A infância minimizada

Sobre o filme Cidade de Deus

“Eu fumo, eu cheiro, já matei, já roubei, sou sujeito homem”, é a frase do personagem Filé-Com-Fritas no filme “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles. Quando profere a frase tem aquela idade indefinida entre dez e dezessete, a dos denominados “menores”. O filme é narrado por Busca-Pé, o filho do peixeiro que quer ser fotógrafo.

Filé tem todas as oportunidades dentro de seu universo, o traficante é um pai rigoroso e generoso. Busca-Pé tem todos os contratempos, fora da favela o mundo é preconceituoso e hostil. É bem mais fácil ser Filé do que Busca-Pé. O filme se ocupa daqueles rapazes que viraram sujeito-homem sem escola, trabalho nem família. Neste mundo de Deus todo mundo faz seu ciclo de menino a homem. Na Cidade de Deus isto acontece num ritmo alucinante, a vida é jogo rápido

O trajeto de Filé-Com-Fritas é exemplar: seu apelido vem dos serviços prestados aos maiores do tráfico, trazer a comida. Logo é chamado a uma tarefa maior: fuzilar outra criança, a sangue frio, para provar fidelidade ao traficante. O traficante-patrão Zé Pequeno, inaugura o filme com sua mágoa de não ser incluído na cena do crime pelos mais velhos que o mandam crescer e aparecer. Dali em diante ele jamais deixa uma criança para trás: dá-lhes arma e missões, as inicia. Outros crescerão como ele, numa infância curta, onde cada homem passa de escudeiro para guerreiro.

Vida de malandro não é muito diferente da vida no medievo. O destino é traçado pelo nascimento, o que se deve aprender é curto e grosso, a educação não dura muito e é feita de serviços e ritos de passagem, as crianças crescem misturadas aos adultos, vendo e aprendendo, e ninguém dura muito. Os ganhos civilizatórios tornaram o crescer um processo cada vez mais demorado e sofisticado, para os favorecidos há tanto para aprender que se passa estagiando na vida quase até os trinta. Quanto menor a oportunidade, menor o tempo de preparo do indivíduo. Zé Pequeno cresceu rápido demais e mostrou que até no crime é preciso respeitar um certo tempo para que não se brinque de matar. No filme, com o passar das décadas na Cidade de Deus, os criminosos são cada vez mais jovens e inescrupulosos, no início do filme são adultos, no final resta no poder um grupo denominado Caixa-baixa, um bando anárquico e quase selvagem de crianças. Este filme é um manifesto em prol da duração da infância, se lhe dermos resguardo, espaço e tempo, seremos uma sociedade respeitável, minimizá-la é diminuir nossa civilidade.

dianacorso@portoweb.com.br

18/08/04 |
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