dos pequenos (os pobres, as crianças) que empresta a suas histórias um caráter até então ímpar. A novidade não está nos temas, está no enfoque.

Suas histórias por vezes eram estruturadas como contos de fadas clássicos, outras, eram fábulas morais com forte densidade cristã, ou apenas contava situações inusitadas que traziam alguma lição, ou ainda escrevia crônicas tristes que pinçava de seu cotidiano, cuja única magia estava em sua sensibilidade particular com os desfavorecidos da sorte. A questão que se poderia colocar é: o que fazia a unidade em sua produção, que lhe valeu tantos créditos até hoje? É muito difícil classificar a obra de Andersen, sua imaginação prodigiosa, aliada à falta de padrão literário, faz dele um escritor único. Não é assim tão simples dizer que ele escrevia para crianças, suas intenções como autor provavelmente visavam todas as faixas etárias, mas seu enfoque inaugurou um inédito espaço de identificação e tradução para a infância, particularmente no que ela evoca de sentimentos de fraqueza e desamparo.

Andersen intuitivamente percebeu a revolução que se processava quanto à concepção da infância e tomou parte dela. Seus textos incluem as crianças, seja como heróis protagonistas ou mesmo usando a lógica infantil. Ao contrário dos contos de fada, os heróis infantis de Andersen possuem uma subjetividade complexa. Nos relatos da tradição a infância é considerada uma etapa de impotência a ser superada, enquanto ele lhe emprestou encanto e nobreza. Além de perceber e documentar os sofrimentos infantis, ele defendeu explicitamente o direito da criança à fantasia, assim como o fato de que os mais jovens foram, cada vez mais, tornando-se depositários e promotores do pensamento mágico. Nas poucas décadas que o separam dos irmãos Grimm uma mudança se processou e Andersen foi seu porta-voz: o território fantástico, outrora identificado com as mentes mais simples, os camponeses, passou a ser de serventia das crianças.

Nesse sentido, do montante díspar da sua obra cabe-nos destacar três eixos que traduzem esta tendência: o dos personagens infantis que falam pelas crianças, traduzindo seu sofrimento e temores, dos quais O Patinho Feio é o mais importante representante; o da animação de objetos, como os brinquedos, para representar a impotência dos pequenos, incompreendidos e cheios de desejos que ninguém escuta, vide o Soldadinho de Chumbo; por último, o do empréstimo de um papel de protagonistas às crianças no contexto de histórias de conteúdo aparentemente folclórico, como em A Roupa Nova do Imperador.

O Patinho Feio é o ovo certo no ninho errado. Ele só encontra rejeição e escárnio justamente onde esperava prolongar um pouco o calor do choco e é jogado num mundo hostil. Trata-se de um ovo de cisne chocado por equívoco por uma pata que maltrata aquele filhote diferente. Até descobrir-se um belo cisne adulto, a avezinha atravessa o inverno padecendo de fome e solidão. Sentir-se uma criança rejeitada é próprio de todos nós, quando percebemos não estar agradando a nossos pais. Afinal, na infância somos amáveis, mas em geral estamos mais para um filhote estranho do que para macios patinhos que nadam obedientes atrás da mãe. Somos inconvenientes, meio torpes e muitas vezes bem diferentes dos bebês perfeitinhos que mamãe fantasiou. Esse conto de Andersen sempre foi considerado o mais autobiográfico, pois conta-se que ele muito sofreu com a própria inadequação e feiúra e o Patinho seria seu alter-ego. Pode ser, mas o que nos importa é que ele tenha legado às crianças essa imagem do desamparo e do sentimento de rejeição na qual elas sempre de alguma forma se reconhecem. Por sorte a adolescência sempre chega oferecendo-nos a plumagem de cisnes. Pelo jeito, para esse dinamarquês isso não foi muito fácil. Sua visão do amor, beata, platônica e muitas vezes letal, leva-nos a conjecturar que ele encontrou a beleza nas palavras, mas nem por isso teve recompensas no campo do amor.

Por isso, não surpreende que o Soldadinho de Chumbo seja uma história de amor infeliz. Trata-se de soldadinho diferente, pois falta-lhe uma perna. Em função disso, apaixona-se por uma bailarina de papel, cuja perna erguida faz parecer que ela também tem apenas uma. Fascinado pela amada, coloca-se num lugar desde onde possa contemplá-la e deixa de ser guardado com os seus irmãos. Em função disso, o soldadinho sofre inúmeros revezes, cai da janela, é colocado a navegar pelos esgotos num barquinho de papel e termina na barriga de um peixe que, para seu grande espanto, é comprado pela cozinheira da casa onde morava. Mas nem essa virada da sorte propicia o amor impossível dos dois: somente na morte, queimando juntos, derrubados na lareira por um pé de vento eles finalmente se fundirão.

Como o soldadinho e a bailarina, as crianças estão à mercê de serem levadas para onde forças superiores quiserem. Devemos lembrar que é bem recente a idéia de consultar uma criança a respeito de se ela quer ou não ir a determinado lugar ou se está sentindo-se bem onde está. Nos tempos da infância de Andersen, crianças morariam como, quando e com quem fosse disposto que deveria ser, e pouco importava o que achassem disso. Além disso, seus sentimentos não passavam de secretas fantasias e ilusões, que o mundo ignorava solenemente.

