Anotações sobre clínica com adolescentes

Texto sobre a prática clínica com adolescentes

Quando se trata de adolescentes, é muito delicado saber alguma coisa, e isto não é demagógico, é fato. O efeito deste trabalho é de emburrecimento, enrolação, muitas vezes de ridículo, acompanhado de uma surprendente efetividade terapeutica…

Situações como passar meses conversando com um jovem sobre Vampiros, um jogo de RPG, sem dar-se conta de que ele, assim como os vampiros, já havia sido uma criança com graves restrições alimentares, muitas das quais ainda mantinha. Ou ainda: falar muito do comportamento ciumento de uma jovem sem pensar que ela não suportaria fácil uma relação dual, pois vivia só com sua mãe, em um vínculo bem abafado, e um terceiro é muito bem vindo. E o que é pior: quando me dá uma luz e finalmente consigo pensar ou dizer algo inteligente ao meu jovem paciente, algo que possa funcionar como instrumento para tornar uma repetição algo mais eloquente, o vampiro ou a ciumenta parecem não ficar muito emocionados com minha sabedoria, quando muito deixam-me enunciar minhas construções sem um aparente envolvimento com elas. Mas, surprendentemente, seguem vindo entusiasticamente ao meu consultório, pontuais e assíduos, tendo na rotina da relação, uma seriedade que disfarçam em relação às palavras que ali são jogadas.

Não é só o saber que está em jogo, é também a própria sustentação egóica do analista que faz questão. Se já não são poucas as vezes que um analista se pergunta sobre a efetividade de seu trabalho, especificamente com o adolescente a pergunta constante é: porque ele continua vindo!

É preciso de uma vez por todas fazer um diferencial entre os muitos discursos jovens que vem a nossos consultórios e o discurso adolescente, esrtruturalmente falando. Pessoas colocando-se questões de fundo sobre sua vida, tendo absolutamente tudo por decidir existem aos montes. Os pacientes que precisam terminar de crescer, os que mantém um vínculo infantil com os pais, os que pensam em começar de novo, os que ainda nem começaram, os que vivem para amar e ser amados, os que atribuem aos outros a fonte de seus impasses, estes trazem questões adolescentes. Inclusive há aqueles que só trazem questões adolescentes, o que nos leva a ampliar e inclusive relativizar a questão das idades e pensar num discurso adolescente.

Pensar a especificidade de uma clínica é basicamente decifrar uma particular articulação da transferência e a psicanálise com crianças auxilia um pouco neste impasse. Nunca vou esquecer um pré-puber que vinha ao meu consultório jogar Banco Imobiliário, passaram-se um, dois, três meses, ele melhorava a olhos vistos, os pais solicitavam uma conversa sobre o andamento do trabalho e eu…sentia que só jogava um jogo!

Qualquer analista de crianças lerá isto com um riso nos lábios: não existe jogar só um jogo.  Joga-se o jogo da transferência onde o menino em questão estava literalmente adorando enriquecer uma vez por semana jogando com uma parceira tão pouco esperta.  Ele tentava ganhar o jogo, o que para ele era importante, enquanto eu tentava entender o que se passava, o que para mim era importante. Este desencontro útil para meu paciente, a mim deixou para sempre pensando sobre a inutilidade de tentar entender a transferência e as vantagens de deixar-se jogar seu jogo.

Quando um adolescente quer falar sobre a diferença entre os diferentes tipos de Rock, ele não quer que eu banque a espertinha e tente ver o que está por trás do que diz, ele quer ser deixado falar sobre isso para jogar com as palavras. Que jogo?

O jogo de experimentar hierarquizar o que é importante para sí e para o mundo, o jogo de descobrir o quanto é importante para a família, os amigos, e o mundo em geral, o que ele pensa a respeito de algo. O adolescente comparece ao consultório do analista também para fazer musculação em seu discurso, deixá-lo forte, bonito e com contornos bem definidos.

Não é um falar sobre qualquer coisa, por exemplo um jovem cujos pais, funcionários de banco, convivem constantemente com a frustração de não fazer algo mais nobre, a ver com o que estudaram, fala  sobre um conjunto de Rock onde todos os membros são antropólogos e parecem fazer o que gostam do jeito que querem. O conjunto em questão ainda por cima tem o interessante nome de “Bad Religion”, um convite à reflexão sobre valores.

Às vezes fico um pouco constrangida quando leio sobre o silêncio do adolescente e fico a me perguntar se meus pacientes não emudecem porque eu os impeço de fazê-lo. Provavelmente assim seja, porém preciso também justificar minha atitude de provocar a fala, de promover a conversa ativamente, seja perguntando, seja propiciando essa fala-jogo que parece matação de tempo.

