As filhas de Alice

Texto sobre as imagens da mulher no século XX

Os desafios das mulheres para este século

O tempo voa o mundo gira e o pouco que sabemos já não vale. Se essa é a marca da modernidade – a distâncias entre as gerações – no caso das mulheres é ainda maior. Cada geração tem que inventar seus ídolos, seus modelos. Se o homem deu dez passos neste findo século, a mulher deu cem. Por isso a distância entre as avós, mães e filhas são abismos. Isso gera uma imensa solidão, não há ninguém atrás para nos amparar.

Recorrendo mais uma vez à literatura, lançaremos mão de algo mais moderno, que provavelmente não merece o nome de literatura, mas sim o nosso interesse. Trata-se de um livro da alemã Gaby Hauptmann, publicado em 1995, mas traduzido para o português em 2000. Chama-se “Mulher solteira procura homem impotente para relacionamento sério”, convenhamos que o título é bem chamativo.

Os pesquisadores que narraram a história das mulheres são unânimes em situar a importância do romance na vida feminina. Limitada quanto ao fazer, a mulher encontrou no devaneio uma forma de driblar a passividade que lhe era imposta. Fantasia própria ou emprestada, todas servem, por isso as mulheres foram sempre leitoras vorazes. Por este motivo vale a pena dar uma olhada neste que foi um boom editoral na Europa e encontrou boa repercussão no Brasil.

A idéia do livro é simples: moça bela, bem sucedida, do tipo que tem tudo, enfada-se de ser vista como objeto sexual. Quer para sí “um homem impotente com uma cabeça esclarecida”. Segue-se o previsível desfile de personagens clichê e encontros amorosos idem. Óbvio que a idéia da impotência é aquela nada incomum às mulheres: impotente com as outras, a mim ele desejará o suficiente.

O problema para a moça surge quando ela se apaixona e não consegue reverter o quadro de impotência do amado. Surgem então personagens encarnando as várias faces do feminino como figuras identificatórias e conselheiras, é o momento que a mulher sai em busca do que seria uma sabedoria própria do seu sexo. Ela consulta uma mulher mais velha, uma bruxa e uma psicoterapeuta. Todas descritas como mulheres interessantes, dignas de alguma forma de identificação. Com elas, a personagem Carmem aprende a se descobrir e realizar junto do homem que ela escolheu.

Há aqui uma virada fundamental: a mulher exige dizer quem, como e quando quer. Exige ser amada como pessoa na íntegra e recusa a posição passiva que a condição de objeto sexual a colocava. Carmem pensou que retirando o sexo da relação com o homem, encontraria a profundidade que busca. Esta solução esbarra no fato de que ser explicitamente desejada tem uma função: do desejo sexual ela retira a certeza às suas perguntas sobre o amor de que é digna. Acreditava que ser desejada não significava ser amada, descobriu que para ela, ser amada significava ser desejada. É um momento de validação de séculos de pensamento feminino.

Mas o que fazer com isto quando se trata de trabalhar, mandar, administrar, inventar, sendo que o que temos a herdar parecem ser histórias de ardilosas alcoviteiras, que não saberiam assinar um cheque?

Já são umas quatro gerações de mulheres tentando encontrar um jeito de ser. A mulher aprendeu rapidamente a cumprir com seus compromissos, com uma eficiência muitas vezes superior à masculina. Mas dentro dela estão todas as bruxas, as amantes, as intriguentas, as misteriosas, as fofoqueiras, as românticas. Todas elas sussurram pontos de vista, histórias, devaneios que a princípio parecem estrangeiros ao mundo das gravatas, do relógio, do trânsito.

A mulher continua a olhar o mundo com olhos de ressaca. Ressaca de mar, dessa que expulsa coisas que estavam dentro e engole coisas que estavam fora, onda que fascina e mete medo.

Isso mesmo, a definição não é minha, é de Machado de Assis, que assim descreve, em “Dom Casmurro” , o efeito produzido no apaixonado Bentinho pelos olhos de Capitú:

“Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saia delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me, tragar-me.”

Querendo ou não somos filhas de Alice e Capitú. Somos irreverentes, mesmo quando não queremos sê-lo, somos de uma profundidade ameaçadora, pelo simples efeito de um olhar. Que a mulher possa ocupar este recém inaugurado espaço público na plena posse de seus dotes é a saída para o desafio.

Do ceticismo nascerá a capacidade de revolução, da fantasia a condição da invenção, da intimidade a exigência de coerência. Convencionamos chamar tudo isto de “sensibilidade feminina”. Talvez seja um bom nome.

Publicado no Caderno de Cultura do jornal Zero Hora e no Correio da APPOA número 123, ano XI
03/03/01 |
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