Ao mesmo tempo em que Andersen dá voz às pequenas almas, não as poupa de dolorosas frustrações por almejarem o impossível. Por isso o final proposto por ele no texto original de A Pequena Sereia é tão diferente do arranjo feliz que assistimos no filme dos Estúdios Disney. No texto, ela terá que pagar com a mudez pela pretensão de ter pernas e conquistar um humano, mas seu silêncio a impedirá de ser notada e terá que vê-lo desposar outra moça, encontrando alívio apenas na morte e no abrigo dos céus.

Em outra história, chamada A Casa Velha, na qual o sentimento de impotência de um brinquedo muito evoca o das crianças, que muitas vezes são obrigadas a crescer em famílias onde não se sentem bem ou sentem saudades de familiares perdidos. Nela, um menino presenteia com um de seus soldadinhos de chumbo a um velho da casa vizinha, cuja solidão o comoveu. Através desse brinquedo, os dois travam uma amizade que se encerra com o crescimento de um e a morte do outro. O detalhe é que cada vez que o menino faz uma de suas visitas ao velho, o soldadinho aproveita um momento de ausência de seu novo dono para queixar-se amargamente. Reclama que quer voltar ao antigo lar, pois não suporta a tristeza e a quietude fantasmagórica da casa do velho. Todas as vezes, o menino se recusa a levá-lo de volta e explica ao brinquedo que ele terá que se conformar, agora aquele é seu lugar. O interessante desse conto é o ponto de vista desde o qual a narrativa encontra seu eixo: a infelicidade do soldadinho.

Os objetos, assim como as crianças e os animais, oferecem a Andersen a possibilidade de expressar o que sentiu sendo um menino pobre, franzino e sensível. Certamente, Andersen não foi o primeiro menino infeliz a se fazer ouvir. A literatura está cheia deles, a começar pelos heróis de seu contemporâneo Charles Dickens. Porém, a novidade é que dentro de uma narrativa de formato aparentemente antigo (pelo recurso às fábulas e contos de fadas) encontramos a história enfocada desde o ponto de vista da criança.

A questão é que as histórias de Andersen não são apenas sobre crianças, elas são elaboradas a partir de como elas pensam e sentem, ele não tem a mínima dúvida de que encontra-se nelas o pote de magia no final do arco íris. Como em As Flores da Pequena Ida, onde um mundo de bailes com flores dançantes se descortina aos olhos de uma menina, a quem um garoto mais velho conta essa história. A satisfação do menino narrador é contrastada com a chatice de um velho, presente à cena, o qual resmunga contra aqueles que enchem a cabeça das crianças de bobagens. Pois bem, Andersen escreveu muitas dessas ditas bobagens, deu-lhes tratamento literário e ajudou a situar na infância um modo de ver a vida que deixa de ser considerado deficitário, passando a ser socialmente valorizado, divertido e poético.

Sobre essa valorização do pensamento infantil, temos em A Roupa Nova do Imperador um representante magistral. A história é conhecida de todos: uns espertalhões aproveitam-se da vaidade desmesurada dum imperador para lhe tirar uma pequena fortuna. Os falsos artesões diziam que tramariam um tecido tão maravilhoso que só as pessoas inteligentes conseguiriam enxergar. O próprio imperador não consegue ver o tecido, mas como não quer passar por néscio diz que é maravilhoso, enquanto todos ministros e aduladores em volta, temendo ter sua burrice desmascarada, também concordam com a magnificência do seu novo traje. Quando o imperador está desfilando em público, com a sua propalada nova e exuberante roupa, é uma criança quem tem a ingênua coragem de gritar que o rei está nu. – Ele não tem roupa nenhuma – correu de boca em boca – Uma criança está dizendo que ele não tem roupa nenhuma. Somente a partir daí todos se permitem olhar de fato o que está acontecendo.

Para passar por inteligentes todos demonstram imensa burrice, por isso a história é uma crítica à vaidade, e à mentira, numa sociedade viciada em mesuras e rituais, onde não há mais espaço para a verdade. Mas o que nos parece importante é o fato de que é uma criança quem desmascara a cena. O lugar da verdade já não provém da sabedoria ancestral, dos velhos experientes, mas duma criança não corrompida pela hipocrisia. Andersen conhece as dores de ser criança, mas acima de tudo aposta na inocência infantil como fonte da verdade e da virtude. Nestes dois séculos, a infância conquistou o mundo, por isso esse autor, que reescreveu a tradição desde o ponto de vista dos pequenos, é tão amado até hoje. 

 

Publicado no caderno Cultura do jornal Zero Hora, com o título “Andersen, a tradição reescrita com olhos infantis”, em 02 de abril de 2005

Publicado no Correio da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – Psicanálise de Crianças – Número 134, ano XII, abril 2005

Nenhum Comentário Ainda.

Comente este Post

Nota: Seu e-mail não será publicado.

Siga os comentários via RSS.