Rassial descreve a depressão adolescente como uma “autêntica questão sobre os fundamentos da existência e uma alavanca dinâmica para uma verdadeira cura”, algo que “não deve ser combatido, às vezes mesmo ser buscado”[1], concordo em gênero e número, e acrescento: algo a ser construido.

O trabalho de construir um discurso adolescente, ou seja,  elaborar com ele a possibilidade de uma crítica, que conserva as características típicas deste momento, em que o sujeito aparentemente não se implica, pois está acima da realidade.  Essa posição discursiva é caracterizada como “intransigência moral” ou “idade ética”(Rassial), ou como aquela das “aspirações dos membros não-responsáveis que chacoalham a sociedade”, ou dos elementos da “imaturidade do adolescente, que contém as características mais fascinantes do pensamento criativo” (Winnicott). Trocando em miúdos trata-se da possibilidade de uma vista aérea sobre a vida. Busca-se uma visão geral que ajude a definir parâmetros, rumos, mas que é cronológicamente anterior ao “vivido”.

Ao chegar a uma cidade nova é conveniente subir a um lugar bem alto de onde se possa visualizar o mapa tridimensional do que vai ser visitado. Na verdade sempre dá vontade de subir ali de novo no final da visita ao lugar, com a sensação de que agora se poderia compreender o que se viu anteriormente.  O jovem lá de cima julga-se capaz de compreender a cidade antes de começar a percorre-la, mas precisamos levá-lo ao mirante. Se ocorre de que ele se engana do que vê, por outro lado ele vê coisas que nossa vista cansada já não distingue, experimenta pontos de vista dignos de um novo olhar.

Assim é inegável que a sociedade como um todo tem a se beneficiar com o poder criativo desta experiência adolescente, dali nascem as utopias, os novos costumes, as revoluções que os modernos aprendemos a respeitar. Mas, embora este seja o ganho social do discurso adolescente, não é esta a tarefa do analista, ele precisa acompanhar o jovem no percurso de olhar especificamente sobre algo que não faz parte da paisagem, mas de sí próprio: sua origem, os desejos dos pais que nele fizeram marcas, as pendências destes que ele é fadado a carregar, os descaminhos do fracasso da família em que ela se originou.

O primeiro olhar sobre a família será sob a modalidade da vista aérea, sendo que, muitas vezes, a decolagem parte discurso do analista que produz generalizações a partir de uma queixa pontual. O adolescente diz algo do tipo “Ela (obviamente a mãe ) não respeita o que eu penso”, “Ele (o pai) só queria se livrar de me levar lá”. A tarefa do analista é a partir daí poder tecer considerações sobre o momento diferente, pleno de incomunicabilidades que o jovem vive, se ele é visto, se sente ou o sentem como criança, sobre o que a mãe consegue entender e no que o pai superta se envolver, e assim por diante.

O mais difícil não é a decolagem, pois protegido pelo sentimento de exterioridade, a relação a esta visão torna-se mais suportável do que o encontro com os pais reais. Em casa as coisas não são tão calmas, tudo faz ruido e a possibilidade de pensar é restrita. A maior dificuldade está no pouso: como descer sem ser absorvido novamente pelo sintoma parental? Esta tarefa só se soluciona,nem sempre, quando tentamos ser adultos…

Este processo é fundamental para que o jovem possa assumir a condição de um desejo cada vez mais conjugável em primeira pessoa. Algo que poderia ser simplesmente dito como: “eles querem assim, mas acho que devo fazer assado a partir do assim que eles querem”.

Num primeiro momento, o de jogar, trata-se única e exclusivamente de mostrar o quanto é interessante assumir uma posição, assinar a autoria sobre o relato de um recorte da vida, seja ele rock, skate, estilos de vestir, responsabilidades escolares, festas, namoros, jeito de ser dos colegas, filmes, etc. O retorno interpretativo passa por ressaltar que ele tem um ponto de vista e que ele é digno de ser ouvido. Não é a mesma coisa ser escutado pelos pares, pois, como todos falam igual, não produz um recorte sobre o discurso.

O tempo seguinte é o de voltar esse olhar sobre sí e os seus. Para isso é preciso poder olhar a família de fora, ou de cima, também no sentido da superioridade que sente. Helene Deutsch chama isto de “arrogante megalomania da adolescência”, que “desde a torre de vigia da divina solidão contempla o vulgar rebanho”.

A solidão a que a autora de refere é compreensível desde o ponto de vista da individuação. Algo como quando aprendemos a andar de bicicleta: um belo dia olhamos para trás e percebemos que não tem ninguém segurando, então muitas vezes caímos, embora nosso equilíbrio até então fosse bom.

Encontrar alguma forma de equilíbrio, para seguir na metáfora da bicicleta, trata-se de assumir o caminho neurótico que se quer e consegue trilhar, que é mesmo do que encontrar uma forma pessoal de envolver o fantasma parental, que assumir sua própria  condição desejante. O adolescente neste momento desenvolve uma necessária distância de criancinhas em geral e de sua família em particular. Precisa ver-se fora, precisa afastar-se inclusive fisicamente para saber-se fora. 

Considerando toda a movimentação deste parto subjetivo, concluimos que não é qualquer tema ou particular impasse que define o discurso adolescente, mas é a especificidade deste trajeto, desde a descoberta do jogo das palavras, no sentido da construção de um discurso pessoal, até a do quanto elas podem determinar nossa vida.

Num primeiro momento, surge esse discurso mais leviano onde o sujeito adolescente brinca com o falar, assim como a criança brinca sem precisar assumir suas produções, num espaço outro fora de sí e do outro (transicional), conversa-se sobre uma parte da vida onde o jovem se reconhece, como sua escola, seus amigos, jogos, esportes, provas, férias, etc.. De dentro desta conversa, vai nascendo outra: o do “eu disse, ele disse”. Tanto relativo aos pais, quanto aos pares. Não é fácil a descoberta de que a voz do outro não vem do além, ela tem uma fonte bem clara, é preciso identificá-a e posicionar-se, enfim, existe a opção de concordar ou não.

O obstáculo a este processo é de carne e osso: são os pais reais que tem que se deixar assassinar e ainda ser suficientemente sábios para sobreviver a isso, ou seja, tem que manter vivo o necessário para que a cadeia de gerações siga sua sequência. O analista é aquele em cujas mãos fica a tarefa de eutanásia dos pais reais, para torná-los um fato de discurso com o qual o jovem possa fazer o esboço do seu sintoma pessoal.                                                                                                                                                                                                                               

Conta-se um causo, e há quem diga que é pura ficção, de que o dramaturgo grego Sófocles foi acusado por seus filhos de descuidar a administração de seus bens e por isso teria sido levado aos tribunais. O velho desperdiçava seu tempo em escrever teatro. Mas ele tinha nas mãos a tragédia que acabava de escrever “Édipo em Colono” e a leu publicamente aos juizes. Logo lhes perguntou se aquilo era obra de um velho gagá. Ao ouvi-lo os juizes o absolveram.”

A peça em questão trata da tarefa que se descortina aos velhos: perguntar-se o que fica, o que vale a pena deixar, e parece que Sófocles escolheu as palavras como o melhor  legado… Como leitores temos milhares de razões para concordar com ele e como psicanalistas também. 

O jovem tem a mesma tarefa que o velho, embora seu olhar esteja dirigido para a frente e não para trás. Ao velho em análise é preciso fazer olhar para frente, ao adolescente o contrário. Mas a ambos o analista só tem a propor a construção de um discurso que faça valer uma vida.

Se o jovem diz que os fatos do presente são opacos frente às expectativas que carregava, o analista pode contrapor-lhe que é tudo uma questão de ponto de vista. Só que esta questão de ponto de vista é meramente discursiva, na verdade o analista propõe ao jovem que se satisfaça com palavras…

Como Antígona o adolescente anda arrastando seus pais frágeis, mortais, em busca de uma sepultura desde onde eles possam abencoá-lo com suas palavras. Cabe ao analista de adolescentes ajudá-lo a fabricar esta eutanásia dos pais para que eles possam, como disse Getúlio Vargas, sair da vida e entrar para a história.

Publicado no “Correio da APPOA”, número 91, ano IX
01/06/01 |
(4)
4 Comentários
  1. Suzana permalink

    Olá, gostei muito da matéria. Eu estou me formando em psicologia nesse semestre e gostaria muito de trabalhar com jogos na clínica do adolescente. Você teria referência de livros sobre esse assunto? Agradeço desde já. Abraço!

    • Diana permalink

      infelizmente não, Suzana. gosto muito do trabalho do psicanalista argentino Ricardo Rodulfo, cujo livro “O brincar e o significante” encontra-se esgotado em português, talvez possas consegui-lo na biblioteca da faculdade. ele não fala de jogos especificamente, mas das diversas formas de brincar! bom trabalho e obrigado pela tua leitura desse velho texto! abraços
      Diana

  2. Lúcia permalink

    Boa tarde Dra Diana
    Sou Psicanalista em formação e pretendo trabalhar com adolescentes. Poderia me sugerir alguns livros que sejam fundamentais para a clínica ? Obrigada.

    • Diana permalink

      oi lúcia!
      gosto muito do livro do calligaris sobre o assunto!
      bom trabalho!
      abraços
      diana

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